Quando alguém concorre à presidência da nação mais poderosa do Mundo, nunca avança só. A família vai atrás. Ajuda a construir o perfil dos candidatos. É parte importante da campanha. Vive e sofre. Uma espécie de tradição americana que diverte e entretém. Quem são os pais? As mulheres? Os maridos? Os filhos e os netos? Nenhum detalhe escapa. Negócios, drogas e morte. Porque tudo serve para ser usado contra o adversário. E a favor do próprio.
No primeiro debate presidencial Donald Trump e Joe Biden fartaram-se de enviar farpas sobre os parentes um do outro. A dada altura, o atual presidente acusou Hunter Biden, o filho de Joe, de ter lucrado milhões de dólares com negócios ilícitos feitos com a China e a Ucrânia, na época em que o pai Joe era vice-presidente de Barack Obama. Biden respondeu: “Nada disso é verdade”. E acrescentou: “Já sobre a sua família poderíamos conversar a noite toda”. Trump defendeu-se, garantindo que os filhos desistiram de empregos lucrativos para ingressar no Governo e “ajudar pessoas”. O que fez Biden encarar a câmara e dirigir-se diretamente ao público. Aos eleitores. “Não se trata da minha família ou da família dele.” Pausa. “É sobre a sua família.”
A construção do perfil dos candidatos à presidência americana passa sempre pela imagem que a família nuclear reflete. Assim, por estes dias, os eleitores preparam-se para escolher não só o homem cujas políticas mais se alinham com os seus ideais, mas também levam em consideração o caráter do futuro presidente. Não foi por acaso que na Convenção Nacional Democrata os oradores retrataram Joe Biden como um homem cuja família sempre foi fundamental para o seu percurso. A estratégia de dar ênfase à ninhada ficou evidente nos segmentos de vídeo que mostraram a história de amor, que já leva décadas, com a “Dra. Jill” , a sua estreita ligação aos netos e as perdas que experimentou com dois dos filhos e com a primeira mulher. Objetivo: construir no público a imagem de alguém que sobreviveu estoicamente aos desgostos e os transformou em vitórias. Com o aproximar das eleições, não é só Biden ou Trump que tentam passar no teste. São também as famílias dos candidatos.
Perder vidas, ganhar cargos
Todos os anos, a 18 de dezembro, Joe Biden não vai trabalhar. O vice-presidente de Obama durante oito anos, que antes foi senador do Delaware por 35, fica em casa em memória da primeira mulher e da filha de 13 meses, que morreram num acidente de carro. Naquele fatídico dia de 1972, Neilia Biden regressava das compras. Tinha acabado de adquirir a árvore de Natal, quando a sua viatura bateu contra um camião. No carro iam também os dois filhos mais velhos do casal, Beau e Hunter – sofreram ferimentos graves -, mas só a mulher e a pequena Naomi perderam a vida. Biden, que em novembro desse ano tinha sido eleito senador pelo estado de Delaware, considerou renunciar para cuidar dos miúdos. Acabou persuadido a não desistir. Foi empossado em janeiro do ano seguinte, no quarto de hospital dos filhos. Um momento altamente mediatizado que lhe granjeou empatia do público. Aos 30 anos, a idade mínima exigida para ocupar o cargo, tornou-se o sexto senador mais jovem na história dos EUA.
Católico, chegou a assumir que se virou contra Deus: “Não sabia que era capaz de sentir tanta raiva”. Para não falhar à família, optou por viajar 90 minutos por dia, entre ida e volta, da casa, nos subúrbios de Wilmington, até Washington, ao longo de todo o mandato. À época, estava de tal modo perturbado que tinha dificuldade em concentrar-se. No seu livro de memórias, lançado em 2007, “Promises to keep” (“Promessas para manter” – tradução livre, sem edição em português), divulgou que os funcionários que o assistiam – e que tinham ordem de o interromper a qualquer momento se os filhos ligassem – fizeram apostas sobre o tempo que o pai, viúvo, aguentaria no cargo.
