A morte do pai

Quase no fim, a juíza entrou nos abismos da paranóia de G. Na última avaliação psiquiátrica pedida pelo tribunal, G. “iniciou um discurso em voz muito alta, acelerada, com alguma desorganização de marca paranóide, centrada na crença delirante de que o seu pai teria sido assassinado, o pai que era uma figura pública de política”. Há várias décadas, o pai de G. foi fundador de um pequeno partido de massas (se tal descrição for aceitável).
Na última fila, a meu lado, uma mulher estremecia a cada frase: “No entanto, G. acredita que o pai teria sido envenenado, não por razões políticas, mas pela sua actual companheira, que a doente designa como concubina, explicando em linguagem pseudo-erudita que a relação do pai não era nem namoro nem união de facto, e apenas se podia designar juridicamente como concubinato nos termos legais. Foi difícil interromper o discurso em que G. alegava que tinha várias provas desse envenenamento, mas até pelas supostas provas é possível perceber que o pai faleceu de causas naturais. Uma provável insuficiência cardíaca”.
A mulher a meu lado engoliu a saliva. Esperava a decisão. Pensei que podia ser a mulher a quem G. acusara de envenenar o pai. Esta não veio escutar a decisão sobre o seu futuro. A doença não a deixa aceitar que está doente.
A esquizofrenia começou há vinte anos e entrou em roda livre com a morte do pai. Era agora um combate brutal na Justiça. Psiquiatras contra psiquiatras, uns alegando que G. é controlável com consultas de ambulatório, outros dizendo que, uma vez que ela nem às consultas vai, tem de ser internada compulsivamente num hospital psiquiátrico. Médicos insultando as competências dos outros. Um dizendo sobre outro que este nem consultou G. Queixas ácidas na Ordem dos Médicos. Mas há outra ferida maior e em carne viva: é o irmão de G. quem pede o internamento à força da irmã mais velha.
– Vou de imediato ditar a sentença, disse a juíza.
E falou nos estados de agitação e delírio: “A amiga que descreveu como viu a casa dela quando lhe fez visita: as paredes com folhetos, postais, fotocópias de legislação, a cabeceira da cama com pionéses, as paredes da casa de banho cheia de folhetos. Também explicou o desespero que vê no irmão, que quer salvar a senhora G. e que, nesse desespero, o levou a ameaçar que se não fosse a uma consulta chamaria a polícia. Então a senhora G. lá foi, disse a senhora S. que esteve no máximo um quarto de hora, trouxe uma receita, não marcou nova consulta e até não a viu ir aviar essa receita à farmácia”.
“O tribunal ficou convencido”, prosseguiu a juíza: “É o senhor P. que, depois da morte do pai de ambos, tem provido ao sustento da senhora G. É ele quem compra a comida e os produtos de higiene, pois se lhe der dinheiro directamente, ela gastará noutras coisas”.
Nos abismos psicóticos há degraus reais por onde subir e descer. É verdade que G. tirou o curso de História com boas notas. Vivia com o pai e era sustentada por ele. “Após a morte do pai foi patente uma desorganização com pionéses cravados em quadros de valor para fixar neles lembretes, pionéses nos móveis, autocolantes no quadros, oferecendo bens de casa e do escritório do pai, volumes da biblioteca política e jurídica do pai.”
As “interpretações delirantes”, interrompendo o discurso sob forma de pressão. Alegando ser investigadora em várias universidades, formada em História e quase advogada, continuava a juíza. Confrontada com estas ideias de grandeza não conseguiu explicar:
“Simples verborreicas com utilização de terminologia legal, palavras difíceis, incluindo construção gramatical pouco habitual, que acima se designa de pseudo-eruditismo, por exemplo dando um significado idiossincrático às palavras, por exemplo quando lhe pedimos para explicar o que é o significado de dolo, a que responde vagamente, mais uma vez mostrando que desconhecia o conceito”.
A juíza chegava ao fim: “Atenta à patologia que lhe foi diagnosticada, atendendo a tudo o que foi dito, há um sério risco de deterioração da doença, há um perigo para bens jurídicos de valor, quer próprios, quer alheios de natureza pessoal e patrimonial, e por isso o tribunal determina o internamento compulsivo”.
Da mulher a meu lado (aquela a quem G. chama concubina, imagino) jorraram lágrimas em bica, olhos de nereide na fonte pública, também ela saía de um delírio.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)