Anorexia sexual: quando o desejo acaba

A ciência fala em anafrodisia, falta ou perda de desejo sexual e/ou apatia sexual (Ilustração: MG/NMMagazine)

Evita-se pele com pele, corpo com corpo, qualquer tipo de contacto. A libido diminui e não há sexo. Um mal-estar e um sofrimento que ardem sem se ver.

O assunto é complexo e geralmente guardado entre quatro paredes. Perde-se o desejo, esquece-se o prazer, evita-se todo e qualquer tipo de contacto sexual. Não há sexo. Torna-se uma coisa normal ou uma dor que arde sem se ver. E não se fala mais nisso. A sexualidade não é uma área totalmente transparente, tem nuances, momentos, disfunções passageiras ou permanentes, razões que a própria razão tem dificuldades em explicar. Quando o desejo adormece, sucedem-se as perguntas.

“Não queria que ele me tocasse, não queria que ele se aproximasse. Não tinha vontade de ficar sozinha com ele. No início, fiquei um pouco enojada com o facto de não sentir vontade, mas depois percebi que estava realmente à procura de uma desculpa para não fazer sexo.” Uma mulher conta o que sente, a sua história, ao jornal espanhol “El País”. Marcela inventava dores nas costas para não fazer sexo, as brigas sucediam-se, os conflitos instalaram-se. “Eu queria o meu companheiro, mas não queria sexo com ele”, confessa. Desejo inibido, desejo reprimido. E fala-se em anorexia sexual.

Anorexia sexual não existe, como termo, na forma científica. O rigor da ciência não reconhece a expressão desta maneira, fala em anafrodisia, falta ou perda de desejo sexual, apatia sexual. José Pacheco, psicólogo clínico e sexólogo, contextualiza. “Anorexia sexual, em si, não passa de um expediente retórico para fazer passar por novidade algo que há muito tempo tinha sido definido e caracterizado com outras designações como anafrodisia ou desejo sexual hipoativo.”

Não é categoria cientificamente validada, portanto, é uma designação coloquial, segundo Patrícia Pascoal, psicóloga clínica, terapeuta sexual, presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. “Muitas vezes, utiliza-se esta designação para referir as dificuldades clínicas que surgem por uma pessoa ter diminuição do interesse sexual, ou para designar as pessoas que evitam o contacto sexual”, comenta.

Sara Semedo, psicóloga clínica, sexóloga, terapeuta familiar e de casal, avisa que é importante “não patologizar”, ou seja, transformar em patologia ou em doença comportamentos e emoções que, em determinadas fases da vida, são “normais”. É comum, por exemplo, um casal com um filho bebé sentir a sua sexualidade “completamente submersa”, mas isso pode ser trabalhado e a comunicação e empatia são, realça, o segredo para a resolução. “É importante distinguir anorexia sexual de perda de desejo sexual, não é a mesma coisa. Qualquer pessoa pode sofrer de falta de desejo sexual em alguma fase da sua vida. A anorexia prende-se mais com uma patologia que traz grande sofrimento e que além da perda de desejo, se caracteriza por grande ansiedade e aversão a qualquer coisa relacionada com a sexualidade.” E acrescenta: “A anorexia sexual diz respeito a uma aversão ao sexo, a pessoa sofre de grande ansiedade quando pensa em algo sexual individual ou com o outro”.

Dor ou desconforto

Não há uma explicação única que encaixe em todas as situações. Nem todas as situações têm uma causa comum. “É provável que este problema sexual seja irrelevante nas pessoas que vivem sozinhas, assim como nos casais em que nenhum dos parceiros sente desejo sexual”, refere o sexólogo José Pacheco. Mas há casos em que é bastante relevante e o impacto é muito mais do que se passa em termos físicos. E porque é que isso acontece?

“Provavelmente tem um leque variado de causas. Algumas intrínsecas à pessoa: deficiências hormonais; doenças físicas e psíquicas graves, incluindo depressão; experiências sexuais traumáticas que, nalguns casos, podem determinar aversão sexual.” Outras causas podem depender da qualidade da relação do casal. Conflitos atrás de conflitos não são saudáveis e moldam comportamentos e atitudes. “Noutros casos, pode não existir uma sincronia entre a relação amorosa e o desejo sexual, ou seja, alguém ama outra pessoa, mas não sente por ela qualquer atração sexual”, aponta José Pacheco. A experiência de dor ou desconforto com a atividade sexual poderá explicar esse evitar do contacto sexual. Patrícia Pascoal adiciona outro fator: “A pressão para que todas as pessoas sejam sexualmente muito ativas.”

