A sexualidade não envelhece

Existem ainda muitos mitos e preconceitos socioculturais acerca da sexualidade na terceira idade Foto: Freepik

Entre fatores fisiológicos e psicológicos, há uma sociedade que quase sempre defende que ser idoso significa ser assexuado. E se o desejo desaparece com o tempo há formas de o contornar.

“Sempre fui um homem muito ativo.” António Ferreira, 91 anos, sem pudor – “para quê?” -, refere-se à vida em geral e à sua sexualidade em particular. É viúvo há cinco anos, mas foi apaixonado quase toda a vida. “O que fiz foi com ela. Durante quase 60 anos. E nunca precisei de usar comprimidos. Era uma coisa tão boa, tão boa”, brinca e fala a sério. Porque, como diz, “a sexualidade é uma coisa natural, não tem de haver vergonha em falar do assunto”. Nem quando se chega à terceira idade.

“A minha mulher e eu sempre tivemos relações [sexuais] com frequência. Só deixou de ser assim a partir do momento em que ela foi operada aos intestinos. O médico disse-nos que tínhamos de abrandar o ritmo. Por isso, nos últimos nove anos de casamento, não houve nada.” Custou-lhe um pouco. “Foi um sacrifício e de que maneira, e para ela também, mas a saúde primeiro.” Uma época complicada para ambos. “Ela acabou por perder o apetite sexual. E como o médico nos alertou acertámos, por mútuo acordo, que não haveria mais nada. Ela dizia-me para ter paciência. E eu sou um ser humano que compreendo as coisas. Pronto, nem brincadeiras havia. Até porque ela era muito tradicional e reservada. E como tentar algo podia cair-lhe mal, respeitei.”

“É uma coisa natural, não tem de haver vergonha em falar do assunto”
António Ferreira
91 anos

Não fosse isso e António acredita que continuaria “pronto para as curvas”. Di-lo por se conhecer bem. “Eu tinha prazer em fazer trabalho com ela, também nunca fiz com mais nenhuma mulher. Bastava tocar-lhe que ficava tudo afinado.” O casal teve quatro filhos, embora hoje só dois estejam vivos. “Não tínhamos relações só para ter crianças, era por prazer.” A dada altura, começaram a ter cuidado para que ela não engravidasse de novo. “Usávamos o preservativo. E sempre correu tudo bem. Com educação e respeito, claro.”

Ele nunca sentiu que o desejo diminuísse. Porém, quando a mulher chegou à menopausa, António diz que foi compreensivo. “Fomos falando e eu fui respeitando os estados hormonais dela. Mas nem aí tivemos grandes problemas. Passado algum tempo as coisas retomaram o normal.” Para tudo correr bem, garante, não é preciso ciência. “Quando se encontra a pessoa de quem se gosta verdadeiramente, e se houver comunicação, ultrapassam-se todos os obstáculos. Até esses da intimidade.”

Maria Fernanda Viegas, 78 anos, está totalmente de acordo. Viúva há três anos, foi casada durante quase meio século. “Ele sempre foi muito vivo”, ri-se. E acrescenta logo de seguida: “Sempre me respeitou e se importou comigo”. A preocupação do marido era que ela também tivesse prazer. “Para aquela altura, até dávamos muitos beijinhos e havia muito carinho.”

Tiveram dois filhos. Depois do nascimento do segundo, Maria Fernanda ficou sem o útero. Tinha 45 anos. Devido a isso não sofreu com a menopausa. Contudo, sentiu que a sexualidade mudou. “Continuava a ter prazer, mas não era igual ao que tinha antes da operação. Ele percebeu e fazia um esforço extra. Dava-me ainda mais beijinhos e havia mais carícias.” Por norma, era o marido que “puxava” por ela. “Mas outras vezes era eu que o procurava.”

Nos momentos em que ela não se “sentia com vontade, ele nunca forçou”. “Quando tentava apimentar as coisas, se eu não quisesse alinhar em certas ideias ele aceitava bem.” Foram sempre muito ativos, até o marido ficar diabético. “Nessa altura, ele perdeu a vontade e eu decidi ir ao médico saber como o podia ajudar. O doutor receitou-lhe os comprimidos azuis, mas eu disse-lhe que preferia ter o meu marido vivo.” Tinha medo por causa do coração. “Como ele ia muito pelos meus conselhos, a coisa ficou assim.” Isto aconteceu nos últimos dois anos de vida dele. Maria Fernanda, mulher liberal, justifica tudo o que contou. “São assuntos naturais que devem ser falados, porque há muita coisa que as pessoas na minha idade não querem compreender.”

