Valter Hugo Mãe

A Casa Grande de Romarigães


Entendo bem o fascínio de Aquilino Ribeiro por este monumento que ofereceu ao mapa literário do país.

Quando visitamos as casas dos grandes livros estamos sempre num lugar híbrido que se faz da sua concreta existência e da profunda força da fantasia. Ler um livro é imaginá-lo. Inscrevêmo-lo na nossa existência através dessa poderosa oportunidade de vermos com o espírito, estarmos em espírito, à medida de nossas próprias ficções, desejos e receios, à medida de nosso próprio espanto. O livro é o espanto do autor mas só opera através do que espanta ao outro. Depois, há histórias com casas de verdade que visitamos por sorte, um dia, como se levantados das páginas fossem os muros de pedra e as paredes, os telhados e se estendessem os campos até podermos descer ao ribeiro, sob o arvoredo, onde se faz um pequeno largo que Deus terá inventado para que uma família se juntasse a merendar.

A Casa Grande de Romarigães, com seus séculos, é uma pedra gigante que espera incorruptível na sua dignidade. Não é o terrível desafio de a conservar que a fere. As ruínas são, ainda assim, inteiras de passado. São ligações entre os tempos e entre as pessoas e não se humilham, passam mutantes pelo cumprimento da idade. Cumprem a idade e ostentam-na por vigor. Vejo a casa de Romarigães como incorruptível porque também a vejo inelutavelmente com o espírito e não há modo de ser diferente. De verdade, eu, como milhares de outros leitores, construí a casa, carreguei todo o peso, desenhei as janelas e plantei todas as árvores, abri o curso da água, fiz com que não parasse de passar. Eu, que li o livro, fiz Romarigães e penteei as mulheres, vesti todas as personagens, cozinhei as refeições, subi e desci o sol para fazer os dias e as noites. Fui incansável, exactamente à medida da imaginação: inesgotável, absolutamente potente.

Entrei no largo entre as construções, diante da Capela do Amparo, pela primeira vez na minha vida. Passado o portão, encarar a fachada esculpida da capela, com seus santos ainda prestando ofício, incansáveis, seus adornos ensimesmados, é olhar de frente uma entidade mais do que uma obra edificada. Tive sempre curiosidade por ver como um todo aquela fachada, como se me colocasse de corpo franco à sua investida, e não me enganei na maravilha. A Capela do Amparo é de uma beleza terna. Apaixona-me a sua crua cor, seu aspecto frio, longo no tempo, como segue vazia, vaga, sem som.

Entendo bem o fascínio de Aquilino Ribeiro por este monumento que ofereceu ao mapa literário do país. Se ainda hoje se conserva na lonjura quase secreta do arvoredo daquela freguesia de Paredes de Coura, pelos 1950 haveria de significar em dobro o recôndito sossegado para onde cuidar dos retiros da família. Com suas decorações garbosas e suas sombras, a casa já era há muito a promessa de eternidade. Nada nela se pensou para ser preterido. Seu efeito é do inesquecível. Algo assim levanta-se de qualquer ruína. Aguarda, e ressurge. Agora, como se o livro houvesse de ensinar a usar cada cómodo, a declarar cada prece, a amar cada mulher, a deixar filhos que deitem mão do futuro e persistam na casa, pelo espanto. Claro. Pelo espanto.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)