Valter Hugo Mãe

As festas

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Vamos dispor a refeição na mesa como se nos imitássemos uns aos outros. Sabemos os nossos costumes, manias e melindres, sabemos das ínfimas especificidades, e será fácil pressentirmos a algazarra.

Sei bem que não estarei com as minhas pessoas nas festas mas quero acima de tudo que tenhamos uma infinidade de anos para nos voltarmos a juntar. Resisto bem à distância imposta agora porque sinto que a companhia incide na convicção da pertença. Pertencermos genuinamente a alguém e alguém nos pertencer é não sermos sozinhos. Ao contrário, por mais rodeados de gente que estejamos, sem essa ideia de sermos inelutavelmente uma dimensão intrínseca do outro seguimos sós. Farei das festas a celebração desta companhia, a de saber que as minhas pessoas me justificam sempre a vida, quer nos vejamos mais ou menos, quer nos falemos mais ou menos. Cada coisa que faço ou conquisto é uma alegria que me cobre e as cobre. Quer nos vejamos, falemos ou não.

Amenizo a ansiedade pela lúcida alegria de saber que estamos de saúde e nos continuamos a amar. E vamos dispor a refeição na mesa como se nos imitássemos uns aos outros. Sabemos os nossos costumes, manias e melindres, sabemos das ínfimas especificidades, e será fácil pressentirmos a algazarra. Temos a voz de cada um como património íntimo, ouviremos o que nos parecer urgente e responderemos com gratidão. Por todo o tempo que a vida me der no Mundo onde estão também aqueles que amo, eu praticarei a gratidão.

Por mais que nos devamos defender da pena da pandemia e da derrocada económica, o começo de toda a ajuda estará em mantermos pontos de luz como ofício de esperança. Não há sentido naqueles que não esperam nada, os que desistiram de qualquer hipótese para futuro. Quando me sentar à mesa, mais sozinho do que em outras festas, colocarei diante de mim esse desafio sincero, do amor à esperança, minha forma de lutar vai ser a de homenagear cada ausente com a ideia de que quero resistir e quero obrigar a resistir. Haverá futuro. Tenhamos sempre um compromisso com ir lá ver como estaremos ainda juntos por essa alegria de nos continuarmos a pertencer.

Este ano, a minha mãe dispôs lembranças e algumas peças que decoram os cantos das estantes em jeito de presépio de pessoas e viagens. Não é imperioso que decalque o nascimento de Cristo. De algum modo, tudo se celebra agora, como se tudo fosse de nascer agora. Gosto que esteja a pequena estatueta de Jorge Amado, ou a ovelha que a minha amiga Lourdes Pereira me trouxe de Mallorca. Gosto que esteja o São Bento e a pequena romã que comprei na Grécia. Pelas pessoas e pelos lugares, a minha mãe inventou um presépio onde se amam todas as pessoas e todos os lugares. Se isso não for o melhor que alguma fé poderia fazer por nós, então já não entendo nada. Por todo o tempo das festas, o presépio perfeito da minha mãe é uma lição. Honra quem somos e promete não esquecer.

Quando servirmos o bacalhau, lembraremos. Faremos votos para que todos encontrem a mesma paz, apontem à mesma esperança, mantenham-se saudáveis por modo de amar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)