Valter Hugo Mãe

A fábrica nas Caxinas


As figuras de Graça Freitas e Marta Temido já não comunicam com as Caxinas e tenho alguma dúvida que comuniquem com alguém ainda.

Já se dizia pela rua que a conserveira das Caxinas estava com as operárias a testar positivo. A mitologia da rua alimenta-se de hipóteses profundamente imprecisas mas também de sinais claros de que algo é escondido à população. Talvez tenham sido duas irmãs que foram trabalhar já sintomáticas, talvez apenas uma senhora que já deixara doente um familiar, certamente uma irmã, no dia 26 de junho já deviam ser dez os casos confirmados, a 1 de julho poderiam ser 17, é no frio e no salmão, agora diz-se que fecharam o salmão mas que o resto continua a trabalhar. O que se comenta por toda a parte não teve resposta. Ao menos, não enquanto não chegou aos jornais. A pressão da vizinhança encontrou na imprensa a única oportunidade de ser ouvida. Algo que o medo necessita: colocar perguntas, ponderar as respostas.

A nossa casa é diante da conserveira das Caxinas. Conheço as suas paredes altas desde os dez anos de idade. Em torno de seu modo encriptado, escondido, cresci sem nunca haver ali entrado. Pelas casas daqui se espalham muitas das operárias. São quase só mulheres que vemos na largada, quando vão à pressa para tratarem das jantas e assuntos dos filhos. As operárias da conserveira são sempre em passo de corrida, parece faltar-lhes o tempo, a vida inteira as vi assim. As mulheres das Caxinas, como um todo, acumulam afazeres. Por aqui, não há mordomias nem facilidades. As coisas conquistam-se num certo desamparo e cada um conta com a força do próprio corpo para sobreviver e sonhar.

Se houver um surto descontrolado nas operárias da conserveira o alerta da vizinhança vai querer parar tudo em redor. São as nossas lojas, a frutaria, o talho, a padaria, o banco, tudo quanto nos presta serviço que se faz ponto de possível encontro. O nosso prédio já possibilita o encontro, porque há pessoas da fábrica dentro. A fábrica está um pouco em toda a sua paisagem, como não poderia deixar de ser.

A falta de informação, inclusive na simples reiteração de cuidados a ter, um diálogo mais corpo a corpo com alguém que viesse às Caxinas dar a cara pelo que é verdade e desfazer boatos e demasias, seria fundamental. As figuras de Graça Freitas e Marta Temido já não comunicam com as Caxinas e tenho alguma dúvida que comuniquem com alguém ainda. Estão como cabeças falantes, esgotadas, cujo trabalho já ninguém consegue avaliar com objectividade. Sofreram uma erosão avassaladora. Viraram uma espécie de redundância, sentadas lado a lado, invariavelmente do mesmo jeito, a debitarem números e a dizerem que um relatório diz isto e outro relatório diz aquilo. Para as Caxinas, a braços com a praia aqui a 80 metros, preocupa mais se foram duas irmãs e se já estão internadas ou impedidas de sair à rua, ou se vamos vê-las por aí na frutaria com o nariz fora da máscara, como quem veste as cuecas e deixa a pila de fora.

A este tempo, já pouco serve debater relatórios com a vizinhança. É de haver provas de que algo está a ser feito que vive a calma possível. É de ver as autoridades aqui. As que parecem temer este povo que por tantas vezes sinto estar ao abandono.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)