Valter Hugo Mãe

As inúmeras “lives”


Há sempre um espectro do sagrado quando nos explicamos a partir do reduto íntimo da família.

Outro vírus do momento são as chamadas “lives” na internet, certos encontros a meio caminho entre programa de rádio e de televisão, pertinentes no tempo de clausura, apetecíveis agora pela sua simplicidade e fortuna de acesso. São, contudo, tantas que se perdem mais e mais de audiências e se confundem umas às outras, tantas de motivos apenas ociosos escondendo aquelas que são verdadeiros momentos de grande conversa e esplendorosos testemunhos.

Há dias, Ivan Lima, historiador brasileiro a viver e estudar no Porto, criador do projecto de Instagram O Que Cresci Ouvindo, convidou um dos meus heróis de geração, o escritor pernambucano Marcelino Freire. Sem mais do que aquela franqueza costumeira, belíssimo Freire levanta uma hora de conversa à condição de um tratado terno e inteligente sobre a musicalidade própria da escrita. “Live” do ano até agora. Mais ainda quando, por insondável problema técnico, pudemos ver Ivan mas apenas recebemos a voz de Marcelino, chegada de São Paulo, onde vive agora, e a força esteve toda na maravilha de seu pensamento.

Fascina-me o papel da mãe nas suas falas. Como aventa a hipótese de ser sobretudo alguém que regista o que ela diz. A música na sua vida começa logo aí, no cantado típico da expressão da mãe, como modela as frases numa ondulação que já pressupõe melodia. Mais, como tudo é uma precipitação meio queixosa, um zangado de quem urge sobreviver à pobreza. Toda a obra e acção de Freire é um protesto contra discriminação e pobreza. Sua valentia é tremenda na inscrição de todos, e é muito límpida a ética de dignificar suas origens. Vem da terra onde “a pessoa oferece o que não tem”, um pouco de café ou melancia.

Há sempre um espectro do sagrado quando nos explicamos a partir do reduto íntimo da família, desde logo a partir do rizoma fundamental e comovente da mãe. E é muito bonito que Marcelino diga que, de igual modo, “reza” seus livros, como a mãe debitava a oração à hora em que “nasciam os suicidas”. Inteiros e necessariamente, também ele fala o livro da primeira à última palavra para catar seu som, para ver se sua melodia lhe parece certa, o protesto certo. É a persistência da força inicial, da mãe como professora essencial, como ponto de partida e chegada, início mas também sentido da vida.

Em Portugal, podemos encontrar o breve e belo romance de Marcelino Freire, que tive a alegria de prefaciar, editado pela Nova Delphi. Intitulado “Nossos Ossos”, é mostra da crueza de seu olhar, uma avidez poética que medra na imensidão de São Paulo. Curiosamente, numa cidade desmesurada e já perigando no padrão de sua própria humanidade, alguém pressente a necessidade de ir defronte à família, fonte, lugar que é gente e onde estão nossas causas e poderão ser entendidos e talvez mudados nossos efeitos.