“A operação para impedir a Festa do Avante foi derrotada”, regozijou-se Jerónimo de Sousa. “Saberemos preparar e realizar a festa com as medidas de proteção necessárias.” A lotação foi reduzida para um terço da capacidade habitual (100 mil pessoas). Assim, deverá juntar, no máximo, 33 mil apoiantes, numa área disponível de 30 mil metros quadrados (mais dez mil do que no ano passado). A 44.ª edição do Avante, tida como o ganha-pão do PCP, tem enquadramento legal. De ouvido atento ao secretário-geral do partido, as desconfianças e medos de muitos dos militantes foram sendo esbatidos. A ordem foi clara, o partido cerrou fileiras em resposta aos sucessivos ataques públicos. Prova disso foi o facto de a “Notícias Magazine” ter tentado falar com diversos militantes que se revelaram sempre reticentes em responder. Houve mesmo quem tivesse sido incitado a desistir depois de já ter dado testemunho, em que apenas reafirmava a confiança de que a festa tem tudo para ser um êxito. Os promotores dos maiores festivais cancelados também preferiram nada dizer. Numa altura em que a imunidade de grupo à covid-19 e mesmo a imunização da tão aguardada vacina levantam muitas dúvidas, a única certeza é que a convivência com o vírus está para durar. Posta de parte a ideia de uma total paralisação, e vendo o outono e o inverno a aproximarem-se, torna-se imperativo pensar em novos modelos de vida que não passem só pela proibição. Nessa medida, a rentrée comunista pode mesmo ser vista como uma experiência de larga escala. A bola de fogo está, mais uma vez, nas mãos da DGS. Poderá dividir as culpas com o PCP, se as regras de segurança falharem e o evento se transformar num grande foco de propagação. Se o risco valer a pena, o país passa a ter um exemplo por onde se guiar.
7 de maio
O Governo apresenta uma proposta de lei que, em definitivo, proibia “os festivais de verão e outros de natureza análoga”, até 30 de setembro.
8 de maio
As perguntas e as indignações não se fizeram esperar. O primeiro-ministro, António Costa, foi célere a reiterar que as atividades partidárias, na qual se enquadra a “rentrée” comunista, não estavam proibidas. Só tinham de respeitar as normas de saúde.
11 de maio
As trocas de acusações são uma constante entre os partidos. O CDS-PP pressiona António Costa sobre o “privilégio” concedido ao PCP. A líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, admite que o Avante é uma ação política e uma grande festa, “é as duas coisas”, mas prefere não se envolver na polémica. “Não sou do PCP, nem sou da Direção-Geral da Saúde, não me cabe comentar. Creio que devem estar a trabalhar como é suposto”, acrescenta mais tarde.
14 de maio
O CDS-PP une-se ao Chega numa proposta que resultaria na interdição do Avante.
16 de maio
Sábado. O Comité Central do PCP reúne-se para avaliar os elementos da preparação da Festa do Avante, face às circunstâncias da pandemia. Fazer ou não fazer? No dia seguinte, Jerónimo de Sousa responde à questão em conferência de imprensa: “Não abdicamos da Festa do Avante se estiverem reunidas as condições”. Faltavam quatro meses para o evento.
Álvaro Covões, dono da Everything Is New, que produz o festival NOS Alive, vaticina uma “tragédia” de 600 milhões de euros para a economia portuguesa. Em 25 anos, é o primeiro verão sem festivais de música. Já antes da medida, vários eventos tinham sido cancelados ou adiados. As notícias fazem contas em forma de balanço. Sumol Summer Fest, NOS Alive, Super Bock Super Rock, MEO Marés Vivas, MEO Sudoeste, Vodafone Paredes de Coura, EDP Vilar de Mouros, Boom Festival e NOS Primavera Sound foram riscados da agenda de 2020.
O PCP demarca-se imediatamente. O Avante não era como as restantes festas. O esclarecimento chega num comunicado: “Não é um simples festival de música, é uma grande realização político-cultural que se realiza desde 1976, muitos anos antes da existência daquele tipo de festivais”. Álvaro Covões recorda que Vilar de Mouros se fazia desde 1971. João Carvalho, diretor da Ritmos, empresa promotora do Festival Vodafone Paredes de Coura, também não se cala. “Se a Festa do Avante acontecer da mesma forma que nos anos anteriores é uma absoluta injustiça e deixa-me com uma indignação enorme.”
21 de maio
A proposta de lei é aprovada no Parlamento, por maioria, em votação final global, com os votos a favor do PS, PSD, PAN, BE e da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira, e com a abstenção do CDS, PCP, PEV e Iniciativa Liberal. O decreto do Executivo, que viria a ser promulgado pelo presidente da República, não se tratava de uma simples proibição. Se num primeiro ponto se pode ler que “é proibida, até 30 de setembro de 2020, a realização ao vivo em recintos cobertos ou ao ar livre de festivais e espetáculos de natureza análoga”, um ponto seguinte faz a inflexão, permitindo que os espetáculos possam “excecionalmente ter lugar, em recinto coberto ou ao ar livre, com lugar marcado”.
Ao promulgar o diploma, Marcelo Rebelo de Sousa esclarece: “Se uma entidade promotora qualificar como iniciativa política, religiosa, social o que poderia, de outra perspetiva, ser encarado como festival ou espetáculo de natureza análoga, deixa de se aplicar a proibição específica prevista no presente diploma”. Alertando que “mesmo os assim qualificados” se podem realizar “desde que haja lugares marcados e a lotação e o distanciamento físico sejam respeitados”. Isto é, o decreto deixou a porta aberta a eventos de grande dimensão – sejam classificados como políticos ou não – desde que devidamente coordenados com a DGS. Mas poucos foram os que se atreveram a arriscar.
