A sexualidade dos deficientes

O direito à saúde sexual das pessoas com deficiência ou incapacidade está consagrado. Na prática, é negado. Negligenciado. Enquanto o tema for tabu para um deles, será problema, com consequências sérias, para todos nós.

Escolheu um vestido preto com bolinhas brancas. Formal, ajustado ao corpo. Não muito. Juntou-lhe uns saltos altos, a fingir verniz. Enfeitou as mãos com anéis. Pintou os lábios de carmesim. Tudo por entender que o “assunto é importante”. Andreia, na casa dos 60 anos, mente no nome, não na idade. E aceita falar. Mas, antes, um dos telemóveis toca. A brasileira ignora. Toca novamente. “Desculpe”, atende. “Sim querido, faço massagem e convívio.” Mas faz mais. Faz o que muitas outras profissionais do sexo, como ela, dizem não conseguir: atender deficientes e pessoas com paralisia cerebral. “Não me incomoda. São seres humanos como todos nós.” Antes dela, várias aceitaram dar uma entrevista. Algumas chegaram mesmo a fazê-la. No fim, arrependeram-se. Andreia não. E assim, no quarto onde dorme e trabalha, conta, sem pedir nada em troca, como foi aquela primeira experiência com alguém “que não tinha mais problemas do que qualquer um de nós”.

“Perguntou se eu não tinha problema em atender pessoas com deficiência.” Na chamada, descreveu o cenário. “Dificuldade na fala, paralisia num dos braços e numa perna.” Andreia garantiu-lhe que só não partilhava a cama com o preconceito. No dia e hora, X apareceu. “Não só fiz a massagem, como depois do convívio, vendo o estado das unhas dele, grandes, tanto as dos pés como das mãos, perguntei se podia arranjar. E comoveu-me quando ele lamentou: ‘ó dona Andreia, eu não tenho mais dinheiro, só os 40 euros’. ‘Meu querido, não se preocupe, está tudo incluído’.” O valor acordado era para uma hora. X ficou mais de duas. “Só tratei de uma pessoa que estava precisando. Dando afeto e atenção.”

Andreia, profissional do sexo, esconde a cara, mas não o coração. No seu quarto não entram preconceitos. Os clientes deficientes são tratados como homens “normais”
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Andreia não tem ideia do impacto que esse acolhimento provocou. Mas Y, com paralisia cerebral, pode explicar. Há três anos que não recorria à prostituição. Este ano, voltou a fazê-lo por encontrar alguém que não o “explora” por ser “diferente”. A última mulher que aceitou recebê-lo cobrava-lhe 40 euros por 15 minutos. Agora, consegue que uma hora de companhia tenha o mesmo valor. “As pessoas com deficiência também devem ter uma vida sexual ativa e normal como as outras. Um corpo ‘torto’ também tem prazer. Também quer prazer. Estes preconceitos existem e o pensamento de que enquanto deficientes somos seres assexuados é algo que apenas está na cabeça de alguns. Erradamente.” Com 43 anos, Y já só quer mimos, não sexo. “Estar com quem se importe, porque ir às meninas já não me diz nada.” Ainda assim, dada a sua condição, recorrer à prostituição foi quase sempre a única solução. E nem era fácil. Ou porque precisava que algum amigo concordasse em ajudá-lo, levando-o. Ou porque corria o risco de ser rejeitado por elas. “Por preconceito ou por medo.”

Aos 37 anos, Liliana Viana olha a sua vida amorosa e sexual em perspetiva. Para a poetisa com paralisia cerebral, amante de arte e de viagens, a adolescência foi “absolutamente pavorosa”. Razões? A primeira vez que os seus lábios tocaram os de um rapaz, “ao de leve”, foi durante um joguinho entre amigos. “Calhou-me a criaturinha mais feia da turma.” Ainda assim, admite, “foi uma oportunidade”. Uma situação embaraçosa que se repetiu, não por azar, “mas porque era sempre a deficiente”. Lembravam-lhe com frequência. “A sexualidade para mim foi e é um problema.” Romântica desde que se conhece, sonhou com o príncipe encantado. Com o casamento, com os filhos. “E eu era gira e magra, mas aos 20 continuava sem ter dado um beijo a sério. Foi um desespero.”

