A paciência de (bem) gerir birras

Liliana Ferreira com o marido, Nuno Rosa, e as filhas, Bia (esquerda) e Laura (Foto: André Luís Alves/Global Imagens)

Acontecem sempre por um motivo. Nem sempre evidente. É essencial para ultrapassar o momento. Três famílias asseguram não haver fórmulas para lidar com as crianças em estado de fúria e contam como alcançam o sossego no lar ou em público.

Em casa de Liliana Ferreira e Nuno Rosa, em Alcochete, há visitas indesejáveis. “Não gostamos muito da Dona Birra e do Dragão”, assinalam o marketeer, de 43 anos, e a consultora de comunicação, de 35. A apresentação destas personagens é feita numa entrada no blogue Emoções à Flor da Mente, com a narração de um episódio com a filha mais velha, Bia, de oito anos. “Não queria levantar-se e vestir-se depois de ter sido chamada meia dúzia de vezes”, relata Liliana, que um tempo antes tinha explicado a Bia e à irmã, Laura, de quatro anos, o que acontece quando a Dona Birra aparece: acorda o Dragão. Lembra que nesse dia, ao entrar no quarto da filha, “estava sob stresse” para não se atrasar e a sentir-se a “ferver por dentro com a choraminguice”. Foi então que libertou “um valente grito”. Por uns instantes, Bia também gritou. Após um momento de silêncio, mãe e filha conversaram sobre o sucedido. Bia confessou que se assustou e Liliana explicou-lhe que “Dona Birra não estava sossegada e acordou o Dragão, que desistiu e voltou a adormecer com o berro da mãe”.

Uma das birras que mais marcou Ana Sofia Pecegueiro, de 38 anos e bancária de profissão, de Oeiras, foi quando Clara “se atirou para o chão do supermercado”. Conta que foi “daquelas birras que quando não somos mães temos tendência a criticar”, Não a criança, mas os pais. “Pensamos que os nossos filhos nunca vão ser mal-educados ao ponto de terem uma reação daquelas.” Primeiro ficou surpreendida e só depois é que agiu. Como a petiz “já gritava pelas duas”, a mãe disse-lhe que se ia embora “muito baixinho e que ela podia ficar ali a gritar”. “Estava quase a virar a esquina quando a Clara se levantou e correu para me apanhar, deu-me a mão e esquecemos o assunto.” Clara tem hoje sete anos e esta situação ocorreu quando tinha dois. É a segunda de quatro irmãs – Leonor, de nove anos, Alice, de dois, e Isabel, de oito meses – pelo que em matéria de birras tanto Ana Sofia como o marido, José Pecegueiro, de 34 anos e técnico de análises clínicas, têm larga experiência. “Da mais velha à mais nova existem sempre birras”, comenta esta mãe que escreve sobre temas relacionados com a maternidade no blogue NotJust4Mums. Sobre a primeira birra diz ser um acontecimento que “causa sempre alguma estranheza” por ser inesperado. “Não estamos preparados e não temos o discernimento suficiente para avaliar o motivo e agir a partir desse ponto.”

Psicóloga no Porto e fundadora da clínica ForBabiesBrain, Clementina Almeida realça que as birras “têm o seu auge quando a criança atinge os chamados ‘terríveis dois anos’”, porém ressalva que acontecem em todas as idades. A psicóloga explica que é uma situação mais frequente nos mais novos, devido ao “cérebro inacabado e em desenvolvimento, nomeadamente o cérebro pensante ou superior, que ajuda a racionalizar as emoções e a ter controlo sobre os impulsos”. Aponta ainda o “limitado vocabulário para exprimirem as necessidades e sentimentos” e, em termos psicológicos, o facto de estarem a “desenvolver um processo de independência como indivíduos, que os impele a tomar decisões”.

Catarina Correia tem 42 anos, habita no Fundão e enfrentou a primeira birra quando o filho mais velho, Élsio, tinha dois anos. “Começou a lidar mal com as contrariedades.” O menino tem agora sete e a produtora cultural vive uma situação idêntica com Glória, acabada de chegar aos “terrible two, a adolescência da infância”. Nas primeiras vezes ficava nervosa, até porque, antes de ser mãe, sempre que presenciava uma birra, imaginava que jamais passaria pela mesma situação. “A verdade é que são coisas com que temos de lidar.”