Encontros às cegas e às escondidas
Jill Biden, atualmente com 69 anos e ex-segunda dama dos Estados Unidos, conheceu Joe ainda durante o seu processo de divórcio, em 1975, num encontro às cegas, arranjado por Frank, o irmão de Joe. O agora candidato democrata não demorou muito a apaixonar-se por ela. Em pouco tempo, Beau e Hunter alertaram-no: “Pai, achamos que está na hora de casares com a Jill”. O senador concordou, mas não foi fácil. Propôs-lhe casamento cinco vezes, antes de Jill aceitar. “Amava tanto os meninos que tinha de ter certeza que era para sempre.” E esse momento acentuou nele a convicção de um novo fôlego. “Ela devolveu-me a vida. Fez-me pensar que a minha família poderia estar novamente inteira”, confessou Biden. Não só inteira como maior. O que aconteceu em 1981, com o nascimento de Ashley, a filha do casal.
Por essa altura, os Trump já eram conhecidos nos Estados Unidos graças a Friederich, que 100 anos antes saiu do Porto de Bremen, na Alemanha, embarcado no navio SS Eider, rumo à cidade americana, lugar de todos os sonhos, de Nova Iorque. E marcando a árvore genealógica como o primeiro emigrante da família do candidato republicano. Era o avô de Donald Trump, atual presidente dos EUA, o homem que tanto se bate contra a imigração.
Christ Trump, pai de Donald, nasceu em 1905 em Queens. Com 15 anos, e apenas dois anos após o avô Trump morrer atingido pela pandemia da época, a gripe espanhola, o jovem mostrou ter herdado do pai o jeito para os negócios, ao entrar na área imobiliária. Não muito depois conheceu a escocesa Mary Anne. Casaram e quatro anos mais tarde nasceria Donald Trump, o terceiro dos quatro filhos do casal que agora se candidata a um segundo mandato à Casa Branca.
O presidente dos Estados Unidos cedo se tornou num dos homens de negócios mais poderosos do Mundo, com uma vida amorosa atribulada e tanto quanto possível multicultural. A primeira mulher, Ivana Trump, é natural de Zlín, na República Checa. Com ela teve três filhos: Donald Trump Jr., Ivanka e Eric. A segunda, Marla Maples, nasceu na Geórgia. Juntos tiveram Tiffany. E por fim, Melania, natural de Novo Mesto, Eslovénia (antiga Jugoslávia). Apesar de reconhecida como modelo em Itália e França, o nome da atual primeira-dama saltou para a ribalta quando conheceu Donald Trump, em 1999. No livro “The art of her deal” (“A arte da negociação dela” – tradução livre, sem edição em português), escrito por Mary Jordan, jornalista de política do “The Washington Post”, Melania é retratada como sendo mais parecida com Trump do que se imagina. E tem especial cuidado com a forma como a história da sua vida é contada. A autora coloca em dúvida algumas afirmações feitas pela mulher de Trump, como as de que é fluente em diversas línguas e de ser formada na Universidade de Ljubliana, na Eslovénia. E questiona também a história de que ela e o magnata se conheceram numa festa durante a semana de moda de Nova Iorque, em 1998. Segundo a então modelo, à época com 28 anos, recusou-se inicialmente a dar o número de telefone ao empresário – que naquele dia estaria num encontro com outra mulher – por já lhe conhecer a reputação de mulherengo. Ficou ela com o número dele, para ligar só quando conseguisse perceber quais eram as suas intenções. Terão sido as melhores, já que casaram em 2005, em Palm Beach, na Flórida. Um ano depois, nasceu o único filho de ambos, Barron William Trump.
Com a eleição de há quase quatro anos, Melania Trump tornou-se a segunda mulher estrangeira a ser primeira-dama dos Estados Unidos. A ex-modelo tem agenda própria e fala em esloveno com o filho, para desespero de Trump. Devido às muitas imagens que se conhece, leva muitas vezes com o rótulo de vítima do machismo do marido. O seu sorriso amarelo é frequentemente apanhado pelos fotógrafos. Bem como as repreensões, quando por exemplo afasta a mão do marido. A juntar a isto há o eterno burburinho sobre a má relação com a filha mais velha de Trump, que alegadamente é pautada por rivalidades. O magnata fez de Ivanka sua conselheira, abdicando da confirmação no Senado por não receber salário. É sua assessora especial desde 2017, com um papel muito ativo na Administração, de que faz oficialmente parte (tal como o marido) e tem trabalhado principalmente na área do empoderamento económico de mulheres, empreendimento e criação de emprego.
