Para chegar à Força Aérea, à Marinha ou ao Exército, não basta querer. Uma larga maioria dos candidatos a oficiais fica pelo caminho. Entram os que, no final de uma longa série de etapas, provam ter o corpo, a mente e a vocação para vestir a farda e seguir a carreira militar.
De repente, um vento forte vindo do nada. O rapaz congelou. As mãos coladas nos apoios laterais, os pés juntos e as pernas inquietas. Se ele quiser continuar como candidato à Academia da Força Aérea, terá de percorrer o pórtico com seis metros de comprimento e 30 centímetros de largura. Não é isso que o impede de avançar. São os cinco metros a separarem-no dos colchões no chão. Está na mesma posição há um, dois minutos. “Dá o primeiro passo, que depois é fácil”, grita o instrutor cá de baixo. Ele diz que sim. Mas não se mexe. “Um de cada vez, não tenhas medo.” Ao fim de mais um, dois minutos, o primeiro passo, a tremer. Depois o segundo, o terceiro e os seguintes também a tremer. “Metade está feita. Booora!” Dá-se então o clique e ele acelera como se estivesse em terra firme. A prova foi superada. É a primeira.
O caminho para quem conclui o Ensino Secundário e quer entrar numa das três escolas de oficiais das Forças Armadas é demorado. Praticamente um mês, ou mais, com dezenas de testes, estágios, inspeções médicas, avaliações psicológicas, psicotécnicas e psicomotoras, entrevistas e recruta. As provas da Academia da Força Aérea, na base de Pêro Pinheiro, em Sintra, arrancaram a 27 de julho e só encerraram a 25 de setembro. A Escola Naval da Marinha, em Almada, começou a 12 de agosto, com o processo de seleção a ficar concluído a 28 de setembro. Na sede da Academia Militar do Exército, em Lisboa, a primeira fase teve início a 7 de setembro e a última acabou a 3 de outubro.
Mais de metade dos candidatos fica pelo caminho. Um, dois, três ou quatro de cada grupo são eliminados em cada prova e não avançam para a etapa seguinte. Eles são às centenas, vindos de todos os distritos do continente e ilhas para preencher algumas dezenas de lugares. Na Força Aérea, 580 candidatos convocados e 73 vagas solicitadas. Na Marinha, 293 para 40 a 60 vagas, em média, aprovadas em anos anteriores. No Exército e GNR, cerca de 660 e pouco mais de 100 vagas, também dependentes da autorização do Ministério das Finanças.
O primeiro teste são as provas físicas, mas, antes disso, todos tiveram de formalizar a candidatura submetida, semanas antes, nas plataformas eletrónicas. O que, por si só, transforma-se em mais uma etapa, tendo em conta a quantidade de papelada. Desde fichas, declarações, certificados, atestados, termos de responsabilidade, questionários, fotocópias autenticadas ou ainda, no caso da Escola Naval da Marinha, uma bateria de exames médicos e análises clínicas. Tudo certinho e dentro dos prazos para não se ficar logo ali excluído antes sequer de dar o primeiro passo.
As rotinas da Covid-19
Agora sim, começam eles a chegar aos campos de treino, equipados de mochila, calções, sapatilhas e máscara facial, a novidade deste ano. A covid-19 mudou muitas rotinas. Cada exercício é antecedido e seguido da higienização das mãos, os materiais desinfetados a cada utilização, os lugares nas salas previamente destinados, as entradas e as saídas dos edifícios e das provas com circuitos distintos e os candidatos repetidamente chamados à atenção para manter a distância social.
Se dantes a Marinha realizava as provas físicas, psicológicas e inspeções médicas em três dias distintos, este ano todas as fases aconteceram em simultâneo. São 60 candidatos por dia, organizados em quatro grupos que, ao longo de uma semana, passaram por todas as etapas. Cada um com o seu kit de águas, sumos, frutas e snacks. Trouxeram também as suas próprias máscaras, canetas ou auscultadores. E, na Academia Militar, o que demorava dois ou três dias teve de ser estendido de 7 a 18 de setembro, para evitar as aglomerações. Aqueles que ficaram alojados nas instalações do Exército foram organizados em pequenos grupos, inalteráveis em todas as circunstâncias. São companheiros de quarto, comem na mesa de sempre ou sentam-se na mesma cadeira.
Na Academia da Força Aérea, a pandemia não trouxe grandes alterações na organização das provas físicas. Os candidatos continuam, como em anos anteriores, divididos em grupos de 20 a 25, completando as provas no mesmo intervalo de tempo. Mas a máscara, a desinfeção das mãos e, sobretudo, a distância física entraram nos requisitos e têm caráter eliminatório.
