Rui Cardoso Martins

A mochila de prata

Ilustração: João Vasco Correia

Entre Tondela e Amadora, não sei agora em que direcção deste trânsito pendular, vive um homem com talento para a desaparição. Faz desaparecer coisas que não lhe pertencem mas também, certamente, faz-se desaparecer a si mesmo de onde estava, ou fugir a tempo do sítio onde o tentarão agarrar, até ao ponto em que apetece repetir

– e desapareceu no ar como o Mandrake…

Como fez o mestre Dinis Machado em “O Que Diz Molero”.

Suspirando no banco dos réus estava Alberto, delinquente de carreira, devidamente cadastrado (só a mãe não sentirá orgulho em ficha tão completa), mas cansado de ser, nos grupos criminosos em que se envolve, naquelas quadrilhas de duas cabeças que são o seu ganha-pão, o único elemento que acaba apanhado… O outro escapa, ele não.

– O senhor Alberto não sabe do senhor Carlos?

– Não, suspirou Alberto.

– Nunca mais ouviu falar dele, desde isto?

– Não, ressuspirou Alberto.

Os dois guardas, homem e mulher, que tinham trazido Alberto da penitenciária, moveram-se um pouco no pé. Ele esticou-se, ela curvou-se, depois exactamente o contrário, ele encolheu-se e ela estirou-se, revezando-se no tédio de levar prisioneiros da prisão ao tribunal, algemas atrás das costas para cá, braços algemados no cóccix para lá, gás pimenta num coldre, pistola no outro. Mas, a avaliar os pares de olhos inexpressivos, faziam-no com tanto gosto como levar a passear pela trela um animal doméstico de que não se gosta.

Até porque todos na sala, do preso aos guardas, da juíza ao procurador da República, do meirinho à assistência, todos começámos a ver que aquele Carlos desaparecido ia ser difícil de encontrar. Foi quase uma hora nisto:

– E ele não estará preso?, perguntava a juíza.

– Já vimos isso, sôtora. Está em liberdade desde 25 de Janeiro de 2018.

Carlos está solto há quase dois anos. Mas não deveria estar. O funcionário vasculhava mais uma informação no computador, a juíza relia o processo e a folha de cadastro, e o meirinho telefonava uma e outra vez desde a sala para todos os departamentos de busca policial, cadastral, que o mandavam esperar e depois saltar de número em número. E também desses novos telefones alguém lhe respondia que do Carlos não sabiam, nem conseguiam saber onde é que ele parava. As moradas eram sempre as mesmas, já gastas. O arguido desaparecido não tinha sequer documento de identificação neste processo com Alberto.

– Sotôra, ele anda fugido, resumiu o funcionário judicial.

Uma vizinha de Tondela disse que ele voltara para a Amadora, mas na Amadora não se sabia dele. E havia um mandado para prisão imediata que não tinha sido cumprido. Depois percebeu-se: era urgente, mas ainda não tinha chegado à esquadra.

– Mas isto foi há dois dias…

O pobre Alberto, com a sua barba de ferrugem, cada vez mais murcho na solidão, ouviu sozinho a continuação do julgamento. A testemunha era uma vigilante da loja de roupas onde Alberto fora apanhado.

– Esses furtos são combinados com mais de uma pessoa, são em grupo?, perguntou o procurador.

A vigilante, agora no desemprego, tentava lembrar-se. Mas eram tantos os casos. Ela costumava vigiar a central de câmaras.

– Entravam na loja, iam à secção de Homem, enchiam as mochilas e fugiam. Era uma prática normal no meu dia.

Camisas, calças, camisolas.

– Recorda-se como é que é possível? Isto não é assim pequeno, não é um lenço…

– Normalmente, tiram os alarmes, metem dentro do saco ou mochila e saem.

A vigilante agora lembrava-se. Viu a cara de Alberto, a seu lado, e mostraram-lhe a foto do desaparecido Carlos.

– Um escolheu, agachou-se, o outro pegou na mochila e saiu.

Com alarmes e tudo. Mas os alarmes não tocaram. A mochila estava forrada a prata. A juíza ordenou novo mandado de captura para Carlos. Mas talvez o brilhante escapista se saiba forrar a papel de prata.

 

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)