Rui Cardoso Martins

Anjos dos perdidos (e achados)

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Longe de mim comparar-me, mas quero ser como o Wanderson. Há dias, ao saltar de um autocarro nocturno, com uma máscara de 2020 no nariz, perdi o telemóvel. Não dei por isso, foi o meu coração que disparou às seis da manhã. “O meu telemóvel!” Liguei, liguei e nada. Aliás, tudo: no telemóvel estava a minha vida do passado e a deste ano, do medo à esperança, e de novo ao medo. Ainda por cima, sem cópia de segurança. Sabe do que falo, leitor, fomos apanhados pelos afectos da tecnologia (até os que não estamos). Às 9.30 horas, um milagre. Atendeu um homem. “Encontrei-o na rua”, disse ele, com sotaque do Brasil. Disse que esperava por mim no outro lado da avenida. Corri em calções. Encontrei um jovem que trabalhava nas obras. Eu estava muito aliviado e ele também parecia estar:

– Há pouco, quiseram dar-me 100 euros por ele.

– Ainda há pessoas como o senhor! Nem sabe os problemas que… Por favor, não me leve a mal, mas…

Levei a mão ao bolso (uma nota que enfiara nos calções), mas ele parou-me com um gesto de príncipe:

– Não, não, não, nem pensar.

– Desculpe, desculpe. Mas diga-me o seu nome, por favor.

Ele soletrou Wanderson, nome que nunca ouvira, e avancei para o plano B. Ofereci-lhe um livro com a recolha de algumas destas crónicas – “Levante-se o réu” – e ele disse que isso aceitava. Assinei. “Ao Wanderson, anjo que caiu hoje do céu.” Disse-lhe que o livro está cheio de pessoas que foram julgadas por muitos crimes, e que a maior parte das pessoas não são, por assim dizer, honestas como ele. Que, se encontram uma coisa na rua, pensam logo é que essa coisa é agora delas. Disse-lhe que, à luz da lei, dizer “o encontrado não é roubado” é mentira, e que uma vez assistira ao julgamento de um homem que descobriu um casaco no banco do jardim e que foi condenado por não o devolver e que tinha ficado muito ofendido. Que pensar “está na rua, é para levar” é das mais mesquinhas e corriqueiras tentações da humanidade.

Que há muitos anos, quatro amigos meus morreram num desastre e que os primeiros a chegarem lá não socorreram os moribundos (dois ainda estavam vivos) e roubaram-lhes as carteiras. E ainda hoje espero que esses portugueses saqueadores de estrada estejam a arder no fogo lento de um inferno, mergulhados em sangue de mosca.

E que ele, Wanderson, jovem brasileiro, nos resgatava a todos dessa maldade.

Ele riu e confessou que no Brasil tinha feito teatro. Depois voltou para o seu trabalho nas obras, entre pós de cimento e vírus minúsculos que voam em Lisboa.

E agora estou aqui a lembrar-me da manhã, há muitos anos, em que fui a um multibanco e, ao afastar-me da máquina, disse a senhora atrás de mim:

– O senhor esqueceu-se do seu guarda-chuva.

De facto, alguém se esquecera do guarda-chuva. Pendurado no caixote de lixo dos recibos de conta estava o melhor guarda-chuva que tive na mão. Que me deu a honra de o ter na mão. A capa era de seda natural, com reflexos verdes e castanhos, era um guarda-chuva com gabardina só para si. O cabo, grosso e suave, de madeira dourada, cheirava a trópicos doces por baixo do verniz. Lá dentro, uma extraordinária estrutura de metais nobres estava pronta a abrir em cúpula, com a elegância com que as flores abrem para receber o orvalho da manhã.

– O guarda-chuva não é meu, disse.

Peguei nele e meti-me no banco, dizendo na minha vez.

– Não é meu. Estava ali esquecido. Não é meu.

E o caixa, e até o gerente, vieram a correr e levaram-no para o cofre, penso eu, que era o lugar dele, e incrédulos faziam-me adeus enquanto eu descia a rua, com a molha histórica que começava, escorregando a caminho do tribunal e de uma vida de saudade.

Longa vida a Wanderson, o honesto!

O meu telemóvel está aqui ao lado. Olho às vezes para ele: aqui estás, passaste a noite na rua. De manhã, apareceu o Wanderson, que recebeu boas ofertas (iam esvaziar-te o cérebro e pôr lá outro, números perdidos, moradas, agendas, fotos, memórias queridas), mas ele esperou horas pelo teu dono, que via a vida a andar para trás. E o guarda-chuva, que será feito dele?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)