Três candidatos já foram para casa por jogarem às cartas na sala de convívio, conta ao grupo de recém-chegados o coronel Aurélio Santos, responsável pelas admissões na academia. “Se não conseguiram cumprir uma norma básica, não foram talhados para a vida militar”, avisa, pouco depois de dar as boas-vindas. Mas não é só uma questão de disciplina. “Um foco de infeção chega para bloquear o concurso”, justifica, antes de deixar uma sala semicheia em silêncio.
Com as regras esclarecidas, os candidatos partem para o terreno, num circuito entre seis e oito etapas, dependendo da academia e da escola. As provas seguem um padrão mais ou menos comum aos três ramos. Uma boa parte está adaptada às características do sexo feminino e é mais exigente para os que concorrem para os fuzileiros, na Marinha, ou se candidatam ao curso de piloto aviador, na Força Aérea. “O que se exige são capacidades mínimas, que possam ser depois desenvolvidas com o treino”, diz o coronel Contente Fernandes, responsável pela secção de recrutamento e admissão do Exército.
Velocidade, coordenação e decisão
Testar a coordenação motora, a velocidade, a gestão do esforço ou a capacidade de tomar uma decisão no momento certo são alguns dos pontos centrais dos exercícios. Atravessar um pórtico com cerca de cinco metros de altura, saltar um muro, pular por cima de uma vala com água ou com palha são os obstáculos a ultrapassar na Força Aérea e no Exército. Há ainda um salto em extensão, feito com os pés juntos, um sprint de 60 metros, em 8,8 segundos, e elevações na barra para os candidatos da Marinha e do Exército, enquanto, na Força Aérea, são séries de abdominais e extensões de braços. Todos fazem a corrida de 2 400 metros à volta da pista de atletismo, no tempo máximo de 12 minutos para eles e 13 minutos e meio para elas.
Segue-se a alheira com ovo no refeitório da Força Aérea e filetes de peixe com arroz de tomate na cantina do Exército. Logo a seguir, a prova escrita e oral de língua inglesa. Na Escola Naval da Marinha, os rapazes e as raparigas continuam em campo, passando agora para os exercícios específicos de aptidão física. Sobem a uma árvore, agarram no cabo e fazem um salto idêntico ao do Tarzan em quase tudo, tirando o grito a ecoar pela selva. Terão de usar um dos braços para fisgar e prender-se à rede antes de a gravidade puxar o corpo para trás. Descem depois por um túnel subterrâneo de 60 centímetros de largura, rastejando na escuridão ao longo de 15 metros, até verem a luz do meio-dia. Mergulham, por fim, na piscina onde são avaliadas as técnicas de bruços ou de crawl e ainda o controlo de respiração.
Quem terminar esta série avança para a fase seguinte. Ema Cunha, 21 anos, candidata à classe de Administração Naval da Marinha, é a única das quatro raparigas, no quinto dia das provas, a continuar na corrida. As outras saíram na primeira etapa, aquela em que boa parte deles e delas também são eliminados. As elevações na trave são o único exercício a depender somente da força para levantar o peso do corpo e aguentá-lo 20 segundos no cimo, no caso das raparigas. Ou, para os rapazes, usar os braços para subir e descer três vezes e sempre com o queixo acima da barra. “Ou consegues ou não há nada que te possa valer.” Nem destreza, nem reflexos rápidos ou sangue-frio. Nada, só força bruta. E treino, naturalmente.
O trabalho de trás para frente
Há quem esteja desde o 10.º ano a planear este dia, como Daniel Deodato, candidato de 18 anos, vindo de Lisboa para as provas da Escola Naval da Marinha. “Alimentação cuidada, treinos duas a três vezes por semana e saídas noturnas racionadas”, realça. Ou, então, a preparar-se “mais intensamente”, desde que a escola acabou, em junho, como Pedro de Oliveira, o aspirante de Peniche ao curso de Engenharia Aeronáutica da Força Aérea. E ainda exercícios físicos diários desde janeiro, revisão da matéria do ano inteiro para subir a média e estudo intensivo do inglês nas últimas quatro semanas, confessa Miguel Sardinha, o rapaz de 18 anos que chegou de Abrantes para concorrer ao curso de Ciências Militares da GNR.
Tudo o que se fez para trás conta para manter a calma e acreditar que é possível ir até ao fim. “Trabalhei muito antes de aqui chegar e isso faz-me sentir confiante”, diz Miguel Sardinha. “Passar uma prova de cada vez e seguir em frente” é o que Pedro de Oliveira tem feito para não se perder com inseguranças. Estar “concentrado” e prestar “muita atenção” ao que os instrutores dizem mantém os nervos de Daniel Deodato controlados: “Eles explicam tudo o que precisamos saber”. Até demonstram como se faz bem feito, a posição, o impulso, as dicas, o que é válido e inválido e os erros clássicos dos caloiros.