A teoria de que as birras têm associado um mecanismo de manipulação é desmontada por Clementina Almeida. “Na nossa sociedade, muitas vezes, as crianças são vistas como mini-manipuladoras maquiavélicas, a conspirarem contra os adultos para conseguirem o que querem. É uma interpretação errada.”Há um denominador comum a todas as birras: “A dificuldade que a criança está a ter em lidar com a situação que lhe gerou raiva, ansiedade ou medo, por imaturidade cerebral”.

Catarina Correia, mãe de Glória e Élsio
(Foto: Filipe Pinto/Global Imagens)

Catarina identifica que as birras dos filhos estão “sempre ligadas à frustração e a contrariedades” e espoletam “quando insistem em ter algo que não lhes é concedido ou no final do dia quando estão cansados”.

Há sempre um motivo, assegura Ana Sofia Pecegueiro. “Nem que seja só porque têm sono, ou estão cansadas, ou não sabem lidar com o que sentem, ou querem algo no supermercado que não compramos, ou não querem comer o jantar, ou querem ver uma série televisiva em vez de estudarem. São todos motivos válidos. Há outros mais sofisticados, como a minha filha de nove anos, que aparentemente é bem-comportada, mas está a entrar na fase dos amuos e das respostas tortas. Também são birras.” Ana admite que os episódios durante o jantar são capazes de a “tirar do sério”. “Estamos cansados e sem paciência. Já tive de tudo, desde choro a vómitos ou gritos. Dá vontade de mandar toda a gente dormir sem comer, mas resistimos porque no fundo é isso que querem. Elas percebem como estamos e creio que acabam por abusar um pouco mais.”

Laura tem atualmente birras com mais frequência que a irmã, Bia. Liliana Ferreira, a mãe, recorda uma situação ao deitar. “A Laura esperneava e chorava imenso. Não queria que ninguém a abraçasse ou segurasse. Ficámos por perto, mantivemos a calma e garantimos que não se magoasse. Alguns minutos depois aninhou-se no nosso colo e adormeceu.”Apontam-se diferenças entre as irmãs: “A Bia foge para o quarto e bate com a porta. Fica lá a chorar, perguntando porque é que ninguém a compreende. Já a Laura cerra os dentes, fica furiosa, quer bater. É preciso contê-la para não se magoar nem magoar ninguém”.

“Os acessos em público provocam um grau especial de stresse e ansiedade nos pais”, afirma Clementina Almeida. E perante tais situações, dentro ou fora de casa, como devem os pais agir? Ana Sofia, Liliana e Catarina são unânimes em dizer que não existem fórmulas.

Para Bárbara Ramos Dias, psicóloga especialista em adolescentes, “o melhor remédio para as birras é ignorar”. Refere que durante as consultas alguns pais lhe dizem: “Bárbara, isso é muito bonito, mas não posso ignorar uma birra no meio de um restaurante”. Responde-lhes que é possível e indica-lhes que podem optar por “chegar perto, baixar ao nível, olhos nos olhos, segurar nos braços, falar baixinho e aconchegar com um abraço. Depois, ignorar os gritos”.

No entanto, salienta que “depende muito da personalidade das crianças”. Por norma, em consulta, faz uma avaliação e com base na mesma apresenta a melhor forma de os pais lidarem com os filhos nessas ocasiões. “Habitualmente, dou técnicas de relaxamento, respiração, de contagem e controlo do impulso, de substituição da raiva ou meditação para crianças”, menciona a especialista.

Não pode ser tudo como querem

Tradicionalmente, “acreditava-se que as birras tinham uma sequência previsível de estados emocionais”, que começavam com raiva e terminavam em tristeza. “Hoje sabe-se que tanto a raiva como a tristeza estão interligadas ao longo da birra”, defende Clementina Almeida. “O truque para o sucesso é não fazer nada e deixar que a raiva desapareça totalmente. Não se deve tentar racionalizar com a criança durante a birra.”

