A pandemia tirou-os da prisão

Condenada por tráfico de estupefacientes, juntamente com o marido - que continua na cadeia -, Joana foi punida com uma pena de cinco anos e três meses (Foto: André Vidigal/Global Imagens)

Gabriel estava a jantar. Quando soube que ia sair paralisou. Já nem conseguiu levar o garfo à boca. Joana riu. Riu muito. Não resistiu a abraçar a colega que tinha ao lado. Paulo agradece a Deus. Pelo homem que é hoje e pela oportunidade que tem nas mãos. Histórias de três ex-reclusos a quem a covid escancarou as portas de uma nova vida.

Gabriel ainda hoje recorda com detalhe aquele estado de transe. Imóvel, sem sombra de reação, o limbo de quem resiste a acreditar na chegada da notícia mais desejada. “Arruma as tuas coisas que vais embora.” O anúncio do guarda de serviço fê-lo parar no tempo. Jura que congelou. Antes tinha ido buscar jantar ao refeitório do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo (Matosinhos) e estava na cela a saborear uma massa à italiana, banho já tomado, a rotina que se cola aos dias de quem conhece demasiado bem os meandros da cadeia. “Estava com o garfo na mão e já nem o levei à boca. Fiquei só ali bloqueado.”

Quando voltou a ele foi um ver se te avias. Arrancou os lençóis da cama à pressa, deu-lhes um nó e seguiu ligeirinho para a lavandaria. Tratou das contas também. Pelo meio ligou ao cunhado, para que o fosse buscar. Era sábado de Páscoa, 11 de abril. Passava qualquer coisa das nove da noite. Aos pais nada disse. Fazia questão que fosse surpresa. Pouco depois, com o país parado à custa do estado de emergência, já seguia ele mais o cunhado rumo a casa. Parou primeiro em casa da irmã – uma de nove -, depois seguiu para os pais. “Ficaram todos contentes.” O rosto de Gabriel abre-se num sorriso largo, indiferente aos erros e aos anos carregados de reclusão. Passou as semanas que se seguiram em casa, só com uma saída aqui e ali para ir à padaria, estranha forma de liberdade. “Mas claro que estar em casa é muito melhor. Só a comida da mãe e das irmãs faz toda a diferença”, brinca. E a noite a fazer-se, por fim, um suspiro de paz. “A primeira sensação é de alívio. Posso-lhe dizer que durante quatro anos nunca dormi descansado. Há sempre o medo de que aconteça alguma coisa.”

Gabriel Rocha, 38 anos, natural de Santa Maria da Feira, foi um dos 1 929 reclusos que beneficiaram das medidas de flexibilização das penas relacionadas com a covid-19. Destes, 691 foram autorizados a beneficiar de uma licença precária de 45 dias prorrogáveis, 14 usufruíram de indultos concedidos pelo presidente da República e 1 124 foram libertados antecipadamente, mediante condições específicas: estarem a cumprir penas de curta duração, até dois anos, ou, tendo sido condenados a penas superiores a dois anos, já terem cumprido mais de metade da pena, faltando-lhes menos de dois anos.

Era o caso de Gabriel. Tinha sido condenado a pena acumulada de quatro anos e quatro meses por condução de veículo automóvel sem habilitação legal e tráfico de menor gravidade. Se não houvesse covid, se o Mundo não tivesse sido tomado por um vírus que já chegou a mais de sete milhões de pessoas e provocou mais de 400 mil mortes, estaria fora da cadeia a 11 de maio. Tanto que já tinha ensacado tudo o que não usava amiúde. E a ansiedade há muito lhe tolhia os dias. Ainda mais sem visitas. Quase sem ocupação. Costumava trabalhar no bar dos funcionários, mas até isso a pandemia mudou. Em boa hora a liberdade se apressou. Chegou a 11 de abril, exatamente um mês antes do previsto. Pode parecer pouco. Gabriel garante que não. Que para quem conta os dias para sair, um mês soa a eternidade. “Faz muita diferença, claro que faz. Cada dia que passamos lá dentro parecem-nos meses.”

Ainda por cima era sábado de Páscoa. Foi como se também ele, que vai pouco à missa mas que todas as noites se benze antes de dormir, tivesse ressuscitado. Desde logo porque pôde passar a época com os dele. “Quem é que não gosta de estar com a família nestas alturas? Na cadeia são só dias iguais aos outros.” Confessa que desde que soube que haveria libertação de presos lhe nasceu uma esperança miudinha numa saída precoce. “Ouvíamos uns zunzuns, mas sabíamos que não podia tocar a todos. Acho que a contar nunca se está.” Daí o transe, o garfo que ficou suspenso no ar, o limbo de quem resiste a crer na boa nova desejada.

