A única jóia

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.
Que cara estava o juiz a ver? Não sei, se calhar nem ele sabia. Na pandemia das máscaras cresce um perturbador paradoxo das identidades: quando a pessoa tira a máscara, deixamos de a conhecer. Confesso que esperava outra boca, neste rapaz floresce um negro bigode, para onde foi o nariz fino da mulher, que o tem tão grosso afinal? Como é que tanto brilho de olhos pertence a tão fraco queixo? Eras então assim… põe a máscara que não te reconheço.
A mulher que depois o juiz identificou pelo nome – Maria – estava no banco dos réus. O frio entrara nela, em vez de ossos podia ter barras arredondadas de gelo amarelo. Um casacão largo nos ombros, o cabelo atado num molho de gravetos, e os olhos a treparem do chão para a máscara do juiz, a escorregarem da máscara do juiz para o chão.
Virado para a assembleia, do cimo da secretária, o magistrado perguntava pelo estado dela. Fazia-o sem drama, espontâneo, paternal, como se perguntasse que tempo vai fazer esta tarde, ou amanhã, se há previsão de chuva até ao Natal.
– A senhora tem alguma coisa a dizer sobre os factos que praticou, sobre o seu mundo actual, se mudou a sua visão do passado?
[Ouvi bem, “o seu mundo actual”? Foi o que escrevi nas notas, é bom termos coisas a dizer sobre o mundo que nós mesmos fazemos connosco.]
A voz de Maria, travada pelo papel azul, aterrorizada à espera da resposta sobre o seu mundo futuro, mal se ouvia.
– A vida que eu levava, não a quero mais. Volta e meia, vem a ambulância porque vivo num pânico, tenho apanhado muito no meu sistema nervoso. Para mim, essa vida acabou.
– A senhora sente então que isto lhe serviu para reflectir sobre todas estas coisas que cometia… e, portanto, está arrependida, é isso?
A voz de Maria subiu uma oitava (trepava uma escada, escapando aos cães da rua).
– Eu só quero que passe isto. Nunca mais quero esta vida para mim. Nunca mais. Tenho andado com muitos stresses em casa, agora mesmo, antes de vir para aqui, tive de tomar dois antidepressivos destes.
Maria mostrou uma caixinha amolgada. Rectângulos de cores gravadas no cartão branco.
A procuradora da República, nas alegações, disse “peço justiça”. O advogado de defesa tentou o prodígio: resumir numa palavra os roubos, os furtos, as detenções, os recentes dez meses na prisão, as catástrofes, a sobrevivência de Maria no seu mundo antigo.
[Que única palavra resume cada um de nós?]
– Eu, se quisesse definir o carácter desta senhora numa única palavra, seria humildade, porque é uma pessoa que tem cumprido esta pena com muita humildade, com um arrependimento que é sincero. Por esse motivo, eu penso que o tribunal optará pela menor pena que houver para este crime, para que possa retomar a sua vida normal. Vossa Excelência fará assim a melhor justiça.
O juiz marcou a data da sentença e fechou a agenda.
– Dona Maria, muito obrigado, tenha um bom dia.
– Posso dizer só mais uma coisinha?
– Diga, diga.
– Gostava que me desse uma oportunidade para eu tentar seguir a minha vida de outra maneira.
– Muito obrigado.
– Muito obrigada, disse a mulher.
Maria – isto eu nunca tinha visto – trazia uma pulseira electrónica no tornozelo. Maria monitorizada à distância. Maria não tentes fugir, com máscara ou sem máscara. Sabemos onde estás agora mesmo.
Por baixo das calças, acima das peúgas arreadas, sobre os ossos finos da tíbia e da fíbula da perna direita, via-se um círculo na pele da mulher. A pele pálida brilhava, polida pelo plástico negro.
A pulseira electrónica era a única jóia que trazia.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)