“Se fosses uma mulher normal…”

Nessa altura, já na faculdade, começaram a surgir os amigos coloridos. Um termo usado por estigma. “Sim, eles não assumiam uma namorada com deficiência.” Termo que lhe foi condicionando a forma de ver os relacionamentos. De se entender enquanto mulher. Um desses amigos coloridos manteve o rótulo por sete anos. “Na verdade, foi uma relação longa, mas ele só aparecia de vez em quando.” Hoje, percebe, era manipulada. “Tinha uma necessidade tão grande de afeto e de encontrar alguém, e no meu caso não é propriamente fácil, que eles usavam isso contra mim.” Esse em específico dizia-lhe: “Se fosses uma mulher normal os homens faziam fila”. Liliana sentia que era.

Mais à frente, passou a frequentar discotecas. E, brinca, “às escuras os defeitos mal se viam”. Os convites para cafés que se seguiam obrigavam-na a preparar terreno. Contava que tinha paralisia cerebral. “Um dia, um quis saber se ainda assim eu era mulher.” Nada por mal, mas as frases gravadas na memória. Pior quando eram ditas pelos amigos. “Ó Lili, já que não vais ter família, filhos, nem essas preocupações, podes estudar até ao fim da vida.” O problema é que Liliana queria viver. Apaixonar-se, ser feliz. Mas a lista de deceções é grande. “Eu tenho hipertonia muscular, não se vê, mas causa-me bastante sofrimento.” Dores pavorosas. Espasmos sem fim. Um desses “namorados” não percebia. “Chegou a olhar-me nos olhos, enquanto fazíamos amor, e perguntou: ‘porque é que estás a fazer essa cara?’.” A vergonha prolonga o silêncio.

A poetisa Liliana Viana cresceu rodeada de sonhos. Acreditava no príncipe encantado, no casamento feliz e na casa cheia de filhos. Mas a realidade mostrou-lhe uma face dura. Hoje, não está disposta a desistir de nada. Só do amor
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Recentemente, voltou a ter uma relação. Iludiu-se, achou que ia resultar. O namorado era atencioso, assumiu-a, passeavam, mas depois… “Ele queria uma dona de casa.”A vida sexual também não encaixava. “Até porque eu própria ainda estava a perceber este corpo em mudança.” Voltou a experimentar a sensação do fracasso. “Gente como eu dá trabalho.” E agora só pensa: “Eu vou ficar pior, um dia vou precisar que tomem conta de mim. Quem vai querer ficar com uma pessoa como eu? Eu sei o que é ser um peso para outra pessoa. Se ficar sozinha, que seja. Já chorei muito, mas não vale a pena.”

Inês Braga e Ricardo Alves vivem uma realidade oposta, navegam na esperança. Mesmo que a paralisia cerebral a ela lhe taxe com 95% de incapacidade e a ele com 85%. O que lhes falta em mobilidade compensam em amizade, amor e boa-disposição. Conheceram-se na Villa Urbana de Valbom, unidade da Associação do Porto de Paralisia Cerebral (APPC), um edifício que acolhe, entre outras valências, um regime de habitação permanente, em apartamentos individuais, com mais de 30 pessoas. É lá que o casal vive. Cada um no seu canto. Por opção. A jovem, de 34 anos, conta que conquistar o amor foi uma tarefa difícil. “Agora costumo dizer, na brincadeira mas a sério, só o largo quando virar lésbica.”

A relação dura há quatro anos. O pedido de namoro seguiu os preceitos. Com champanhe e alianças. Estão comprometidos. Entregues um ao outro. Em tudo. Aos 44 anos, Ricardo confessa que foi preciso Inês chegar à sua vida para descobrir todo um outro mundo, sem tabus. “Foi a primeira mulher que eu vi como veio ao mundo. Foi a minha primeira parceira sexual. Com quem aprendi, muitas coisas.” No sexo, como no resto da vida, complementam-se, sabendo das suas limitações. Inês fala pelos dois. “A sexualidade vai muito para além do ato sexual, da penetração. A atenção e o abraço são mais fortes. Os laços afetivos valem mais do que cinco minutos de prazer.”