Gabriel saiu da prisão um mês antes do previsto. Garante que a benesse lhe soube a uma pequena eternidade
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Hoje, dois meses depois, vai refazendo a vida. Passo a passo, para não voltar a tropeçar. As manhãs passa-as a tirar a carta de condução, para que a falta de habitação legal não volte a ser um problema. À tarde, vai-se ocupando como pode. Faz uns biscates aqui e ali. E quer arranjar um trabalho a tempo parcial. “Prefiro engatar na carta e tirá-la de uma vez.” Depois, pensa em emigrar. “Se não tiver trabalho fixo cá, pondero ir para fora.” No currículo, tem um pouco de tudo. “Trabalhei muito tempo como calceteiro. Ganha-se bom dinheiro, mas dá cabo das costas. Também já trabalhei na construção, em cafés, um bocado de tudo.” E meteu-se nuns quantos trabalhos pelo meio. Em tempos, ainda jovem, chegou a ser preso por furtos. Depois, foram os consumos, o tráfico. “Só haxixe”, esclarece. Mesmo assim fez questão de ir para a Unidade Livre de Droga do EP de Santa Cruz do Bispo. “Achei que era bom para poupar a carteira da minha família, até porque lá dentro alimentar o vício torna-se mais caro. Mas também por ter muito melhores condições do que no regime comum. Tínhamos chuveiro dentro da cela e éramos nós a confecionar a nossa própria comida.” À custa disso, há quatro anos que não fuma um charro. Di-lo com orgulho. Entretanto, tinha já passado para a casa do regime aberto, qual prelúdio da liberdade que estava para vir e que quer agarrar a todo o custo. Mesmo que também deva um obrigado à pandemia. “Há males que vêm por bem.”

“O vírus ainda vai ser bom para alguém”

Joana (nome fictício, para não ficar presa ao estigma da reclusão), 33 anos, natural do Algarve, quase adivinhou. No princípio de março, quando receberam ordens para começar a preparar os pavilhões da Casa das Mães, no Estabelecimento Prisional de Tires, para o confinamento, já ela comentava: “Olhem que este vírus ainda vai ser bom para alguém.” A premonição não era exata. “Na altura só pensei em situações de liberdade condicional. Nunca pensei que fosse uma coisa tão ampla nem que nos trouxesse tantas benesses.” Nem pensou logo que lhe fosse calhar a ela.

Condenada por tráfico de estupefacientes, juntamente com o marido – que continua na cadeia -, Joana foi punida com uma pena de cinco anos e três meses. Em plena gravidez. “O meu filho nasceu durante a reclusão.” Mas a estadia na prisão acabou por ser bem mais curta do que a sentença inicial anunciava: dois anos e oito meses. Por culpa da pandemia também. Mas não só. “Graças ao meu bom comportamento, já tinha a expectativa de que me pudesse vir a ser concedida a liberdade condicional. Estava em regime aberto e já tinha vindo a casa três vezes. Mas não havia uma data. Nem sequer era certo. Acho que tinha 50% de hipóteses.”

Por sorte, a covid ajudou-a a fazer gato-sapato dos outros 50. Joana tem as datas na ponta da língua. Os contornos daqueles minutos da libertação também. A 18 de abril soube que tinha sido uma das contempladas para gozar de uma licença de saída administrativa extraordinária pelo período de 45 dias. “Eram umas 17.30 horas, tinha acabado de dar de jantar ao meu filho. Lá as crianças comem muito cedo. E estava à espera do meu jantar, às 18 horas, quando uma funcionária me chamou. Nessa altura, foi-me dada uma notificação da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a informar que me tinha sido atribuída a licença. E foi-me dito para trazer tudo o que tinha lá à exceção dos eletrodomésticos.” Joana lembra-se de rir, de rir muito. Era ela e outra, ambas com a mesma boa nova. Riram-se e abraçaram-se. “Não tanto pela questão da cadeia em si porque eu tenho a noção que se fazemos algo de errado temos de ser castigados por isso. Mas principalmente pelo menino. Antes de saber que ia sair, até já tinha combinado com uns familiares que o deixaria cá fora, com eles. Porque não estava a ser bom para ele.”

