A saudade é só nossa?

A origem da palavra foi objeto de algumas discussões (Ilustração: Bárbara R.)

No fado e na literatura, como na vida, ela é apresentada como o bilhete de identidade da alma lusa: um sentimento incompreensível para os que não são portugueses e uma palavra intraduzível para outras línguas. Mas será? A saudade, na verdade, diz menos sobre quem somos e mais sobre como escolhemos ver-nos.

É considerada tão sinónimo de Portugal como o galo de Barcelos. E tem a particularidade de convocar, simultaneamente, a nostalgia do passado e a do futuro, colocando-nos, afinal, sempre ansiosos por um tempo que não é aquele em que vivemos. Se Portugal se deitasse no divã do psicanalista a discorrer sobre si próprio, provavelmente sairia de lá com a prescrição de alguns exercícios de mindfulness, para se conseguir focar no agora, parando de valorizar o passado em detrimento do presente e desdenhando o presente à custa da idealização do futuro.

A ideia de que a saudade corresponde a um sentimento especificamente português é muito difícil de sustentar. “Ela relaciona-se com sentimentos como a nostalgia, a tristeza, a perda, a ausência e a melancolia que existem no ser humano, qualquer que seja a cultura ou nacionalidade”, garante Maria Manuel Baptista, professora catedrática da Universidade de Aveiro, na área de Estudos Culturais. “Por isso, longe de designar uma especificidade real da cultura portuguesa, a palavra sinaliza antes uma certa autorrepresentação que os portugueses têm de si próprios. E isso articula-se com um conjunto mais vasto de representações da nossa identidade, muito ancoradas na sobrevalorização do nosso passado, do qual talvez ainda não tenhamos saído completamente.”

Apesar de ter surgido na poesia da Idade Média, foi já na viragem para o século XX que o conceito se afirmou. “Foi na esteira do intenso debate resultante da crise monárquica e do golpe imperial infligido pelo Ultimatum britânico que a saudade se tornou um assunto preeminente na cultura e literatura portuguesas”, lembra Elsa Peralta, investigadora do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorada em Ciências Sociais, na especialidade de Antropologia Cultural. “Na consequência de crises associadas a um ímpeto nacional-imperialista surgiram vários movimentos nacionalistas, um deles o saudosismo, um movimento literário que visava resgatar a verdadeira ‘alma portuguesa’ contra influências estrangeiras e restaurar o esplendor perdido de Portugal. Segundo os proponentes, a única característica exclusiva do ser português seria a saudade.”

E, segundo o saudosismo, essa singularidade da “alma portuguesa” estava na origem das conquistas mais grandiosas da história lusa, como a chamada Era dos Descobrimentos. “O resgate dessa alma seria, segundo o movimento, o primeiro passo para restaurar a glória perdida da nação. No Estado Novo, marcado por uma intensa celebração da identidade nacional, são recuperados os debates anteriores sobre a psicologia étnica portuguesa. O mais distinto e simbolicamente investido desses traços nacionais ou características psicológicas que comporiam o caráter português seria o conceito ou a emoção da saudade”, esclarece Elsa Peralta.

O constante confronto com o presente

A origem da palavra foi objeto de algumas discussões, mas a mais provável, segundo Marco Neves, professor de tradução na Universidade Nova de Lisboa e autor de vários livros de divulgação sobre língua portuguesa, é a palavra latina para “solidão”. “Nos primeiros textos da nossa língua aparece com a forma ‘soidade’, palavra que existe também em galego e é usada tanto na poesia medieval galega como portuguesa. Acompanhou, de facto, toda a história do português e do galego e aparece também em línguas próximas, como o cabo-verdiano e o mirandês.”

“Saudade” aparece inevitavelmente em todos os textos e estudos sobre palavras “intraduzíveis”, entre eles o “Dictionary of Untranslatables”, publicado pela Princeton University Press (2004). Mas Marco Dias deita o mito por terra. Embora reconhecendo que pode ser difícil de traduzir em certos contextos, lembra que “é traduzida todos os dias, em muitos textos, apesar de, para certas línguas, ser preciso usar mais palavras. A tradução nunca é uma operação de substituição de palavra por palavra”.

Apesar disso, o tradutor garante que, mesmo enquanto palavra isolada, há línguas em que encontramos palavras com um significado muito semelhante, como “dor”, em romeno, e “hiraeth”, em galês. “Dizem-me: traduzir ‘tenho saudades tuas’ como ‘I miss you’ [em inglês] não capta todas as conotações da palavra. Ora, isso é verdade para tantas e tantas palavras.”

A saudade é parte da memória coletiva nacional
(Ilustração: Bárbara R.)

De facto, haver palavras que não têm equivalente de só uma palavra noutras línguas não é invulgar. Veja-se o italiano “gattara”, uma mulher geralmente idosa, que vive sozinha com muitos gatos. Ou “kilig”, o termo filipino que descreve a sensação intensa e nervosa de conversar com alguém de quem se gosta. Ou “komorebi”, que em japonês designa o efeito da luz do sol a passar pelas folhas das árvores. Ou ainda a holandesa “uitwaaien”, que retrata o efeito revitalizante de uma caminhada ao vento. Nenhuma delas tem qualquer equivalente de uma só palavra em português.