Não há coitadinhos

Para tudo é preciso uma aprendizagem e adaptação. “E se não dá para a direita dá para a esquerda. Temos de nos aceitar tal como somos.” Esse é que é o desafio: como é que um casal de namorados reage à limitação do outro? “Eu sou o complemento do Ricardo. Há coisas que eu não consigo fazer e o Ricardo ajuda-me. Há coisas que o Ricardo não consegue fazer e eu ajudo.” A ideia que como pessoas com deficiência querem passar é clara. “Não há coitadinhos”, acentua Inês. “Há duas pessoas que têm vontade de ter momentos íntimos, mesmo que isso queira dizer que não seja o habitual sexo. É um complemento. Tem é de haver aceitação plena”, acrescenta Ricardo. Primeiro deles, depois dos outros. Até porque, para estarem juntos, precisam da ajuda de uma terceira pessoa. Tem sempre de haver quem os dispa, quem os ponha na cama. Quem trate deles a seguir. Isto depois de terem o selo de aprovação da APPC.

Inês e Ricardo andam há quatro anos a fazer caminho juntos. Aceitam-se e experimentam-se, apesar de todas as limitações
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Ali na Villa, o contacto sexual obedece ao cumprimento de alguns trâmites. Primeiro, as pessoas solicitam a vontade de estar juntas. Depois, ativa-se um protocolo, com entrevistas, consultas e avaliações, para que a equipa técnica e os psicólogos possam assegurar que há real vontade dos dois e que nenhuma das partes está a sofrer abuso ou a ser coagida a fazer algo que na verdade não queira, ou para a qual não está preparada. “No nosso caso, esse processo durou mais ou menos seis meses”, esclarece Ricardo. No fim, depois de preparados, ficaram a sós. “Cientes que íamos fazer o que conseguíssemos fazer sozinhos, que é mínimo, mas é o que nos satisfaz.” E ajuda não sentirem julgamento no olhar de quem está ali para os apoiar.

João, auxiliar, entende-os perfeitamente. Esconde-se atrás de um nome fictício para se proteger, para não expor a unidade em que trabalha, nem os utentes que, de certa forma, acabam por se tornar amigos. No que toca aos encontros íntimos, ele próprio já ajudou a “preparar casais”. No início ficava reticente: “Não me queria envolver muito quando nos puseram a hipótese”. Depois, refletiu. “Ao trabalhar ali, estava a fazer o que eles não conseguiam. Senti-me na obrigação.” Até porque, como admite, “será sempre pior para eles do que para quem os ajuda”. A solução é usar algum humor, “desanuviar o ambiente’’. “Atualmente já é mais descontraído. Depois eles ficam na vida deles e só lá vou levantá-los de manhã.” O assunto é, inevitavelmente, tema de conversa com os colegas. Porque todos reconhecem que “pedir para ter relações sexuais é constrangedor, mas necessário”. No caso de João, a ajuda até ultrapassa o expediente. “Apoio no que posso. No que consigo.” Nesse contexto, chegou a facilitar o contacto entre deficientes e prostitutas. “Mas há mulheres que se recusam por achar a condição deles repugnante. Têm nojo.” João suspira. “O tema é delicado. Para já, a prostituição é a saída, principalmente para os homens. No caso das mulheres, nem sequer se ouve falar.”

O presidente da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral, Abílio Cunha, põe o dedo na ferida. “O sexo feminino é mais fustigado pela família no que à sexualidade diz respeito. É tabu. E depois há o medo de que engravidem.” Dos filhos serem também deficientes. De não saber como podem cuidar deles. “Criando nas pessoas grande angústia.” O casal citado acima, por exemplo, já discutiu o tema. Quer Inês quer Ricardo gostavam de ser pais. Mas ambos chegaram à mesma conclusão. “Se já sozinhos é difícil, devido às nossas dificuldades físicas, imagine-se com um bebé. Teria de ser mais um encargo para alguém, pelo menos até a criança ter alguma autonomia.”

