Alergias alimentares: bem mais do que uma comichão

Carolina Botelho da Rocha com a mãe, Cláudia Botelho. A criança de dez anos tem alergias alimentares severas (Foto: DR)

As reações adversas do sistema imunitário a um alimento identificado como agressor são um caso sério. As consequências podem ser graves. Dificuldade em respirar e choque anafilático estão nessa lista.

Carolina Botelho da Rocha, Kiki como gosta de ser tratada, tem dez anos e nunca sai de casa sem a farmácia ambulante. Anda sempre com adrenalina injetável, corticoides e anti-histamínicos atrás de si. Tem alergias alimentares graves, esteve internada várias vezes, não se pode aproximar do pão e dos frutos secos, não pode comer cereais e algumas frutas. Tem de ter cuidado com champôs e desodorizantes e antever possibilidades de contaminações cruzadas. Uma ida a uma festa requer cuidados, compras no supermercado demoram horas, qualquer medicamento exige leitura atenta da bula.

Carolina é de Braga, está no 5.º ano num colégio, tenta fazer uma vida normal apesar das circunstâncias. Tem uma carteira só para si na sala de aula, anda de máscara na escola, almoça em casa. Nasceu com alergias alimentares básicas: ao leite de vaca, ao ovo, pouco mais. Aos seis anos, a primeira reação exuberante que implicou tratamento médico. As comichões são o primeiro sinal, segue-se a falta de ar. Aos oito anos, um choque anafilático, injeções de adrenalina, internamento nos cuidados intermédios. Os médicos detetam a alergia a proteínas altamente estáveis. Nada de cereais, pêssegos e quivis também não, pão nem pensar, nada de comida processada. Caroços e grainhas podem ser um problema, alimentos com sementes também. Carne e peixe, exceto salmão, arroz feito em casa, são permitidos na sua alimentação.

Cláudia Botelho, mãe de Kiki, conta como a vida mudou. Trata ao pormenor da comida da filha, adotou a sua dieta, qualquer viagem mais longa implica saber a distância a que está de um hospital. “Toda a alimentação destas crianças tem de ser controlada, os ambientes que podem frequentar são restritos. O simples facto de irem a uma festa de uma amiga pode colocar a vida delas em risco. São crianças que vivem em constante alerta”, frisa. Viver com o coração nas mãos e com impacto social. “Não são crianças picuinhas, não comem porque não gostam, são crianças que têm problemas”, repara. E não é apenas a comida. “São os champôs, os desodorizantes, os perfumes, a maquilhagem, até os medicamentos.” São precisos mil olhos para ler todas as letras miudinhas dos rótulos, todas as descrições de ingredientes e componentes. “As pessoas não têm a noção das implicações que isto tem na vida familiar.” A plasticina e algumas borrachas também são um problema. Uma alergia pode ser desencadeada por ingestão, inalação ou contacto com o alergénio.

Kiki segue em frente. O colégio percebe as suas restrições, os amigos também. Há, no entanto, aquele momento de querer experimentar e não experimentar porque nunca sabe o que pode acontecer. Novos alimentos são ingeridos apenas em ambiente hospitalar. Chega a tomar três medicamentos por dia. “A alergia não é uma comichão, não é isso. Estas crianças são verdadeiras guerreiras e enfrentam o dia a dia sempre com medicação atrás”, sublinha Cláudia Botelho.

Inflamação da pele, vómitos

Uma alergia alimentar é uma reação imprevisível, uma resposta do sistema imunológico: quando exposto a um determinado alimento identifica-o como um agressor. “Existe primeiro uma sensibilização ao alergénio, neste caso, parte de um alimento, com a produção de anticorpos. Num encontro posterior, ocorrerá a ativação destas células e libertação de mediadores responsáveis pela reação. Esta reação poderá, no entanto, ocorrer na vez seguinte, ou, por exemplo, 30 anos depois. Importa referir que a severidade das manifestações clínicas não é, contudo, previsível”, explica Inês Pádua, nutricionista e especialista em alergias alimentares.

Kiki com a família
(Foto: DR)

As manifestações clínicas podem variar de moderadas a graves e ocorrer de forma isolada ou combinada. Podem ser cutâneas, como inflamação da pele, comichão e inchaço da glote e da língua. Gastrointestinais também, como vómitos, dores abdominais e diarreia. Respiratórias, como pieira ou “gatinhos” e dificuldade em respirar. E cardiovasculares, como diminuição da pressão arterial e perda de consciência. “Quando a reação é sistémica e generalizada, estamos perante uma anafilaxia, que é efetivamente a reação mais grave de todas.” No caso da anafilaxia, há dificuldade respiratória e circulatória, tonturas, sensação de desmaio.

Quanto ao tratamento, Inês Pádua refere que a exclusão alimentar continua a ser a base da terapêutica, ou seja, retirar “da dieta e da rotina os alergénios implicados na alergia e de todos os alimentos/produtos que o contêm ou possam conter”. Neste momento não existe, sustenta, “nenhum procedimento implementado por rotina, nomeadamente farmacológico, para o tratamento da alergia alimentar”. Existem, no entanto, procedimentos promissores “como a imunoterapia oral, tendo sido aprovado recentemente pela FDA [Food and Drug Administration] um tratamento para alergia ao amendoim em crianças e adolescentes, e a indução de tolerância oral”.

A educação para questões relacionadas com o conhecimento da doença e dos alergénios, leitura de rótulos e prevenção de contaminação cruzada, são fundamentais. Esta consciencialização tem de ser também exigida à família, amigos, e até à própria comunidade, segundo a especialista. Por outro lado, é importante saber como agir em caso de emergência de forma a diminuir, ao máximo, o impacto da reação.

“No caso da alergia alimentar em si, quando falamos em prevenção importa frisar que esta resulta de uma interação complexa de fatores imunológicos, genéticos e ambientais. E alguns estudos têm mostrado que existem comportamentos que podem ser importantes na modulação destes fatores ambientais e consequentemente na prevenção de uma alergia alimentar”, conclui a nutricionista. E mais vale prevenir do que sofrer.

Cuidar e prevenir

  • Natureza
    O contacto com ambientes naturais, com ambientes não estéreis e com, por exemplo, animais, promove o fortalecimento do sistema imunitário e permite que a criança adquira as suas próprias defesas.
  • Sol
    A exposição solar controlada é essencial para a síntese de vitamina D, um nutriente cujo défice tem sido associado ao aumento da prevalência da alergia.
  • À mesa
    A alimentação saudável e a ingestão de alguns nutrientes podem ter um papel importante na prevenção das alergias nas crianças e nos adultos.
  • Exercício
    A prática regular de exercício físico fortalece o sistema imunitário e previne a alergia.
  • Tabaco
    Não fumar é crucial, não só na prevenção da doença alérgica, mas também na prevenção de outras doenças do foro respiratório.
  • Medicação
    A utilização indiscriminada de medicamentos não deve acontecer, particularmente antibióticos. Neste caso particular, o medicamento deve apenas ser tomado quando existe real necessidade e por indicação médica.