A covid acabou por dar uma ajuda. Tanto que a licença especial para uma saída precária de 45 dias depressa se transformou numa liberdade prolongada. Uma semana depois, no dia 24 de abril, foi chamada para uma audiência com o juiz e no dia 28 soube que ficaria em liberdade condicional. “Olhe, quando recebi o telefonema, estava exatamente no sítio em que estou agora: sentada na cozinha. A fazer uma papa para o meu filho, com a minha cunhada.” Só que dessa segunda vez, quando soube que desde que andasse nos trilhos se manteria longe da prisão, não conseguiu rir muito. Nem sequer saltou a abraçar alguém. “Comecei a tremer, fiquei branca, paralisei mesmo. Por muito que tenhamos aquela esperança de que vai acontecer, até ao momento em que temos a certeza vivemos sempre numa angústia.”

A de Joana terminou ali, naquele dia 28 de abril, no exato minuto em que foi tomada por um alívio monumental. Para trás ficam os dias sombrios da cadeia. “É mesmo daquelas coisas que não dá para imaginar. Só vivendo é que se percebe o que é a prisão.” Para ela, que foi mãe e reclusa ao mesmo tempo, e que viveu a gravidez e os primeiros tempos de vida do filho atrás das grades, a cadeia foi particularmente pungente. “A fase da gravidez foi muito difícil porque senti sempre que foi negligenciada. Felizmente o meu filho nasceu bem. Mas só o facto de ter de estar no hospital com guarda 24 horas por dia, de a primeira casa que o meu filho conheceu ter sido uma cela, de o primeiro carro em que andou ter sido uma carrinha prisional… tudo isso é horrível.”

Joana (nome fictício) viveu a gravidez e a maternidade atrás das grades. Agora só quer encontrar um trabalho
(Foto: André Vidigal/Global Imagens)

O lamento, e o arrependimento pelos erros que já não pode mudar, não lhe levam a vontade de refazer a vida. E de compensar os filhos por todas as tormentas. Filhos. Joana tem também uma menina de 14 anos, que faz questão de recuperar assim que puder (a criança está, para já, entregue aos cuidados de uma instituição). “Só quando tiver trabalho é que a posso ir buscar.” Por isso, as primeiras semanas em liberdade têm sido passadas numa correria incansável contra outro tipo de reclusão – a da falta de emprego. “Estou a ficar muito stressada, confesso. Uma coisa é uma pessoa estar presa e saber que tem de lá estar. E mesmo lá tinha atividades. Estar cá fora e não ter o que fazer dá cabo de mim. Não gosto de estar sem fazer nada.” Por isso tem corrido tudo. Já entregou currículos de Albufeira a Tavira, nas mais diversas áreas. “Já fui auxiliar de geriatria num lar e ao domicílio, já trabalhei em restauração, no campo, em supermercados. Sou uma pessoa de fácil aprendizagem.” Também por isso está confiante que a sorte vai virar, tal é a vontade férrea de aproveitar a segunda oportunidade que a vida lhe deu.

O regresso à vida

E se a covid lhe deu um empurrãozinho, Joana pode agradecer também à associação Dar a Mão. Criada em 1999 para apoiar reclusos, a comunidade atua sobretudo nas cadeias, graças a voluntários que servem de ombro amigo a quem está encarcerado. Mas a ajuda pode estender-se ao momento da saída. Seja garantindo o transporte a quem não o tenha ou até financiando as primeiras noites de liberdade, no caso de reclusos que não tenham para onde ir. Joana, que saiu da cadeia de Tires eram quase nove da noite e já não tinha transportes para seguir para o Algarve, teve direito à boleia de uma voluntária da associação. E a rede de suporte da Dar a Mão deverá crescer em breve, antecipa Rita Chaves, presidente da direção. “Estamos a começar a dar passos no sentido de dar uma resposta mais cabal, também ao nível da inclusão social.”

Para quem se vê na rua após anos de reclusão, tantas vezes sem o apoio da família e com a obrigação de refazer a vida num trapézio sem rede, com múltiplas tentações a insinuar o caminho do regresso à cadeia – dos 1 224 reclusos que foram libertados face às medidas excecionais motivadas pela covid, oito retornaram ao sistema prisional (dados de 5 de junho) – , as associações fazem as vezes de um anjo da guarda. É o caso da Companheiro, que há 33 anos trabalha com o propósito bem definido de dar apoio a quem sai. “Primeiramente, quando a associação foi fundada [por um capelão], o objetivo era proporcionar cama lavada e alimentação a quem não tivesse para onde ir”, contextualiza o diretor geral, José Brites. Agora, é mais do que isso. “É garantir que estas pessoas ganhem competências para a reinserção. Para que não haja homem excluído pelo homem.” Ao longo de mais de 30 anos, a Companheiro já deu a mão a milhares de pessoas. Com uma taxa de sucesso de 90%, assegura José Brites.