Por estar a par desse género de receio, Abílio Cunha fala também na qualidade de marido e de pai, com paralisia cerebral. “As consultas de planeamento familiar existem para as pessoas com deficiência. Mas nem sempre elas vão.” No seu caso, tal não foi preciso. Com Mónica, animadora sociocultural, teve dois filhos, um rapaz e uma rapariga. A paternidade foi como nas outras áreas da sua vida algo extraordinariamente normal. “Ou não faria sentido partilharmos uma vida. A dois”, salienta Mónica. Mas, antes de aí chegar, Abílio estudou, até onde quis. Trabalhou na mercearia da família, tirou a carta, inseriu-se cedo nos movimentos associativos. Foi assim que em 1987 a conheceu na APPC. Não foi amor à primeira vista, reconhecem os dois. O relacionamento foi evoluindo naturalmente “como acontece com qualquer pessoa”. E para Abílio o “ai, eu sou deficiente, nunca vou conseguir conquistá-la” nem lhe passou pela cabeça. O amor àquela rapariga fê-lo descobrir novas sensações, como o desejo sexual. “Não foi logo. Enquanto pessoa não sinto necessidade do ato sexual propriamente dito. Tem de ser conjugado com os sentimentos, com a afetividade, com o respeito.” O namoro avançou. Em dois anos casaram-se. Passados mais dois, tiveram o primeiro filho. E em todas essas etapas houve quem se espantasse. Uma ou outra amiga que não compreendia como é que Mónica conseguia. A obstetra convencida que a grávida levava o irmão às consultas e não o pai dos seus filhos. Vizinhos que achavam que os amigos do casal que tinham paralisia cerebral só podiam ser irmãos de Abílio – “Coitadinha da vossa mãe, teve tantos assim”.

Abílio e Mónica Cunha são um casal. Ele tem paralisia cerebral. Ela não. Nada que impeça 30 anos de felicidade. Como presidente da Federação de Associações de Paralisia Cerebral, Abílio sabe que a afetividade na deficiência tem ainda muitos muros para derrubar
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Também houve episódios caricatos nas famílias, embora de forma mais ténue. “Para os meus pais, o meu casamento nunca foi uma hipótese, inconscientemente pensaram que eu ou viveria numa instituição ou na residência de algum familiar. No entanto, fui o primeiro dos meus irmãos a casar”, goza Abílio. E Mónica também assume: “Mentiria se dissesse que nunca tive bloqueios”. Como no dia em que contou quem era o namorado. “Foi um choque”, que passou mal o conheceram. E quando o primeiro filho nasceu, a avó de Abílio tinha urgência em ver o bebé. Disse alto e bom som: “Deixa-me ver se não tens os pés e as mãos tortas do teu pai”. Recordações que guardam com humor. “Temos de levar a brincar. Mas, coitadinha da velhinha, não sabia, achava que a paralisia cerebral era hereditária.” Não é.

A afetividade e a autonomia da sexualidade na deficiência são quase sempre ignoradas e negligenciadas. “A começar pela família.” A frase pertence à terapeuta ocupacional Daniela Lopes, que fez uma tese de mestrado na área. No fim, concluiu que as pessoas mais próximas, nomeadamente a família, acabam por constituir uma grande barreira à participação dos deficientes na sexualidade. “Muitas vezes porque negam durante muito tempo que a pessoa com algum tipo de limitação possa vir a ter interesse sexual em alguém.” Por norma, o foco dos pais durante o crescimento de uma criança está muito voltado para as questões da aprendizagem, para a escola, para o andar, para a fala. “Durante toda a primeira infância até à adolescência, tudo o que devia ser trabalhado para preparar as pessoas para esta realidade não existe.” E, no caso da deficiência, os técnicos também acabam por ir respondendo às dificuldades e necessidades que os pais apresentam, que estão muito no plano do que é visível, esquecendo-se a afetividade e a sexualidade. O problema é que, quando for abordado para ter uma relação sexual, “não vai perceber o que isso significa, o que implica”. E assim se chega aos 17 e aos 18 anos com comportamentos imaturos face à sexualidade, “por ser uma novidade”, porque o que descobrem por eles mesmos “não têm com quem partilhar”. O que era evitável, defende Daniela Lopes. “Porque não é uma área à qual devemos dar um tratamento diferenciado. Devemos falar sobre ela como falamos sobre qualquer outro aspeto da vida. Entendendo quais são as necessidades que cada população tem. O nosso papel aqui é ir acompanhando toda esta evolução e ir facilitando dentro daquilo que é possível nas diferentes situações.”