Catarina Correia tenta acalmar os filhos fazendo com que percebam que “não pode ser tudo como querem”. Contudo, reconhece que “nem sempre é simples” e muitas vezes perde a paciência e entra em desespero. “Sou uma mãe real, mas não sou perfeita. Somos humanos e nem sempre temos soluções para acalmar os filhos e gerir os desequilíbrios emocionais.”

José e Ana Sofia Pecegueiro com as filhas, Alice (esquerda), Leonor, Clara e Isabel
(Foto: André Luís Alves/Global Imagens)

Na opinião de Bárbara Ramos Dias, a situação piora se os pais entrarem em desespero. “Eles são o nosso espelho, temos de transmitir confiança, amor e assertividade.” Em algumas situações, não ceder é crucial. “As crianças são tanto mais seguras quanto mais sentirem firmeza nas regras e limites. Se os pais cedem, elas aprendem que podem insistir até vencer pelo cansaço”, destaca a psicóloga, que considera a assertividade importante, mas com amor. “Costumo dizer aos pais, a brincar, ‘regras + amor + pepitas de alegria’ é a solução.”

Os pais devem colocar-se no lugar dos filhos e perguntar-se a si próprios o porquê daquele comportamento, aconselha Clementina Almeida. Há sempre uma causa, desde “uma necessidade básica não satisfeita até um momento de sobre-estimulação, busca de conexão com os pais ou sentir o seu espaço invadido”. Depois deste passo, devem perguntar-se como é que a criança se está a sentir, pois “ajuda a adequar o comportamento do adulto e a evitar discursos disciplinadores”.

Liliana e Nuno admitem que eram menos pacientes com a primogénita. “Tínhamos menos conhecimento e menos recursos para lidar com as birras. Ficávamos desorientados. Chegámos a gritar-lhe de volta e ameaçá-la. Não ficávamos bem e procurámos aprender para responder de forma diferente”, conta Liliana. A criação do projeto Emoções à Flor da Mente, que além do blogue promove sessões formativas na área da disciplina positiva, ajudou este casal a adquirir mais paciência e empatia.

A boa gestão das birras passa por perceber o motivo pelo qual está a acontecer, frisa Ana Sofia Pecegueiro. “Acalmar a criança é muito importante para conseguir explicar o nosso motivo da recusa. Incitar ao diálogo é fundamental para mais tarde conseguirmos ter uma relação saudável”, sublinha esta mãe, que tenta perceber o que pode resultar com cada uma das quatro filhas. E quando sente que está quase a explodir com falta de paciência, lembra-se que ela é que é a adulta. “Tenho de ter controlo, embora nem sempre o consiga. Mas faz parte. Pais perfeitos só existem antes de terem filhos.”

Para Catarina, que considera os filhos “um doce de meninos”, chegar a um consenso é o melhor momento das birras. “Há um grande abraço e um reforçar deste vínculo tão forte. São a maior dádiva desta vida. Nós, pais, não temos um manual que nos ensine formas perfeitas de lidar com os filhos. Tentamos fazer o melhor e vamos aprendendo. A sermos melhores pessoas, sem dúvida alguma.”

Notas de ajuda

A criança é incapaz de controlar as emoções. Ela não está a desafiar a autoridade, percebe que é uma pessoa, mas uma pessoa que não sabe ainda gerir emoções, que não tem ferramentas para isso. As birras são um pedido de socorro deslocado em que a criança está a dizer “não sei como lidar com isto sozinha”.

Os pais devem:

  • Oferecer alternativas para expulsar a raiva.
  • Mostrar empatia, reconhecer e validar as emoções da criança e guiá-la.
  • Dar colo e deixar chorar.
  • Distraí-la.
  • Depois da tempestade, ter conversas construtivas, falar sobre o que aconteceu e ensinar outras formas de agir.
  • Em vez de dar uma palmada, devem explicar de forma clara e objetiva o que tem de acontecer.
  • Dar a escolher entre duas opções, explicando as consequências de cada uma delas.
  • Sugerir ações alternativas quando não se quer que a criança faça determinada coisa.
  • Quando/se perderem a paciência, usar isso para ensinar à criança o que aconteceu e como agir.
  • Prevenir birras sempre que possível (há padrões/rotinas também nas birras).

Os pais não devem:

  • Alterar regras ou ceder nos limites estabelecidos.
  • Guerrear por algo que não vale o desgaste.