Nas inspeções médicas, a fase a seguir, não há sugestões dos instrutores, capacidade de concentração ou habilidades físicas que possam ser úteis. Só os resultados dos exames determinam se eles e elas estão aptos a exercer as funções a que se candidatam. São dois a cinco dias entre uma sala de espera e eletrocardiogramas, radiografias, hemogramas, análises, oftalmologia, otorrino, glicemia, altura, peso, reações a estímulos visuais e auditivos, coordenação motora, motricidade fina e outros exames com todo o tipo de siglas. Por fim, o veredito de um médico ou de uma junta médica que avalia os parâmetros, já tabelados, abrindo ou fechando a porta aos testes psicológicos.
Se o corpo reuniu o necessário, resta certificarem-se de que não serão traídos pela mente. Não é apenas a adaptação ao meio militar a estar em causa na avaliação psicológica. Mas também a capacidade para exercer funções de comando, de direção ou de chefia que terão de cumprir como oficiais das Forças Armadas. Há, por isso, todo o tipo de provas a prestar – cognitivas, de personalidade, de motivação, de aptidão intelectual, psicomotoras, de grupo ou entrevistas.
Herança de família
Chegará o momento em que vão ter também de explicar por que razão estão ali e não lá fora, junto com os civis. Algo aparentemente simples, mas boa parte não sabe exatamente de onde vem essa vontade. Muitos têm ou tiveram família num dos ramos. O pai de Pedro de Oliveira é coronel na Força Aérea. Miguel Sardinha tem o pai, o tio e o avô no Exército. A mãe de Francisco Parente, candidato do Porto ao curso de piloto aviador da Força Aérea, está no Exército. O pai e o avô de Frederico Ramos da Silva, cadete do 3.º ano da Marinha, são militares. João Ventura concorre ao curso de Ciências Militares da GNR e talvez esteja a cumprir o sonho do avô materno, interrompido por uma pneumonia. Mas não foi por isso que quis entrar: “Nunca tive pressão para escolher a carreira militar. Eu é que, desde miúdo, sempre achei que era o meu caminho”.
Tal como Pedro, Francisco ou Miguel, que sentem o apelo da “disciplina”, do “respeito pela hierarquia”, da “camaradagem”, do “aprumo” ou de uma vontade de “servir a comunidade”. Foi isso que ouviram lá em casa. Sem se darem conta, entrou e ficou, como se fizesse parte deles desde sempre: “É algo que nasceu comigo”, frisa Pedro. E pode nascer também entre quem não tem legado militar a correr na família. “Organização, planeamento ou visão estratégica são alguns aspetos importantes que procuro para a minha carreira”, observa Diana Silva, candidata de Braga, a concorrer para a Força Aérea. Sempre valorizou essas capacidades, boa parte delas vieram da mãe, que não sendo militar, “tinha tudo” para ter sido.
Depois, há o desporto. Muitos deles não sabem viver sem ele. Ema Cunha sempre se deu bem com números, mas também com a vida ao ar livre, a jogar voleibol e a praticar natação. Miguel Costa, candidato do Porto à Força Aérea, joga futebol desde criança, primeiro no Leixões e, neste momento, no Rio Ave. Joana Moura, cadete da Marinha, a transitar agora para o 4.º ano, fazia canoagem. Ana Sousa, no 2.º ano do curso de Formação Militar Complementar em Medicina do Exército, praticou natação, voleibol e ainda ballet. “É um modo de vida mais ativo que temos aqui e que pesa na decisão”, explica, admitindo não ter sido feita para ficar o dia todo atrás da secretária.
A cabeça nas nuvens
Não é difícil perceber o ponto de vista de Ana, tal como também se entende os que só estão felizes quando a cabeça anda nas nuvens. Mas, para esses, as etapas são mais demoradas e exigentes. Quem concorre ao curso de especialidade de piloto de aviação tem de começar mais cedo. São os primeiros convocados para as provas físicas, de inglês e de avaliação psicológica da Força Aérea. Passam ainda cinco dias nas inspeções médicas, mais três do que os restantes candidatos. E são também os únicos a frequentar o Estágio de Seleção de Voo, na Esquadra 802 – “Águias”, antes de se juntarem a todos os outros na prova final.
São dois dias de aulas e testes teóricos e ainda sete voos acompanhados pelo instrutor, onde se estreiam no cockpit de um Chipmunk MK20, uma aeronave do pós-guerra continuadamente reciclada para servir na instrução elementar. “Cada voo tem a duração de uma hora, em que eles aprendem a executar manobras simples e exercícios que põem à prova a coordenação e orientação espacial”, resume o capitão Pedro Dinis.
