A vida continua lá fora
“Avis 2020” reflete, em som, a experiência de Rodrigo Leão na temporada pandémica de dois meses passada na localidade homónima no Alto Alentejo. Um EP de nove faixas instrumentais criado no mesmo primeiro impacto de alucinação coletiva hiper-realista a que ninguém escapou. Todas inéditas, com a meia exceção de “Transporte 20”, que atualiza um tema de “O Método”, o álbum que o músico lançou em fevereiro, imediatamente antes “disto tudo”. Mais lenta, fantasmagórica, com o seu quê de Angelo Badalamenti e todavia mais aberta ao mundo exterior, aos espaços abertos e à luz do que a versão inicial, “Transporte 20” está no início de “Avis 2020”, como que segurando a corda lançada de “O Método” e unindo os dois discos pela narrativa. O seu ar de assombração será retomado no breve “Os sobreiros”, provavelmente os mesmos que adornam a capa do disco, rodeados de neblina.
Não há somente espetros neste disco. “A primeira ideia” soma esperança à contemplação, empregando as notas espaçadas de um piano, efeitos e o que soa a uma voz que troca as palavras por um simulacro de brisa. Quando as melodias, delicadas, estão mais entranhadas nas composições, casos de “O jasmim” ou “O piano de maio” (não chocaria se se chamasse “O piano de Satie”), os temas ficam mais cinematográficos, concretos e pungentes, com apogeu no derradeiro “Caminhos de Avis”. “Terra de barro” paira nas margens da new age, desencarnado mas com o som de pássaros e de melodias distantes na planície. Os pássaros regressam em “Tempo de espera”, atravessando nuvens eletrónicas – o título e o tom podem ser encarados, sem contradição, como a ideia central de “Avis 2020”. Uma forma de anunciar que a vida, tal como avistada de um posto de observação com escassa presença humana, e para nossa perplexidade involuntária, continua.
Em dose concentrada (18 minutos), “Avis 2020” tem algumas das peças mais refrescantes de Rodrigo Leão, mais livres das grelhas que vêm com a escrita para vozes e canções, para bandas sonoras de filmes, exposições, séries de TV. Um disco de pequenos e sábios gestos.