Depois de afastados pela pandemia, avós e netos preparam aproximações. O perigo ainda não passou, mas os afetos não podem seguir contidos. Especialistas apontam exemplos práticos para a convivência.
As perguntas acumulam-se à medida que desconfinamos a medo. Num prato da balança, os receios, por nós, pelos outros; no outro, o cansaço e a vontade de que tudo volte ao que era. Este último é, seguramente, um desejo partilhado por todos, com sabor amargo para os idosos, principalmente os que têm netos.
A pandemia obrigou à distância. Como se desconstroem agora os muros que ela criou? Os netos podem abraçar os avós? Os avós podem beijar os netos? É cedo para partilhar refeições dentro de casa? E as férias, podem passá-las juntos? Com ou sem máscara?
Antes de tudo, “é preciso perceber se os avós têm patologias”. A pedopsiquiatra Bárbara Romão dá-se como exemplo: “A minha sogra tem 73 anos e é uma pessoa de risco, devido aos problemas de saúde que tem. Se os meus filhos fossem pequenos, numa altura como esta, não os deixaria com ela. Teria uma opinião diferente se tivesse de os deixar com os meus pais, que são saudáveis”.
De seguida, continua a especialista, há um ponto que não pode ser descurado. “As crianças devem estar informadas de que os avós correm perigo.” Sem alarmar. “Uma criança que entende vai ser mais colaborante.”
A partir daqui a logística pode ser simples. “Eu continuaria a preconizar a separação de casas de banho, sempre que possível, e lançaria o desafio de olhar para este tempo como uma boa altura para autonomizar os mais pequenos.” Por exemplo, para evitar a contaminação oral, “os avós não deviam arrefecer a sopa soprando, mas sim ajudá-los a aprender a comer sem apoio”.
Mais: “ensiná-los a limpar o rabinho sozinhos, a lavar as mãos, a arrumar a própria roupa e a tirar os sapatos à porta de casa; responsabilizá-los com tarefas como pôr a mesa e lavar o próprio prato; e evitar que durmam a sesta na cama dos avós”. No patamar dos afetos, Bárbara Romão assegura que “as crianças não têm de ser sempre pegadas ao colo”. Porque “o amor não é só dar beijinhos e abraços, também se dá através das palavras, dos sorrisos e da linguagem não-verbal”.
Por isso, frisa, “o afeto passa sempre, temos de ver qual é a nossa situação em particular, pois não é preciso estar a correr riscos desnecessários”. Como recorda, nunca se viram tantos corações a serem feitos com as mãos. “Sabemos que esta situação está limitada no tempo. Não acho que alguma contenção vá ter repercussões na parte emocional das pessoas.”
Da mesma forma, “se os avós forem jovens e saudáveis, o contacto físico com os netos é possível, mas devem ser acautelados pelos pais cuidados para minimizar o risco de contágio da criança noutros locais, evitando que seja portadora do vírus”. A pedopsiquiatra apela a uma noção básica. “Claro que quanto mais pequena a criança for, maior a probabilidade de necessitar de contacto físico e é preciso ter mais certeza da saúde dos avós.”
E mais uma vez dá a própria história como exemplo: “A minha sogra estava habituada a ter os netos todos em casa. Durante este tempo viu-os pela janela. No Dia da Mãe, quando lá fomos, sabendo que temos estado todos fechados, cada um na sua casa, ela não aguentou desceu as escadas e abraçou os netos. Foi uma choradeira e uma contaminação”, conta a sorrir, recordando aquele “momento bonito e tocante” em que os filhos “viram o quanto a avó tem sofrido”.
Sobre este tema, Ana Rita Valbom, psicóloga clínica, confessa a sua perspetiva humanista, “virada para o equilíbrio do custo/benefício, em termos de saúde mental”. Já que se chegou ao momento “em que sabemos que o nosso bem-estar não depende só do lado físico”. Claro que em primeiro lugar também defende ser preciso ter em conta as doenças específicas dos idosos, que devem ser orientadas pelos médicos.
Já quando se trata de pessoas saudáveis, não tem dúvidas, “é crucial fomentar o convívio como anteriormente”, uma vez que a relação entre avós e netos “é fundamental para o desenvolvimento das crianças e desses adultos, nessa fase da vida”. E como é que isso se faz? A psicóloga apresenta mais soluções. “Houve um repensar da utilização do espaço público e ao ar livre, que nós em Portugal, felizmente, temos de sobra.”
As ideias são da especialista: piqueniques em família, jogos que até podem ajudar à pratica de exercício físico, como dar uns toques na bola, andar de bicicleta ou passar tardes de descanso à sombra de uma árvore. Ana Rita Valbom desvenda mesmo a solução natural que a sua família encontrou.
“As minhas crianças começaram a estar com os avós na altura em que juntos nos dedicávamos à horta”. Isto para voltar à ideia inicial, de que “é fundamental perder o receio, adotando as medidas de higiene, proteção e segurança, mas estabelecendo os laços que são também muito físicos”.
