Agora sou outro

Ali estava Rui num momento histórico único, reivindicando a sua inteira novidade como ser humano, a total diferença em relação ao Rui do passado. O problema é que continuam os dois muito parecidos: os ténis e o passo gingão, as calças desportivas de cordão-minhoca, a barba aparada na semana passada.
– Qual é a sua profissão?
– Desempregado.
– Mas como isso ainda não é profissão… Tem alguma profissão, ou teve?
– …
A juíza decidia o cúmulo jurídico deste filho das vielas do Castelo de S. Jorge. Foram tantos os crimes cometidos por Rui, no passado, que está em causa se pode ter mais saídas precárias da penitenciária, ou se volta já e cumpre a súmula das penas.
– Quer dizer alguma coisa relativamente a estas condenações… não estamos aqui a discuti-las, já sabemos que os respectivos crimes foram por si praticados, apenas queremos saber sua actual postura relativamente a tudo isto que andou a fazer.
– A única coisa que posso dizer é que já não me revejo nessa pessoa. Já é muito antigo, era um jovem nessa altura, não é? Hoje em dia a minha vida mudou completamente, tenho dois filhos, não sou a mesma pessoa, de maneira nenhuma.
– O que é que fez para mudar, o que aconteceu entretanto?
– Os dois filhos, cresci, tenho a minha casa com a minha esposa… a minha esposa!, a minha companheira. O ser preso também me mudou muito. O tempo que estive preso…
– E antes de ser preso, o que é que andava a fazer? O senhor que, tanto quanto se recorda, nem sequer tem uma profissão.
– Profissão, propriamente, não. Mas trabalhei muitos anos no MARL, o mercado abastecedor da região de Lisboa. Mas depois como me tinha de registar, fazer um cartão, eu não tinha cartão de cidadão na altura, tive de deixar de trabalhar lá. Depois estive muito tempo sem trabalhar, até que… que…
E a sua cara dizia: até que me aconteceu um dos meus estados naturais, ou preso, ou a caminho de ser preso, como aquelas pessoas que ou estão bêbedas ou de ressaca, sem saúde intermédia.
– Estou de precária há quatro ou cinco dias. Já vou na segunda.
– Neste momento, está a viver com a sua companheira… Que idade têm os seus flhos?
– Tenho uma menina de 15 anos, e um rapaz de quatro.
– Então não podemos dizer que o nascimento dos filhos mudou alguma coisa. A de 15 nasceu bem antes do de quatro.
– Eu na altura tomei conta dela, estava quase 24 horas por dia comigo, porque a minha companheira trabalhava, eu é que tomei conta dela, e isso fez-me crescer enquanto pessoa.
– A sua companheira trabalha em quê?
– Neste momento está desempregada, com esta coisa do covid.
– Do que é que vive?
– Neste momento, é a Segurança Social que ajuda. E também a ajuda da minha mãe, e da mãe dela. Elas não ajudam com dinheiro. Ajudam com comida e isso.
– Qual a sua postura em relação a estes crimes? Estamos a falar de tráfico, detenção de arma… não estamos a falar propriamente de crimes muito leves.
– É óbvio que estou arrependido, não é? Hoje em dia não fazia a mesma coisa. Eu só prejudiquei a minha vida com isso. Na altura não pensei e… A vida difícil, queria dinheiro fácil…
– Mas neste momento continua sem ter propriamente dinheiro. A Segurança Social ajuda a pagar as despesas que existem, têm a comida paga, não tem muito dinheiro, a vida não está fácil… Significa que está no mesmo ponto que estava.
– Agora estou de precária, não posso trabalhar, não é?
– A questão não é essa, não estou a ir por aí. A verdade é que, em termos práticos, encontra-se com as mesmas dificuldades económicas de quando praticou estes factos.
– Mas lá está, tudo mudou, a minha idade mudou, a minha maneira de pensar, tudo mudou! Eu na altura era um jovem.
Hoje sou pessoa diferente, continuava Rui, quase aos 40 anos, e “estando na mesma situação económica, a minha maneira de pensar não é a mesma”. Na prisão, aprendeu a trabalhar. Se lhe perguntam em quê, Rui responde “em qualquer coisa”.
– O que me pedirem para fazer.
Talvez lhe peçam para ter juízo.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)