No que respeita ao contexto institucional, tem havido melhorias, mas ainda há muito a fazer. Principalmente na privacidade e no conforto dos utentes para que vivam a sua sexualidade de forma autónoma. Em contexto residencial, isso é mais evidente. “São várias as instituições residenciais que apenas têm quartos partilhados. E como é que podemos facilitar a vivência plena da sexualidade da pessoa quando não conseguimos garantir privacidade?” Mais. “Se eu em minha casa deixo entrar quem eu quiser, e se queremos que as pessoas neste caso com deficiência ou incapacidade tenham a sua casa, tenham a sua autonomia, porque é que elas não podem levar para dentro das suas casas quem elas bem quiserem?”

Questões que, confessa Abílio Cunha, estão longe de ter resposta. “Estamos no mesmo ponto de há 20 anos. O que é grave se pensarmos que nalguns casos, as pessoas nem masturbação conseguem fazer. É terrível. Tenho colegas que acabam os cursos superiores, superam muitas dificuldades, mas depois dizem: ‘a minha vida não faz sentido porque ninguém gosta de mim’.” Mónica aproveita para lembrar que, no seu caso, se apaixonou por Abílio como podia ter-se apaixonado por outro rapaz. “Ele estava no grupo de amigos. Não é só com teses de mestrado na sexualidade, seminários e palestras que vamos lá. Porque isso não chega à realidade das famílias. A afetividade e o namoro vêm do contacto que temos uns com os outros. Faltando isso não pode haver o resto.”

A crise na adolescência

No Mundo, aproximadamente 15% da população tem algum tipo de deficiência ou incapacidade. Em Portugal, estima-se que mais de 600 mil pessoas vivam com limitações a nível físico ou mental. A saúde sexual é considerada uma das dimensões centrais da saúde em geral e consagrada como um direito de todas as pessoas pela Organização Mundial de Saúde. No dia a dia falha.

Isabel Monteiro e Hélder Campos, os pais de Martim, que já conta 12 anos, andam preocupados. O filho tem uma “raríssima” que os próprios médicos ainda não conseguiram definir. Como ele, sabe-se que há mais sete casos no Mundo. À parte disso, acabaram de despertar para a sexualidade do filho. Mas, ao contrário de outros progenitores, não a negaram. Nem esconderam. Pelo contrário. Partilharam-na com a família, para que ninguém fosse apanhado desprevenido. Avisaram a escola, para que haja compreensão e até proteção. E pediram orientações à médica das doenças metabólicas, para facilitarem a vida do filho. “Temos vindo a procurar respostas desde que percebemos que ele está muito desenvolvido sexualmente”, conta o pai, que já lhe tentou explicar e ensinar “o que deve fazer”. Uma tarefa que não se tem revelado fácil. “Ele não nos deixa chegar perto, está a descobrir à maneira dele”, constata Hélder.