Por muito que se procurem perspetivas diferentes para o apego português à saudade, parece inevitável regressarmos sempre ao mesmo tempo: o dos nobres heróis que partiram para a imensidão do mar nas suas pequenas caravelas, dando “novos mundos ao mundo”. “Foi esta parte da nossa história que fez com que fossemos construindo esta preferência por nos vermos a partir do elemento da saudade”, alega Maria Manuel Baptista.

Essa é uma visão persistente. “Os portugueses continuam, hoje, a ver-se a partir desse lugar, e isso tem consequências: esta visão nostálgica do passado e do futuro faz-nos estar em constante confronto com o presente”, defende a investigadora em Estudos Culturais. E exemplifica: há uma reação visceral de uma grande parte dos portugueses quando se fala do racismo e do colonialismo associados aos Descobrimentos. “A generalidade dos portugueses continua a ver essa parte da história a partir da narrativa da epopeia. Não nos podemos esquecer que, quando falamos de factos históricos, estamos a falar sobretudo de sentidos atribuídos, do que lembramos e do que esquecemos, do que recalcamos e do que não queremos saber.”

Uma certa nostalgia imperial

Rosa Cabecinhas, professora do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho e investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, tem feito trabalhos sobre cognição histórica que abrangem um conceito interessante relacionado com o passado: a nostalgia imperial. Estes estudos comparativos sobre as perceções históricas de jovens de diferentes países de língua oficial portuguesa – cujos dados, em Portugal, foram recolhidos em 2003, 2009 e 2016 – demonstram que, quando questionados sobre os acontecimentos mais importantes da história deste país (livremente e sem qualquer tipo de condicionamento), os Descobrimentos são destacados pelos portugueses como o “período de ouro” do país. “Verifica-se uma certa nostalgia imperial, na medida em que são vistos como a fase mais positiva da história da nação, associados a um padrão emocional de orgulho, admiração e felicidade. Isso contrasta com as memórias e as perceções históricas dos jovens de outros países de língua oficial portuguesa, nomeadamente de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau”, explica Rosa Cabecinhas.

“Saudade” aparece inevitavelmente em todos os textos e estudos sobre palavras “intraduzíveis”
(Foto: Ilustração: Bárbara R.)

A investigadora defende que, ainda que nos últimos anos haja uma maior discussão pública sobre a necessidade de “descolonizar o pensamento”, nos seus estudos a contestação à narrativa dominante – que silencia alguns dos aspetos mais negativos da história – só surge quando os jovens são diretamente questionados sobre isso. “O tráfico de escravos, por exemplo, é muito referido de forma espontânea pelos jovens de países como Angola ou Guiné-Bissau, mas praticamente esquecido pelos portugueses. Quando se fazem perguntas específicas sobre o assunto, consideram-no extremamente negativo, mas, se não se perguntar de forma direta, raramente é mencionado de um modo espontâneo.”

Isso mostra que há padrões de lembrança e de esquecimento decorrentes dos processos identitários. Mas o que a investigação comparativa também mostra é que esta forma de olhar a história não é uma originalidade portuguesa. “Há vários países europeus, por exemplo, que têm a narrativa de que foram os melhores colonizadores”, sublinha a investigadora. Um projeto europeu em que participou, com o objetivo de estudar as representações históricas na Europa, mostra que a nostalgia face ao passado e a tendência para o olhar interpretando-o como melhor do que o presente é um fenómeno comum. Em quase todas as histórias nacionais há aqueles que são considerados os “períodos de ouro” da nação, e um efeito nostálgico. “Há um olhar para o passado muito unidimensional, simplificado e polarizado, com os eventos a serem vistos ora de forma muito positiva, como os ‘grandes feitos da nação’; ora de forma muito negativa, esquecendo a complexidade.” Este enviesamento pode ser observado um pouco por toda a parte. “Por exemplo, quando Donald Trump diz ‘Make America great again’, está implícita esta mesma noção de que antigamente, em tempos já passados, é que tudo era bom. Mas não se interroga: era bom para quem?”, diz Rosa Cabecinhas.

Sendo certo que a saudade é parte da memória coletiva nacional, é igualmente certo que a realidade de ser português é menos uniforme e mais conflitual do que parece. “Dentro deste ‘nós’ existem muitos fragmentos regionais, locais, de género, de classe, de raça, de ideologia. Existe uma história identificada como comum, mas há pessoas e grupos com percursos particulares que, muito frequentemente, não se identificam com essa narrativa coletiva”, lembra Elsa Peralta. A investigadora recorda ainda que, apesar da estabilidade das narrativas históricas, elas são sempre passíveis de serem contestadas. E conclui: “A história pode ser reescrita”. É possível que, no futuro, seja precisamente isso que vai acontecer com o conceito de saudade.