Cátia Costa, animadora sócio-cultural do Centro Social de Oiã, Oliveira do Bairro, onde ambos os idosos vivem, confessa que ficou surpreendida com o à-vontade dos utentes quando perguntou se alguém gostaria de comentar o assunto com a NM. “Houve de tudo, quem não se importasse e quem preferisse cochichar com quem estava ao lado. Grande parte sente vergonha.”

O efeito da felicidade

Existem ainda muitos mitos e preconceitos socioculturais acerca da sexualidade na terceira idade. Como refere Ana Moreira da Silva, psicóloga na Clínica Médica Arrifana de Sousa, em Paredes, muitos obstáculos partem “do próprio idoso, que viveu uma parte significativa da vida quando o modelo reprodutivo era dominante”. As alterações fisiológicas naturais do envelhecimento, os fatores sociais e as crenças religiosas e familiares também contribuem para que se interprete “a sexualidade na terceira idade como algo depreciativo e ignorado”. E assim vai crescendo a ideia de que “os idosos são seres assexuados”.

“Há muita coisa que as pessoas na minha idade não querem compreender”
Maria Fernanda Viegas
78 anos

A Organização Mundial de Saúde é clara. Falar de sexualidade é falar de “uma energia que nos motiva a procurar amor, contacto, ternura, intimidade, que se integra no modo como nos sentimos, movemos, tocamos e somos tocados. É ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual. Ela influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações, e por isso influencia também a nossa saúde física e mental”.

Ana Moreira da Silva recorda que “os seres humanos desfrutam da sexualidade de maneira diferente de acordo com a etapa da vida”. Apesar do nível das hormonas que mexe com a libido diminuir na terceira idade, a sexualidade em idades mais avançadas deve ser encarada como parte natural do processo de envelhecimento ativo.

Médico de família na Unidade de Saúde Familiar 7 Fontes, em Braga, Dinis Brito acrescenta que as “alterações físicas, relacionadas com a elasticidade da pele, capacidade de lubrificação ou de ereção” não devem significar a extinção da vida sexual. Nesse sentido, sugere que as preocupações dos idosos sejam partilhadas com os médicos, já que “existem ajudas para contornar essas alterações. Sabemos que a felicidade nos nossos relacionamentos tem um efeito poderoso na saúde e a sexualidade é parte integrante dos mesmos”.

“Os seres humanos desfrutam da sexualidade de maneira diferente de acordo com a etapa da vida”
Ana Moreira da Silva
Psicóloga

Os médicos podem ser desbloqueadores de problemas. O papel deles vai além das questões relacionadas com a andropausa, a menopausa e as disfunções sexuais. Há fatores psicológicos que muitas vezes levam à diminuição do desejo sexual, como a depressão, a ansiedade de desempenho, stress, baixa auto-estima, crenças em mitos sexuais, conflitos relacionais ou dificuldades na comunicação, que condicionam a vivência da sexualidade.

Manter hábitos de vida saudáveis e fazer exames periódicos também ajuda, “uma vez que o desempenho sexual pode estar relacionado com alguns problemas de saúde como a diabetes, colesterol alto, artrite, AVC, tabagismo, consumo excessivo de álcool e alguns medicamentos”, esclarece Ana Moreira da Silva.

A psicóloga chama ainda a atenção para as DST (doenças sexualmente transmissíveis), como a gonorreia, sífilis e clamídia, “cada vez mais frequentes neste grupo etário”. Segundo a Direção-Geral da Saúde, só de 2017 para 2018 as DST aumentaram 33% em pessoas com mais de 65 anos. “As campanhas de prevenção não se deviam concentrar apenas nos jovens.” Por fim, a profissional de saúde recorda que “os medicamentos associados à melhoria do desempenho sexual só devem ser tomados sob orientação médica”.