A gargalhada é como o “bicho”, pega-se

O humor tem a particularidade de nos fazer olhar as situações de outra perspetiva (Foto: PxHere)

Com os palcos das salas de espetáculos temporariamente montados num canto de casa, os humoristas têm sido o antídoto para a tragédia. Sem descurar o papel informativo.

Rendida. Rendida será a melhor palavra para descrever o estado de Graça. Sim, é mesmo o nome dela, e parece ter sido escolhida a dedo – afinal isto é um texto sobre humor. Mas não. Calhou a Graça achar bastante graça ao assunto. E o assunto é complexo. “Como É Que o Bicho Mexe?” A pergunta é na verdade o título de uma rubrica que Bruno Nogueira tem dinamizado em direto no Instagram, todas as noites, agora que estar em casa é lei. Graça tem assistido religiosamente. O mais engraçado, a expressão é dela, é que nem sequer é grande fã do humorista. A culpa é da solidão, assegura Graça Salgueiro, 32 anos, para justificar a sua dependência noturna. “Estou a fazer o isolamento em casa sozinha. No primeiro dia em que ele começou a fazer aquilo fui espreitar. Estavam 10 mil pessoas a ver. E achei piada. Basicamente é uma pessoa que se põe a beber vinho e vai ligando aos amigos para falar com eles.”

O primeiro episódio foi a meio de março. “Não sabíamos o que ia acontecer. Havia ansiedade associada à incerteza do que nos ia acontecer, profissionalmente até.” E aquela hora e meia que ali passava na sala de estar de Bruno Nogueira, com os amigos dele, começou a dar-lhe ares de afinal haver alguma “normalidade” no meio do caos. Muito embora, mais uma vez a expressão é dela, “às vezes sejam conversas de merda, não dizem nada de jeito, mas nós também somos assim com os nossos amigos, não é?”. Vai daí, deixou-se embalar. E passou a ser natural ligar-se ao Instagram daquele @corpodormente como quem entra numa sala de estar aconchegante, quase familiar. “Até a mim me dá vontade de ir buscar um copo de vinho, como ele faz, e estar ali. Afinal, são figuras iguais a nós, também não sabem o que lhes vai acontecer. E estamos ali, todos na mesma sala. E eu que não gosto de stand up comedy acho tudo aquilo uma libertação em conjunto que me faz bem, é como se estivéssemos juntos numa reabilitação.”(Bruno Nogueira não respondeu aos contactos efetuados pela NM, para comentar as reações e estados de reabilitação como o descrito por Graça.)

Os dias têm sido uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Somos obrigados a estar em casa. Os espetáculos foram cancelados, a rua passou a ser um lugar proibido, a vida perdeu alguma cor. Sem diversões no exterior, viramo-nos para o interior. A Internet, que outrora nos separava, é a mesma que hoje nos une. Considerando o afastamento social, passou a ser uma boia de salvação. Podemos trabalhar à distância por causa dela. Podemos estudar à distância por causa dela. E é também ela que nos livra do desespero e da ansiedade de não podermos estar fisicamente com quem mais gostamos. E, qual cereja no topo do bolo, é por causa dessa magia virtual que nos conseguimos entreter com filmes, séries, informação e até rir. Rir desta desgraça que jamais alguém pensou que nos escorraçaria das rotinas. A todos. Rir, que pode ser o melhor remédio, diz o povo. O mesmo povo que hoje procura os humoristas para esquecer esta dura realidade.

Nuno Markl, que não tem falhado aos diretos do amigo Bruno Nogueira, como espectador e coautor, confirma essa crescente procura pela boa-disposição. Foi uma das pessoas que viu o número de seguidores aumentar durante a pandemia. “Subiu, e acho que terá a ver com o facto de as pessoas terem menos que fazer e estarem mais atentas, e algumas talvez mais em busca de algum escape.” Apesar disso, há coisas que não mudam. Não se consegue agradar a gregos e troianos. Principalmente em momentos tão delicados como este, em que a raiz de tudo está num vírus que causa uma doença, que leva pessoas ao hospital e que, no pior dos casos, e já são tantos, até as mata.

Fazer humor com esta realidade é, como diz Nuno Markl, “um equilíbrio delicado”. Mais porque “há muita gente que ainda associa comédia, humor, a uma espécie de falta de educação”. E recorda um episódio simples que se passou consigo. “Lembro-me de ter publicado no meu Instagram uma montagem ótima do “Insónias em Carvão” em que a Cristina Ferreira abria a porta de casa e entrava o coronavírus, que foi horrivelmente mal interpretada por algumas pessoas. Umas acharam que a Cristina tinha mesmo feito aquilo e desataram a rogar-lhe pragas; outras perceberam que era uma montagem mas, ainda assim, revoltaram-se e brandiram o argumento ‘pensem nas pessoas que estão a sofrer’.”

No entanto, para o humorista, “entrar em modo sério não é uma opção”. Seria pior a emenda que o soneto. “Dessa maneira, se paramos o humor para abraçar a tragédia com temor e respeito, enlouquecemos. Pode e deve fazer-se humor numa altura destas, e ele não é uma forma de desrespeito para com a tragédia. Eu diria que é uma forma de respeito para com todos nós lembrarmo-nos de que o humor existe. Acho que é terapêutico e que nos dá esperança, de uma certa maneira.”