Mas, ainda antes, passam dois dias a estudar. Levantam-se às 7.10 horas, tratam da higiene, tomam o pequeno-almoço e vão para as aulas. Durante todo esse tempo, os cadetes seguem-nos como uma sombra. “Só os largamos à noite, quando se vão deitar”, revela Gonçalo Margarido, que concluiu agora o 3.º ano. Antes de se recolherem aos quartos, ainda planeiam juntos o dia seguinte e tiram as dúvidas que ficaram a pairar.
Gonçalo e os colegas do 3.º ano são os responsáveis pelas aulas teóricas dos candidatos. Têm de recuperar a matéria, aprendida há um par de anos, estruturar a sua apresentação e assumir o papel de professores, avaliando, no final, todos os candidatos: “O último teste é feito de olhos vendados, é-lhes pedido que reconheçam todos os instrumentos do avião”. Quem concluir as provas teóricas segue para as aulas práticas com os instrutores.
Francisco Parente, candidato do Porto, já passou essa fase e vai no quinto voo. É capaz de completar sozinho as manobras básicas, mas, de cada vez que tira os pés do chão, “é como se fosse a primeira vez”. Não é insegurança, “é mesmo por não conseguir ainda acreditar como voar é incrível”, detalha o rapaz de 17 anos. Que o ponham lá em cima as vezes que forem precisas, ele sentirá sempre o mesmo: “Levantar a aeronave, manter a altitude e ficar no silêncio, só a ouvir o motor a trabalhar”.
O dia zero da recruta
Dá vontade de parar o tempo, mas é bom ele começar a preparar a descida se quiser passar à fase final – a recruta. Usando o jargão correto, PAM – Prova de Aptidão Militar, para os candidatos do Exército e da Força Aérea. Ou a Verificação da Aptidão Militar Naval (VAMN) para os que concorrem às classes da Marinha. “As estatísticas demonstram, nesta fase, que mais de 60% já terão sido eliminados”, constata o coronel Contente Fernandes. Ficam aqueles que vão passar entre duas e três semanas nas instalações das academias ou da escola naval. “Entre os eliminados e os desistentes sobram os melhores e são esses que têm a real possibilidade de disputar as vagas”, pormenoriza Hélder do Carmo Limpinho, o diretor de ensino da Escola Naval.
Assim que chegam, são instalados nos quartos, recebem o fardamento, material de campanha e cortam o cabelo. Nos dias seguintes, vão tirar a prova dos nove para despistar erros de casting e confirmar a vocação. Os candidatos tomam contacto diário com a rotina militar nas Forças Armadas. O tempo é cronometrado ao minuto, hora certa para saltar da cama, higiene pessoal, refeições, formatura no pátio com o uniforme impecável, treinos físicos ou exercícios de sobrevivência. Vão cumprir ordens, obedecer às hierarquias, “desenvolvendo qualidades cívicas, sentido do dever, da honra, da camaradagem, da disciplina e espírito para servir o país”, salienta o coronel da Força Aérea Aurélio Santos.
No Exército e na Força Aérea, quem se distinguir na recruta está a um passo da reta final. Na Escola Naval, resta a última etapa. Os melhores classificados terão ainda de provar que nasceram para viver no mar. Entre os dias 21 e 27 de setembro, os candidatos estiveram a bordo de um navio, fazendo tudo como um cadete. A viagem só terminou num de dois portos: aptos ou inaptos para a Marinha. “Ficam os que têm capacidades e vocação para seguir a formação superior, que não é unicamente académica, mas com uma grande componente para a vida militar, em especial para a Marinha, sem esquecer a formação cívica e moral”, especifica o diretor de ensino da Escola Naval.
A um passo da meta
As provas chegam ao fim, mas quem a tudo resistiu não pode ainda cair em euforias. A entrada está dependente das vagas disponíveis. Entram agora na equação as médias do Secundário, as classificações das provas de ingresso e o resultado de todo o percurso feito durante a seleção. As comissões de avaliação reúnem-se, um dia completo fechados numa sala até saírem de lá com a lista definitiva.
O telemóvel toca e os candidatos ficam a saber que têm de comparecer na academia para o arranque do ano letivo, entre os dias 1 e 12 de outubro. Quem não recebe a chamada, nem é informado pessoalmente de que o seu nome está entre os selecionados, ficou a um passo de entrar. Pode até parecer o fim do Mundo, mas não é. A média de Joana Moura não chegou para entrar na Marinha em 2016. Os testes psicomotores foram o calcanhar de Aquiles que fez Diana Silva tropeçar, em 2019, nas provas da Força Aérea. Joana candidatou-se no ano seguinte e está prestes a entrar no 4.º ano da Marinha. Diana está de volta, jogando em dois tabuleiros – no Exército e na Força Aérea. Manteve os treinos, melhorou a média e recomeçou do zero: “Agora é que vai ser!”.