Viver com um implante

Em março do ano passado, Paula Guimarães, com uma bexiga hiperativa que não cedia à medicação, passou a viver com um neuromodulador. (Foto: André Rolo/Global Imagens)

Duarte tem os sintomas de Parkinson dominados depois de lhe colocarem elétrodos no cérebro. Paula tem dentro de si um neuroestimulador que controla o problema de bexiga hiperativa. Miguel é um surdo que ouve graças a um implante coclear. E Virgílio fintou problemas cardíacos fatais com a colocação de um cardiodesfibrilhador dentro do peito. Os dispositivos médicos implantáveis são hoje uma forma de tratamento de muitas condições crónicas com resultados admiráveis.

Os dias que acabam por se revelar extraordinários começam quase sempre por parecer dias normais. A 22 de junho de 2004, o advogado Virgílio Chambel Coelho passou a manhã a trabalhar no escritório. Saiu pelas 13 horas, comeu um prego e pôs-se a caminho da prisão de Caxias, para visitar um cliente ali detido.

Foi só pelas 14 horas, quando conduzia o carro em plena A9, que se iniciou a sequência de eventos que haveria de transformar o seu dia normal num dia excecional: o dia em que fintou a morte. “Senti um frio gélido e, instintivamente, percebi que era alguma coisa de coração. Tive medo, mas decidi não parar”, conta o advogado de 64 anos. Não se lembra de mais nada até acordar no hospital, muitas horas depois, para descobrir que o seu coração tinha parado de bater.

O evento não é tão raro como se pensa. De acordo com a Fundação Portuguesa de Cardiologia, estima-se que anualmente dez mil pessoas sejam vítimas de morte súbita cardíaca. E calcula-se que, fora de um hospital, apenas 3% sobrevivam a uma paragem cardiorrespiratória.

No caso de Virgílio, foi uma indizível sorte que lhe permitiu desafiar as negras estatísticas. “Quando fiquei inconsciente, o carro foi bater no gradeamento de um quartel de bombeiros. Eles iniciaram de imediato as manobras de reanimação até o INEM chegar ao local.”

Mas se, naquele dia 22 de julho, há 15 anos, Virgílio dependeu da sorte para viver, desde então essa tarefa está entregue em melhores mãos: a ciência tomou conta do assunto e, apenas três dias depois desse seu evento de quase morte súbita, foi-lhe implantado dentro do peito um pacemaker que previne as arritmias e funciona também como desfibrilhador.

“Já todos vimos nos filmes o que acontece quando uma pessoa tem uma paragem cardíaca – chega uma equipa de médicos ou enfermeiros e inicia a reanimação e, habitualmente, dá um choque na zona do peito. Esse choque chama-se desfibrilhação e reverte a paragem cardíaca que, a maioria das vezes, tem origem numa arritmia chamada fibrilhação ventricular”, explica o cardiologista Diogo Cavaco, da Unidade de Arritmias do Hospital de Santa Cruz, em Lisboa, que operou Virgílio.

O problema, lembra o especialista, é que as pessoas não vivem dentro de um hospital e para este choque ser eficaz tem de ser dado nos primeiros minutos da paragem cardíaca. “Por este motivo desenvolveram-se os cardioversores desfibrilhadores implantáveis (CDI), aparelhos pequenos que ficam localizados abaixo da clavícula, por baixo da pele, e têm um elétrodo que fica dentro do coração. Monitorizam continuamente o ritmo cardíaco e, se ocorrer uma fibrilhação ventricular, o aparelho atua e dá esse choque”, elucida o médico.

Virgílio deixou de fumar, tenta comer melhor e faz exercício, mas, na realidade, raras vezes se lembra do pacemaker e desfibrilhador que tem dentro de si porque tem uma vida normal. Como ele, milhares de outros portugueses.

De acordo com o cardiologista Diogo Cavaco – segundo os dados recolhidos pela Associação Portuguesa de Arritmologia e Electrofisiologia (APAPE), relativos a 2017 – implantam-se anualmente em Portugal 887 pacemakers e 105 CDI por milhão de habitantes, o que corresponde a cerca de nove mil pacemakers e mais de mil CDI por ano. De ano para ano, acrescenta o especialista, o tamanho dos aparelhos vai sendo cada vez menor e a longevidade das baterias cada vez maior.