Hélder e Isabel, pais do pequeno Martim, dão a cara pelo direito à sexualidade do filho. Têm procurado compreender como podem ajudar o filho. Contudo, só acumularam mais dúvidas
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

As dúvidas são muitas e legítimas. O próprio menino entende que algo de novo se passa. E tem vergonha do que desconhece. “Inicialmente enfiava-se na cama”, confidencia a mãe. “Aos poucos, fomos dizendo que era normal, mas que só podia acontecer no quarto, na casa de banho, à noite”, para que não sofra, por exemplo, em ambiente escolar. “Como anda na natação e tem de se despir e tomar banho, há essa preocupação. Não sabemos se mais para a frente não vai ceder a impulsos e queremos ajudar.” Terá apetite sexual certamente, mas como vai fazer para o aliviar? Conseguirá perceber que da prática do ato poderá haver consequências? “Não sabemos. ” Como não sabem que recursos terão para o ajudar à medida que a criança se desenvolve. “Pode vir a precisar de acompanhamento, mas essa figura para já não existe. Devia ser um assunto mais abordado, principalmente com os pais. Estamos assim com um menino de 12 anos, imagine-se quando tiver 30”, questionam-se.

Essa é a luta que Rui Machado trava há anos. Por informação, por esclarecimento, por soluções. O ativista dos direitos das pessoas com deficiência, membro da comissão coordenadora dos “(d)Eficientes Indignados” e da direção do “Centro de Vida Independente”, tem uma doença neuromuscular genética e evolutiva. Só em adulto percebeu que a sua sexualidade tinha sido cortada da agenda das prioridades. Socialmente, o assunto compete com as questões do emprego, das acessibilidades e das muitas reivindicações legítimas deste grupo de pessoas. “Então optámos pela criação de um movimento isolado, próprio.” Cuja missão é trazer para o espaço público português um debate negligenciado academicamente, institucionalmente, politicamente. À “Notícias Magazine” resume os três pontos que sustentam essa guerra. Um, somos um todo e esse todo tem de ser considerado. “É a normalização daquilo que é absolutamente normal, que duas pessoas estejam juntas por um sentimento, seja em que contexto surgir e tenham as pessoas as características que tiverem.” Dois, é preciso conscientizar. A começar pelas próprias pessoas com diversidade funcional. “Para que percebam que têm o seu direito a uma vida sexual e afetiva. Ao longo do tempo, foi-lhes incutido padrões de incapacidade, de incompetência, de invalidez, como desvantagem. Por incrível que pareça muitas delas aceitam o facto de não poderem ter uma vida afetiva.” E, por último, denunciar e provocar o debate acerca das grandes dificuldades e entraves que vivenciam as pessoas com deficiência, na tentativa de se realizarem a nível sexual e afetivo. “Claro que para resolver um problema temos de o conhecer, quais são as barreiras que existem? Só assim podemos contribuir com soluções reais, sejam elas quais forem. Temos de perceber a realidade do país e implementar alternativas.”

Rui Machado é cofundador do movimento “Sim, Nós Fodemos”. Um grupo que tem por missão informar e relançar o debate da sexualidade na deficiência
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

A assistência sexual é uma direção. Contudo, antes importa saber o que é. Já há vários modelos lá fora. Dinamarca, Holanda, Suíça, Espanha, República Checa. E em todos a figura de assistente sexual se revela distinta. “Por isso, é importante discuti-los, saber o que se adequa ao nosso país.” No movimento em que Rui tem voz ativa, há uma preferência pela ideia de um ativista catalão, Antonio Centeno, que defende a figura de assistência sexual como facilitador do acesso ao próprio corpo. “Ter alguém formado a ajudar em situações de masturbação, quando a pessoa não é capaz sozinha. Ou a ajudar casais com deficiência, que precisam do apoio de um terceiro elemento. Esta visão não estigmatiza a pessoa com deficiência, já que se distancia da prostituição, que não deixa de ser uma escolha possível, como é para qualquer pessoa.” Aliás, defende Rui, “seria desejável que se acabasse com o vazio legal existente no nosso país sobre a prostituição, legalizando-a para segurança e dignidade de profissionais e clientes”.

Não viver a sexualidade “tem implicações sérias e diretas no desenvolvimento pessoal de cada um, na autoestima, nas relações diárias”, salienta Rui. O que é válido para quem não tem limitações como para quem tem. E para que não restem dúvidas de que os deficientes e as pessoas com paralisia cerebral não são assexuados, foi dado um nome bem polido a este movimento que trabalha por soluções. Chama-se “Sim, Nós Fodemos”.