Do lado de quem assiste, como é o caso da jovem Graça Salgueiro, de facto o humor tem-se revelado uma ajuda. Nomeadamente o tal “programa” já mencionado. “Eu estou sozinha e saber que vou estar ali na plateia de um direto onde vejo que estão outros amigos meus traz conforto e sensação de grupo. Tornou-se familiar ouvir o Nuno Markl a fazer karaoke (ele canta mal que dói), saber que o João Quadros quando entra ai-jesus que vai dizer asneira, e todos os diretos acabam com o Filipe Melo a tocar-nos uma canção de embalar, ao piano. Sabe bem. É como se nos dissessem, aguentem firmes, isto vai correr bem.”

Gozar com o que nos mete medo

O humor tem essa particularidade de nos fazer olhar as situações de outra perspetiva, como refere Diogo Soares, psicólogo na Comunidade Intermunicipal do Tâmega e Sousa. “Uma boa piada não altera a realidade, mas pode modificar, para melhor, a forma como sentimos os problemas.” O especialista vai buscar uma frase de Charles Chaplin: “O humor é a dor a rir”. O que tem acontecido com mais evidência durante este surto de Covid-19 é há muito justificado “por imensas teorias das ciências sociais que tratam a importância do humor nas sociedades contemporâneas”. Uma delas fala “do alívio” que se sente através do humor, “quando ele consegue de alguma forma expressar aquilo que toda a gente vê ou sente, mas tem dificuldade em dizer”.

Contudo, Diogo Soares frisa que “dentro dessa liberdade tem de haver bom senso e cuidado porque não se pode só destruir e pôr a nu as fragilidades”. O humor “é um exercício da inteligência emocional. Não é fazer bullying ou humilhar”. É sim, garante, “a busca de um ponto intermédio entre a expectativa e a frustração dos factos”. O objetivo deve ser “trazer a pessoa à realidade, não ao ponto de a iludir, mas também sem a deprimir”. E dá como exemplo a expressão “vai ficar tudo bem”. “Há pessoas que ficarão bem, outras vão precisar de ser compreendidas porque não vão ficar bem, vão perder pessoas que lhes são próximas e queridas. Para essas, o humor não vai funcionar.”

Nuno Markl entende esse ponto, mas sabe que isso não lhe pode nortear a profissão. “Em nenhuma altura da minha carreira pensei em limites. Acho sempre que é contraproducente avançar para um projeto de comédia, seja um programa, um sketch ou um post nas redes sociais, a pensar ‘deixa cá ver do que é que não posso falar’, ou ‘até onde posso ir’.” E esclarece os mais sensíveis. “Gozar com a pandemia não é a mesma coisa que gozar com as pessoas que estão doentes ou que perderam a vida.” No seu caso, ver o final do filme “O Sentido da Vida”, o sketch em que a Morte leva uma série de convivas com uma intoxicação alimentar para fazer uma espécie de cruzeiro no Céu – “It’s Christmas in Heaven!” – ajudou-o a digerir o medo que tinha da morte. “Gozar com aquilo que nos mete medo ajuda-nos a lidar com isso.”

Que o diga Fernando Rocha, um dos mais conhecidos humoristas do país, ele próprio apanhado pela Covid-19. Continua em casa, após ter passado dias em que a doença lhe deu tudo menos vontade de rir ou de fazer rir. Recentemente, e já em recuperação, brincou ao telefone dizendo que estava a pensar lançar um livro do Kama Sutra do sofá. “Epá, por estar sentado tanto tempo já sei todas as posições que se podem fazer num sofá.” Foi precisamente no sofá que fabricou novas ideias para “continuar a animar a malta”. E nem o ódio dos que não gostam dele o fizeram desanimar. “Continuem a contar comigo para as habituais travessuras.” Entre as muitas mensagens de apoio que recebeu também houve quem lhe dissesse que “já devia ter morrido”. Agora, recorda, é hora de se focar no importante. Depois de dias a vomitar e a sentir-se mal, vai usando a sua influência para consciencializar os seguidores para o perigo do coronavírus. “Nós, os artistas, temos essa responsabilidade acrescida. E eu continuo a fazer isso ao mesmo tempo que faço rir os outros.” Aliás, avisa, tem “ideias novas”.

Quem também tem novas ideias é Marta Bateira, mais conhecida por Beatriz Gosta. Com a agenda cancelada, não perdeu a genica e trabalha a partir de casa. Resgata projetos antigos e “finalmente” tem tempo para concretizar ideias que só existiam no papel. “Tenho possibilidade de fazer diferente, eram coisas que sempre quis pôr em prática. Eu gosto de pessoas e de interação, o meu espetáculo fica mais rico. E como sempre sonhei ter um talk show, agora junto o útil ao agradável e ando a explorar os registos.” Voltou ao “Lencinho de Papel”, o “Esquadrão do Amor” também vai regressar. E faz diretos em que conversa com conhecidos sobre temas sérios.

Com o número de seguidores a aumentar, a exigência também é maior. “As pessoas querem-me em direto todos os dias. É normal, nesta crise cada pessoa tem o seu drama, a sua cruz. Isto está a bater de um jeito diferente e cada um está a limpar o seu quintal, e são precisos escapes.” O humor tem, na sua opinião, um papel muito importante nesta história. “Por mais que vejas um filme ou uma série, o humorista é o humorista. E com ele há confiança e uma ligação muito forte. Eu noto por mim. Às vezes nem sei se sou mais humorista ou psicóloga. No privado escrevem muito. Às vezes fico muito amiga dessas pessoas. Estou aqui para eles e tendo agora mais tempo confesso que me dou, tenho essa energia e esse amor, por isso faço o meu melhor para os entreter e também os ajudar.”