E, se possível, convivendo também dentro de casa. Juntos. “Aí, a imagem que me vem à cabeça é a do abraço. E, sim, não havendo questões, deve-se voltar a abraçar. E muito. Se não fossem os abraços que demos antes, não sei como teríamos sobrevivido nestes últimos meses.”
No que ao uso de máscaras diz respeito Ana Rita Valbom defende tratar-se de “uma decisão individual de cada família, ressalvando as orientações dos médicos e os riscos associados”.
As férias de verão
A convivência nos próximos meses entre as duas gerações não deve ser escondida ou adiada com desculpas. Como explica a psicóloga Daniela Soares, com o aproximar do verão e das férias grande parte dos avós terá, como sempre teve, responsabilidades acrescidas com os netos. “Em muitos casos são eles a retaguarda familiar e não há como evitar que o contacto seja pleno.”
Enquanto o vírus continuar no ar, os riscos não desaparecem. “Aquilo que é mais plausível é ter o máximo cuidado. Prevenir a questão da higiene, mas não vamos conseguir controlar o contacto entre netos e avós porque estamos a falar de crianças que muitas vezes olham para os avós como segundos pais.” São relações carregadas de afeto.
“É importante ter cautela e é também importante perceber que, gradualmente, temos de voltar à rotina, não sabemos se virá uma segunda vaga. Sejamos conscientes, vamos prolongar o afastamento até quando, até ao próximo ano? Até ao próximo verão?” Nessa incerteza, nada mais se pode fazer. Se os beijos e os abraços acontecerem, “não os podemos condenar”.
Uma atitude que Daniela acredita ser compreensível e não permissiva.
Por outro lado, acredita que se pode “dar responsabilidade às próprias crianças para desenvolverem estratégias com os avós de forma a minimizar o impacto que essas situações podem ter”.
Aliás, afirma a profissional, “essa até seria uma forma de os unir mais”. Fazer acordos: “Se não for mesmo possível estar tão perto um do outro, como podemos substituir os beijos e os abraços?” Há que acicatar a criatividade. “Não vai acontecer com todas as famílias. Como não acredito que vai haver distanciamento social em todas as mesas.”
Numa perspetiva psiquiátrica, Lídia Sousa, aluna de doutoramento da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e membro integrado do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, sustenta que a aproximação entre avós e netos deve ser faseada e que lhes deve ser dada informação clara sobre o porquê de todas as alterações efetuadas às rotinas.
O que, reconhece, pode não ser uma tarefa fácil “principalmente se existir algum grau de défice cognitivo”. Ou “pelo facto de os mais velhos, habituados a ter algum ascendente sobre os mais pequenos, se sentirem por vezes ultrapassados quando lhes são impostas medidas de de proteção”.
A psiquiatra, com uma tese de doutoramento sobre uma intervenção não farmacológica na demência, aponta ideias que podem ajudar a mitigar essas questões. “Melhorar a comunicação da informação, explicando a situação de saúde pública e os riscos inerentes de forma clara e concisa”. E, se ajudar, até pedir ajuda externa. “Pode haver outras figuras de referência da comunidade, como padres ou representantes de congregações religiosas, dirigentes de autarquias ou de coletividades, ou até mesmo pares, que podem ser usados como veículos eficazes para fazer chegar a informação necessária aos nossos familiares mais velhos.”
Nessa abordagem, a especialista também indica o caminho das questões abertas. “Perguntando aos idosos o que já sabem sobre vírus e o que acham das soluções que estamos a propor, e se lhes parecem razoáveis.” Uma maneira de tentar desconstruir más conceções que pairem no ar. “Sem nunca os infantilizar.” Seria contraproducente. “Temos de respeitar o seu sentido de autonomia e opiniões, passando a informação adequada ao seu nível cognitivo.”
Com recurso a analogias, se necessário, “fazendo referência a outras situações, como por exemplo o surto de pólio, quando foi também necessário adotar medidas de proteção social, num período em que os idosos de hoje eram os jovens da altura”.
E, por fim, Lídia Sousa sugere que os netos podem ter um papel fundamental nesta “crise” fazendo-se valer das suas capacidades tecnológicas. “Apresentarem aos avós novas formas de estarem próximos dos amigos e familiares e até de acederem aos cuidados de saúde, com recurso à novas tecnologias.” Do mesmo modo, podem facilitar-lhes o acesso a fontes de informação fiável, “de modo a acompanharem o que se passa, sem serem bombardeados com notícias sensacionalistas”.
Para Lídia Sousa, a chave do equilíbrio está ainda em entender a razão de os idosos não quererem usar máscara ou ficar em casa. “Porque a solidão pode ser um medo maior do que vir para a rua e apanhar o vírus.” O planeamento em conjunto ajuda-os a sentirem que são parte da solução.
“É preciso ajudá-los a perceber se os ganhos justificam os riscos, ajudá-los a considerar alternativas em vez de forçar regras, ou impor aquilo que achamos ser o mais adequado. Ouvir as alternativas deles, que consideram satisfatórias e razoáveis para o momento”.