A comunidade teve um papel particularmente ativo nesta fase. “Sabíamos que a situação iria criar grande ruído e que, se não fizéssemos nada, parte destas pessoas se tornaria sem-abrigo.” Por isso, articularam-se com a Junta de Freguesia de Benfica – e mais tarde com a própria Câmara Municipal de Lisboa – para garantir, antes de mais, alojamento. Foi assim que cerca de 20 ex-reclusos ficaram instalados no parque de campismo de Monsanto. Depois, as várias entidades trabalharam em conjunto para que os recém-libertados pudessem ter uma ocupação laboral. Uns foram para a Junta de Freguesia de Benfica, outros para a de São Domingos de Benfica, outros para a Câmara. São cantoneiros, trabalham em oficinas, tratam da higiene urbana.

É o caso de Paulo Santos, 40 anos, natural de Aveiro. Depois de três anos e quatro meses no Estabelecimento Prisional de Sintra, trata agora da deservagem das ruas de Benfica. Encontramo-lo perto da hora de almoço, durante o horário de trabalho. “Já fiz a minha parte, agora estou aqui a ajudar os colegas”, atira, a meias com um sorriso bem resolvido.

Não foi sempre assim. Paulo aprendeu demasiado cedo que a vida pode ser sinuosamente ingrata. A mãe abandonou-o com um ano, o pai (entretanto falecido) só estava presente a espaços, ele ficou com os avós (que também já morreram) até aos oito anos, foi para a Casa Pia de Beja depois. Chegou a dormir na rua e a passar fome. Diz que já viveu um pouco de tudo. “Sei que fiz muita coisa que não devia ter feito, mas também sei que nunca tive ninguém no meu passado que me apoiasse.”

Paulo Santos esteve mais de três anos na cadeia por conduzir sem carta. Agora, trata da deservagem em Benfica
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

No meio do caos que lhe embrulhou a infância e a adolescência, foi pegando no carro do pai desde os 12 anos. “Aos 16 já conduzia sozinho.” Só que “por falta de posses” nunca tirou a carta. Mesmo que a vida adulta – e os vários trabalhos que foi tendo – tenham exponenciado a necessidade de o fazer. Então arriscava. Para não perder o trabalho, conduzia. Mesmo sem carta. Depois de ter sido várias vezes apanhado, acabou condenado a quatro anos e dois meses. Cumpriu três anos e quatro meses, até ter saído em liberdade condicional. Conta que pelo meio ainda teve um processo por violência doméstica, mas que conseguiu provar a inocência. Resiste a perder-se em lamentos. “Agradeço a Deus por ter ido preso, por ter passado por estas privações todas. Embora tenha sido duro, hoje sou mais forte, mais maduro, mais astuto, mais compreensivo.”

É também esse o papel da rede de suporte que o rodeia. “A humanização do processo é fundamental. Queremos que sintam que têm aqui uma segunda oportunidade, uma segunda oportunidade robusta”, sublinha Ricardo Marques, presidente da Junta de Freguesia de Benfica, que integrou seis reclusos libertados graças às medidas excecionais de contenção da pandemia. A aposta teve um propósito duplo. “Por causa do vírus tivemos um conjunto de colaboradores que, por serem doentes crónicos, ficaram impedidos de trabalhar nas áreas mais operacionais. Decidimos, por isso, criar aqui um projeto de formação de curta duração e rápida empregabilidade para dar um futuro a estas pessoas.”

É a pensar nisso que Paulo dá todos os dias o litro. Ainda mais porque recentemente recuperou a guarda da filha e já anda a pensar na forma de lhe proporcionar as melhores condições. Da covid diz que é assunto muito sério, que vê muita gente desvalorizar. Mas reconhece que, no caso dele, foi uma ajuda. “Já havia a perspetiva de poder sair mais cedo, mas ajudou a que se concretizasse.” E repete aquela frase já ouvida, quase gasta, mas que, nesta história – como na de Gabriel, na de Joana também – continua a fazer tanto sentido. “Há males que vêm por bem.”