Valter Hugo Mãe

A ideia de mudar tudo


Não é por cobrirem a cara com uma máscara no momento de entrarem na Primark que as pessoas mudaram no seu íntimo.

Debati muito com amigos, mesmo nas famosas “lives” que se multiplicaram na internet, o facto de me parecer impossível que a pandemia mudasse as pessoas. Apostei que poderia criar um tempo de certa ternura, mas para mudar a Humanidade não teria hipótese alguma. A Humanidade caminha por uma benesse concreta da ciência mas também por acentuados avanços e recuos nas consciências e na excelência dos gestos. Mais do que aprender a melhorar, é preciso lidar com o facto inequívoco de que uma perigosa multidão quer simplesmente ver a sangria dos seus pares, rendidos à maldade e à sensação de vingança, por inveja e preconceito, por frustração e estupidez.

Era minha convicção de que voltariam todos aos shoppings, atarefados com cabeleireiros e pijamas da Primark assim que fosse levantada a proibição. Não tive dúvida alguma disso. Achei, e aí falhei, que a ternura, que advinha do susto e daquilo já esquecido de não se abraçar netinhos, perduraria um bocado, talvez uns anos, enquanto nos lembrássemos ainda da clausura, do medo, dos mortos, das pessoas isoladas sem despedida possível. Falhei. A ternura foi por quinze dias e talvez tenha sido sobretudo minha, que fartei de me comover a ver as notícias, e fui à janela escutar os vizinhos gritarem aleluia na Páscoa à falta de passar o Compasso.

Não mudou nada. Não é por cobrirem a cara com uma máscara no momento de entrarem na Primark que as pessoas mudaram no seu íntimo. Não entram senão para garimpar a pechincha do costume, com a avidez do costume, pelos motivos do costume, independentemente de haver gente pior, a crise a apertar, o desemprego à mostra e prometido para piorar muito. Já não ouço falarem aqueles que diziam que iam ser de outra maneira, atentos ao essencial, mais sensíveis com as fragilidades de todos, até para lerem mais livros, educarem-se, estudar novamente ou deixar de fumar. Acabaram as promessas. Agora anda tudo à pressa a ver se faz disto a mesma coisa que fazia antes.

Estou na contracorrente. Não quero admitir que a pandemia não me mudará. Nem que por pretexto casmurro, eu exijo de mim agir diferente. Estabeleci um compromisso no sentido de rever tudo quanto me afastava da paz. Quero existir na paz possível, desvinculado da ansiedade a que ia sucumbindo. Quero amar acima de tudo. Já não vejo isto como ternura mas como plano de sobrevivência pura.

Passei anos a sonhar que, um dia, como um bruto, fugiria. Partiria em segredo para onde não soubessem de mim, à cata da recuperação do tempo, do silêncio, de uma meditação que sustentasse companhia e não me soasse a solidão. Estar só na multidão é uma forma de beco sem saída. A salvação é voltar para trás. Recuar até começarmos tudo outra vez, a partir de nos descobrirmos a nós mesmos. Somos o primeiro plural. Temos de ser o primeiro plural de nossas vidas. Nessa limpidez, saibamos dar um passo em frente reencontrando os outros por alegria e dignidade. Importados. Maravilhados ainda com o sonho de, um dia, erradicarmos a maldade. Sermos pela paz, pares, pela paz.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)