Valter Hugo Mãe

A invenção do livro e da biblioteca

Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens

Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A artimanha de Vallejo é a de Xerazade, porque doseia o que diz sem entregar de imediato, obrigando a que não paremos de ler.

A Bertrand publicou recentemente em Portugal um dos livros do ano, “O Infinito num Junco”, da espanhola Irene Vallejo, onde expõe uma bastante heterodoxa história do livro e das bibliotecas. Gerando um tremendo entusiasmo entre os amantes da leitura, a obra de Vallejo prima por uma capacidade brilhante de contar, vista em instantes de verdadeira força romanesca quando se detém na reconstituição histórica de episódios fascinantes. Em algumas páginas, como na mais vibrante ficção, a autora é capaz da vívida impressão de assistirmos aos factos, contribuindo para um entendimento do que poderá ter acontecido, de como maturámos da oralidade para a escrita, para a reprodução da obra até sua catalogação e seus efeitos no todo da gestão das comunidades.

Irene Vallejo foge largamente ao academismo, debitando informação de um modo que me parece um pouco à deriva, intuitivo, e sem temer o testemunho pessoal. Lemos como se estivesse à conversa. É certamente este um dos segredos para a popularização massiva do livro, com mais de um milhão de exemplares vendidos. O facto de progredir um pouco à deriva, investindo muito num assunto e subitamente parecendo abandoná-lo sem regresso, cria uma necessidade de persistirmos porque ficamos expectantes de saber o resultado, como se o resultado não fosse o mundo evidente em que nos encontramos hoje. A artimanha de Vallejo é a de Xerazade, porque doseia o que diz sem entregar de imediato, obrigando a que não paremos de ler.

Por deslumbre, julgo que em passagens se torna demasiada uma certa informalidade, rompendo com o relato da mais importante descoberta histórica para expor sua experiência pessoal, a memória de episódios domésticos e experiências enquanto leitora e investigadora que sinto serem intromissões num território que esperava se apresentasse mais científico, mais enxuto. Chega a haver passagens de certa poeticidade, como quando se derrama em considerações acerca das tatuagens, de como fazemos do corpo um livro vivo, uma palavra viva. Não é exactamente o que se espera de um preâmbulo para considerar o advento do pergaminho. Há, aqui e ali, uma rendição, que de facto me parece deslumbrada, à vontade de fazer do ensaio uma literatura mais livre, problematizando o género como, afinal, o romance ou a poesia vêm fazendo há muito.

Lembra-me “O Mundo de Sofia”, que quis ser uma história da filosofia em jeito de romance. “O Infinito num Junco” é um ensaio que procura reclamar a permissividade de um romance e mesmo de um poema. Se isto pode demorar o leitor que procura auferir do conhecimento puro e duro de uma pesquisa séria, também é verdade que pode fascinar o leitor que se atenha menos com o conhecimento exposto e se aproveite do deleite de ser levado por um aparato mais estético.

A importância deste livro, julgo, está no facto de nos voltar a explicar aquilo que as gerações esquecem uma e outra vez. Os povos progridem para o esplendor possível à medida do seu pensamento, à medida dos livros que escrevem e lêem. O que publicam e o uso que fazem das bibliotecas é sintoma do seu poder no Mundo e promessa de maior ou menor futuro. Para os que descuram o livro e a Cultura como um todo, sem temores, Vallejo mostra bem como ler é directa construção, fertilização dos povos, seu mais elementar investimento na sobrevivência.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)