28 de maio
Jerónimo de Sousa pede calma “às almas mais inquietas” e admite que “não seria um drama” cancelar o evento.
7 de junho
A página oficial da Festa do Avante partilha as primeiras imagens da preparação do evento.
25 de junho
O PCP divulga um vídeo explicativo das melhorias do recinto em termos de espaço e de equipamentos. O partido quer passar a mensagem de que tenciona responder a todas as exigências das autoridades sanitárias, procurando amainar as críticas.
1 de julho
É divulgado o cartaz da Festa do Avante: os artistas que atuarão são portugueses ou de países lusófonos.
19 de julho
Segundo a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, o Avante é a segunda maior fonte de receita dos comunistas. Apesar dos números, o PCP desvaloriza a importância da festa para a saúde financeira do partido e reitera que o evento todos os anos dá prejuízo. Há muito que essa é uma questão sensível. As contas de 2019, entregues à Entidade de Contas e Financiamento Político, revelam que o partido angariou 2,9 milhões de euros em fundos. A maior fatia desse valor veio do Avante: mais de 2 milhões terão saído da Quinta da Atalaia para os cofres do partido. Em relação à receita da Festa do Avante, o partido afirma que “confundir volume de receita total da Festa com proveitos é, mais do que uma lamentável prova de ignorância, pura manipulação”. A entidade acredita que as receitas da Festa do Avante podem ser muito superiores. É público que há vários anos identifica irregularidades nas contas do partido, nomeadamente na “falta de faturação”, e chega a acusar o PCP de “falta de transparência nas contas”.
4 de agosto
Na apresentação da Festa do Avante, o principal responsável pela organização, Alexandre Araújo, garante que serão cumpridas escrupulosamente as regras de distanciamento e higiene impostas pelas autoridades. O membro do Secretariado do Comité Central do PCP evita adiantar números de bilhetes já vendidos e qualquer previsão de visitantes ou mesmo esclarecer se vai haver um limite à entrada de pessoas.
5 de agosto
O subdiretor-geral da DGS, Rui Portugal, admite, já depois de se ter reunido com o PCP, que podiam ser recomendados “eventuais ajustes” ao evento após se concluir a análise do plano enviado pela organização comunista.
10 de agosto
Os encontros, com “caráter técnico”, entre a DGS e o PCP, visavam “um trabalho conjunto a fazer com grande ponderação”, fruto de avaliação do risco e da atividade epidémica, explica o secretário de Estado da Saúde, António Sales.
12 de agosto
A ministra da Saúde, Marta Temido, assegura que à organização da Festa do Avante “não será permitido o que está proibido nem proibido o que está permitido” e que “não haverá exceções” às regras adotadas pelas autoridades de saúde para conter o contágio do novo coronavírus.
13 de agosto
Marcelo Rebelo de Sousa frisa que a compreensão dos portugueses em relação às regras do evento é essencial. “Os portugueses sabem que estão perante uma epidemia que está para durar e não podem descolar das autoridades em geral em termos de credibilidade.” E esclarece que a definição de regras tem dois objetivos: garantir que não há problemas de saúde pública e que os portugueses olhem para a Festa do Avante como um exemplo de boa conduta das autoridades sanitárias. “Eu tenho fugido a pronunciar-me [sobre a Festa do Avante] porque acho que ainda não é o tempo, mas há de chegar o tempo em que as autoridades sanitárias hão de dizer o que faz sentido.”
16 de agosto
Jerónimo de Sousa garante que o partido não está a teimar fazer a Festa do Avante “por questões financeiras”, mas para “dar esperança e confiança na luta pelo futuro, face à pandemia de covid-19”.
24 de agosto
Rui Rio mostra-se muito crítico quanto à realização do Avante, festa que inclui concertos, campismo, exposições, espaços de comes e bebes e debates. “Quer Governo quer o PCP estão a dar um mau exemplo ao país”, disse, acusando o primeiro de não ter o mesmo rigor para todas as situações e o segundo de prepotência. Para o social-democrata só havia uma solução: “Cancelar a festa”.
Nesse mesmo dia, o empresário palmelense Carlos Valente, distribuidor de uma marca internacional de equipamentos de som para festivais, apresenta uma providência cautelar contra a realização da Festa do Avante. Como argumento invoca a questão da manutenção da atividade económica que está vedada a outros. O empresário, de 50 anos – que foi candidato pelo PSD ao município de Moura em 2013 -, concorda com as medidas restritivas à realização de festivais e outras concentrações para impedir a propagação do covid-19. “Se temos as discotecas fechadas, os festivais adiados, indigno-me perante a realização de um evento como o Avante que vai reunir mais de 33 mil pessoas que vão partilhar o mesmo espaço durante três dias, comer juntos e acampar durante a noite”, diz. Caso a providência seja aceite, a Festa do Avante é suspensa, podendo o PCP, organizador do evento, recorrer da decisão.
25 de agosto
O PCP considera a providência cautelar “desprovida de qualquer fundamento” e fruto “de animação artificial da campanha reacionária” contra o evento. O Tribunal do Seixal remete para um tribunal de Lisboa a apreciação da providência. Entretanto, a ministra da Saúde, Marta Temido, diz acreditar que esta “não terá qualquer efeito suspensivo”.
26 de agosto
A DGS emite um primeiro parecer “com muitas orientações” para este que é um “evento complexo”, refere a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas. “Num único evento há vários setores diferentes. Ao setor dos restaurantes aplicam-se as regras da restauração. No setor dos espetáculos aplicam-se as regras de outros espetáculos. É por isso que este evento é complexo”, afirma. O PCP, que recusou divulgar o documento emitido pela DGS, rejeita “veementemente quaisquer atitudes e decisões discricionárias e arbitrárias” depois de ouvir Graça Freitas.