O segundo golpe dos Biden
Tal como Trump, Joe Biden depositou toda a confiança no filho mais velho, Beau, que entrou na política para seguir as pisadas do pai. Foi procurador-geral do Delaware. No cargo, conheceu e tornou-se amigo da atual candidata a vice-presidente, Kamala Harris. Nos planos estava candidatar-se a governador do Delaware, mas morreu antes disso, vítima de um tumor cerebral, em 2015. Uma fatalidade recordada recentemente pela madrasta, Jill. “Quatro dias após o funeral, vi Joe fazer a barba e vestir o fato. Em frente ao espelho, respirou, colocou os ombros para trás e saiu para um Mundo vazio do nosso filho. Voltou para trabalhar. Ele é exatamente assim.”
Ainda nesse ano, apesar dos apelos que o filho já doente lhe fez, Biden decidiu não avançar para a corrida à nomeação democrata contra Hillary Clinton. Passados quatro anos, o cenário foi diferente. Antes ainda foi apanhado na enxurrada do movimento #MeToo, acusado por várias mulheres de ter comportamentos impróprios. Sobreviveu sem mossa, apoiado pela família. À cabeça Jill, a professora de inglês com dois mestrados e um doutoramento, que sempre lecionou em escolas públicas, mesmo quando servia como segunda-dama.
Na verdade, a reputação da família só foi manchada pelo segundo filho de Biden, Hunter, o tal que Trump acabou por referir no debate. O advogado e fundador da empresa de capital de risco Eudora Global fez as delícias dos tabloides devido à dependência de drogas e à conturbada vida amorosa. Em 2017, Hunter divorciou-se de Kathleen Buhle, com quem divide três filhos: Naomi (em homenagem à falecida tia), Finnegan e Maisy. A seguir, começou um relacionamento com Hallie, a viúva do falecido irmão. Separaram-se no ano passado. “O meu filho, como muitas pessoas aí em casa”, insurgiu-se Biden, de olhar novamente fixo na câmara, “recuperou e eu estou orgulhoso dele”.
Trump diz o mesmo dos seus, apesar de todas as polémicas. O filho mais velho do magnata, com menos ambição política do que a irmã, Ivanka, idolatra o pai e ainda é mais incendiário do que ele no Twitter. Donald Trump Jr. ficou juntamente com o irmão Eric a gerir as empresas do pai enquanto ele se ocupa da Sala Oval. Mas viu-se envolvido no escândalo das interferências russas nas eleições americanas. Acicatado, reagiu conforme manda a tradição familiar: através do Twitter e mostrando toda a raiva contra os media para defender os Trump. Porém, o afeto já conheceu uma fase menos profícua. Anos antes, numa entrevista à revista “The New Yorker”, chegou a acusar o pai de não se ter preocupado com ele e com os irmãos. “Como podes dizer que nos amas? Não nos amas, nem sequer a ti próprio. Só amas o teu dinheiro.” Uma fase que passou após ser integrado nos negócios de marca Trump.
Recentemente, um membro da família saltou para as notícias por não apoiar Donald. Um livro de memórias escrito por Mary L. Trump, sobrinha do presidente, diz que ele é uma ameaça à vida de todos os americanos. “Too much and never enough: how my family created the world’s most dangerous man” (“Demasiado e nunca suficiente: como a minha família criou o homem mais perigoso do mundo”, na edição portuguesa), descreve-o como uma fraude e alguém que intimida os outros. Vendeu quase um milhão de cópias no primeiro dia em que foi colocado à venda. Mary, psicóloga e filha do irmão mais velho de Trump, Fred Jr. – que morreu aos 42 anos devido a problemas com o álcool -, acusa o presidente de arrogância e ignorância e diz que ele se encaixa nas características clínicas de um narcisista. Sendo um homem com “comportamentos retorcidos”, marcado por um pai “sociopata”.
No que a livros difamatórios diz respeito, Joe Biden está a salvo. Até porque o muito que se conhece sobre a sua família foi contado pelo próprio no livro de memórias já citado. “Nunca me disseram que uma vida na política e no serviço público seria fácil; tal como a vida, nunca esperei que a política fosse isenta de desilusões ou de desgostos. Mas sempre acreditei que valia a pena o esforço. E tendo sido eleito para vários cargos públicos desde os 37 anos, percebi que todas as coisas boas são difíceis e demoram tempo.” Mas também é verdade que o tempo passa a voar. Para se saber quem será o próximo presidente dos Estados Unidos falta pouco mais de uma semana. As fronteiras entre a política e a família esbatem-se. Uma vez que, ao eleger um, a América escolhe também os que lhe são próximos. Tiquetaque, tiquetaque… Porque as consequências disso vão chegar ao resto do Mundo.