A grande imprecação nas escadas do prédio
Começou com um estrondo, continuou com o grito
– Dou-te cabo dos cornos!
e terminou na lamúria da vizinha acusada
– E arranjou um polícia amigo e deu-me um tareião!
E pela madrugada adentro, o infernal fedor a aguarrás.
Já se estuda a violência doméstica, um dia se fará a história da violência predial. Cidade a cidade, rua a rua, quarteirão, apartamento, andar, esquerdo e direito. Em todo o mundo florescem os vizinhos que se odeiam. Contei casos tristes como o do administrador que deitava beatas no chão para, soube-se depois, “correr com a preta” que limpava as escadas, casos insólitos como o homem que, por desavenças com um cão, mordeu ele a vizinha de cima. E agora ali estava de novo, o pobre de mim, a escutar outra miséria no tribunal: uma vizinha desceu as escadas às quatro da manhã, ouviu-se um grande barulho e apanharam-na a despejar diluente por baixo da porta da sua inimiga. A vizinha da frente:
– Abro a porta e sinto o cheiro a diluente. A senhora levantou-se e confronto-a sobre o que está a fazer com o diluente, ao que ela responde que não estava a deitar, ia usá-lo na caixa de correio porque lhe tinham metido dejectos na caixa.
Após, abre-se a própria porta vítima do atentado:
– Havia um cheiro que parecia diluente e ficámos com as meias encharcadas. Abrimos a porta e a vizinha da porta da frente estava a gritar com a vizinha de cima e esta, a subir as escadas com um isqueiro na mão, apontou para a Cecília, disse que lhe batia, que lhe ia aos cornos.
E que tipo de relação tem a vítima com a acusada?- Tenho um bocado de ansiedade só de estar aqui. A última vez que vim a tribunal, aqui dentro, cuspiu-me para os pés.
– A senhora está de bem ou está de mal com a D. Clotilde?
– Não estou bem, nem estou mal. Estou com medo.
E entrou Pedro, de outro prédio, amigo da temível Clotilde, que com toda a lata possível disse que ia fazer uma obra às quatro da manhã e que a Dona Clotilde só deixou cair uma lata no chão. Mas foi depois das alegações, quando a procuradora pedira a condenação, a acusação explicara que isto estava sempre a acontecer, e a defesa queria a absolvição, que a juíza se virou para a arguida. E começou um dos mais estrambólicos discursos que ouvi na vida.
– Ó sodona Clotilde, pode-se levantar, sodona Clotilde? Quer dizer mais alguma coisa em sua defesa?
– Posso dizer… eu vou pôr aqui a mala… doutora juíza, eu estou muito nervosa e com razões de estar. Eu seria incapaz de tocar nalguém, porque eu tenho só animais abandonados e trato de crianças e velhinhos… era incapaz. Eu às vezes aparece-me baratas na minha casa e eu chamo o senhor Pedro para mas vir matar. Eu era incapaz de tocar nalguém, como ela me fez a mim! Mandou o polícia, com ela, dar-me um tareião que estou marcada para o resto da minha vida!
A voz distorceu no “i” que se seguiu nesta voz apunhalada. O cabelo electrificado e reluzente como palha-de-aço.
– Era… iiiincapaz, mas incapaz de tocar nalguém! Eu nunca a ameacei, nem nunca lhe bati…
– A senhora pode falar mais baixo…
– … desculpe, sotôra juíza, porque ela foi a pior coisa que foi para ali, ela já criou mais problemas a outras pessoas do prédio, não foi só a mim. Ela é uma pessoa que realmente foi de má-fé para ali. Ela se fosse uma pessoa como deve ser, ela não tinha criado problemas a uma pessoa de 65 anos que nunca ninguém culpou, nem nunca ninguém me acusou de nada… sou uma coitada…
– Com certeza, mas…
– Não se admite, uma mulher com 40 anos bater numa senhora com 65 doente com epilepsia, asmática, uma pessoa que estou mais para morrer do que para viver, ela fazer o que mandou fazer na escada, controlou-me durante muito tempo, arranjou um polícia amigo e deu-me um tareião!…
– Pode sentar-se, a senhora está muito nervosa.
– Desculpe, sotôra juíza…
– Pode sentar-se, eu já a ouvi bem, dona Clotilde.
– Desde aí fiquei… não há o direito de me fazer isto, eu tenho relatórios… Eu perdi a memória, perdi tudo!
Sentou-se no banquinho e endireitou a máscara neste mundo cruel.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)