Perde-se o desejo, esquece-se o prazer, evita-se todo e qualquer tipo de contacto sexual. Não há sexo (Ilustração: MG/NMMagazine)

A diminuição do interesse sexual e não querer contacto corpo a corpo, pele com pele, não são novidades. O mal-estar e o sofrimento é que realmente importam. “É este sofrimento que deve ser tido em conta e não o facto de uma pessoa não ter interesse em atividade sexual. Mesmo uma pessoa para quem a atividade sexual é importante pode sentir diminuição do interesse em diferentes fases da vida.”

Patrícia Pascoal também avisa que diferentes níveis de desejo e mesmo a ausência de interesse nas atividades sexuais não devem ser transformados em patologias. “Esta designação, anorexia sexual, por um lado permite ilustrar uma vivência legítima, mas por outro remete para a patologia da diversidade, criando e facilitando discursos pandémicos que fomentam sentimentos de inadequação em pessoas saudáveis”, alerta.

Menos desejável, menos desejo

O tempo está contado ao milésimo de segundo, as preocupações são diversas e não desaparecem com um estalar de dedos, a diminuição da libido é comum por fatores individuais, relacionais ou circunstanciais. A aversão ao sexo é uma disfunção e o abuso sexual pode ser um motivo. “A educação sexual recebida também é um fator determinante”, diz Sara Semedo.

Não existe uma fórmula matemática para todos os casos. Mas é possível tratar, ajudar, dar mais qualidade de vida. “O ideal seria trabalhar com um psicoterapeuta que tenha conhecimentos em sexologia clínica.” É preciso avaliar para diagnosticar. “No entanto, quando a falta de desejo surge no casal, o mais recomendado será procurar um terapeuta familiar, pois muito provavelmente não será um caso de anorexia sexual.”

Emma Ribas, psicóloga e sexóloga, aborda o tema no jornal “El País”. “Supomos que todo o mundo deveria gostar de sexo, é por isso que as pessoas que o rejeitam costumam esconder esses sentimentos dos outros.” Não falar, não partilhar. O silêncio. “Sentem-se absolutamente encapsuladas numa situação que não sabem como lá chegaram e de que não sabem sair sem ajuda”, sublinha à publicação espanhola, onde explica que uma pessoa sem par também pode sofrer de anorexia sexual, sem sexo, sem masturbação. E enquanto a assexualidade remete para um padrão mais estável (nunca ou muito raramente se sentiu desejo sexual), a dita anorexia sexual aplica-se a casos em que, num dado momento da vida, se deixou de sentir desejo sexual, mesmo que tenha havido fases sexualmente bastantes ativas.

Não sentir, não querer. Não sentir atração sexual. Não há desejo sexual. “A falta de desejo poderá estar a aumentar devido às exigências do dia a dia, e porque cada vez mais, atualmente, a satisfação sexual é muito importante, sendo que existe maior liberdade para falar de sexo, de desejo e de satisfação”, frisa Sara Semedo. A autoestima também é para aqui chamada. Menos desejável, menos desejo.

É comum dizer que a falta de desejo sexual parece estar a aumentar quando, segundo José Pacheco, a abordagem ao tema é superficial. Na sua opinião, é pouco provável que isso seja verdadeiro. “É possível que no passado, comparativamente aos dias de hoje, fosse muito mais aceitável não sentir desejo sexual. Por outro lado, no passado, o desejo sexual era uma ‘exclusividade’ masculina e as interações sexuais dependiam apenas do homem – se sentisse desejo diariamente, a mulher só tinha o dever de se mostrar sempre recetiva: se sentisse apenas uma vez por ano, a ‘boa’ esposa não tinha o direito de reclamar.” O tempo avançou, a sociedade evoluiu, e os conceitos e termos sucedem-se para tentar explicar o que se sente.