Desde há algum tempo presidente da Associação Portuguesa de Portadores de Pacemaker e CDI, Virgílio garante que o aparelho lhe mudou a vida. “Como não? Repare na ironia: agora posso morrer de tudo, menos do coração. Tenho aqui dentro uma coisa que faz aquilo que o meu corpo não faz. É mesmo uma segunda oportunidade.”

Virgílio Chambel Coelho tem, há 15 anos, dentro do peito um pacemaker que previne as arritmias e funciona também como desfibrilhador. (Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Uma história que começou há 61 anos

As segundas oportunidades dadas pelos Dispositivos Médicos Ativos Implantáveis (AIMD) – definidos como aparelhos que dependem de uma fonte de energia elétrica, destinados a ser introduzidos no corpo humano através de uma intervenção cirúrgica – tiveram o seu primeiro grande marco há 61 anos, exatamente com o pacemaker.

No dia 8 de outubro de 1958, o sueco Arne Larsson, de 40 anos, foi o primeiro a receber um pacemaker cardíaco totalmente implantado e definitivo. Mas, em 1958, “definitivo” era apenas uma força de expressão. A bateria do aparelho funcionou apenas três horas antes de falhar e Arne Larsson teve de ser sujeito a mais 25 mudanças de aparelho ao longo da vida.

E não mostra apenas os falhanços da tecnologia numa fase muito inicial do desenvolvimento, mostra sobretudo o seu sucesso: apesar das múltiplas intervenções cirúrgicas a que teve de ser sujeito, Arne Larsson viveu até aos 80 anos, fazendo uma vida relativamente normal graças aos sucessivos pacemakers. Os aparelhos ofereceram-lhe mais 40 anos de vida.

Nas últimas décadas, o uso de correntes elétricas dentro do corpo, de forma a alterar o seu funcionamento, tem vindo a ser aplicado de várias formas. Uma delas é neuromodulação de raízes sagradas, destinada a tratar casos de bexiga hiperativa que não cede à medicação. Este distúrbio neuromuscular faz com que o músculo da parede da bexiga se contraia com demasiada frequência, o que resulta em idas constantes à casa de banho e, muitas vezes, em episódios de incontinência urinária.

O procedimento – minimamente invasivo, realizado sob anestesia local e de curta duração – consiste na introdução de um elétrodo, através da zona sacro, nas raízes sagradas que controlam a bexiga, ligadas a um estimulador.

“Durante as primeiras seis semanas há uma fase de teste e o estimulador é externo. Se a resposta clínica for boa, procede-se a um segundo tempo operatório no qual simplesmente se liga o elétrodo que já tinha sido colocado a um gerador de corrente que fica dentro da nádega. Após o término da implantação do gerador definitivo, todo o dispositivo fica por debaixo da pele e impercetível, ou seja, o doente não fica com fios nem componentes visíveis externamente”, explica Ricardo Pereira e Silva, neuro-urologista do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

“O mecanismo de funcionamento da neuromodulação de raízes sagradas, como o nome indica, é a tentativa de modular a condução nervosa dos nervos sagrados, através da administração contínua de corrente elétrica de baixa voltagem. Esta vai interferir favoravelmente no funcionamento dessas raízes nervosas, contribuindo para a redução da hiperatividade da bexiga ou potenciando o relaxamento em casos de retenção urinária”, prossegue o especialista.

“Alguns estudos sugerem mesmo que, após alguns anos de neuromodulação, existem alterações a nível cerebral em centros superiores relacionados com a aprendizagem – isto significa que a neuromodulação, a longo prazo, contribui para uma melhor coordenação do aparelho urinário inferior, essencial à durabilidade dos resultados.”

Em 1958, o sueco Arne Larsson recebeu o primeiro pacemaker da história da medicina. Depois disso, viveu mais 40 anos.

O número de implantes tem vindo a aumentar, sendo que no Hospital de Santa Maria são atualmente aplicados cerca de 15 destes neuromoduladores por ano. Em 2018, Paula Guimarães, de 58 anos, foi uma das pacientes que realizou o procedimento. E não é contida nas palavras para com o seu médico e o neuromodulador: “Foi uma bênção. Porque não há bênção maior do que poder voltar a ter uma vida normal”.

Os primeiros sintomas de Paula – com muitas idas à casa de banho – começaram em 2015, mas foi no início de 2017 que pioram e a normalidade se começou a dissipar. “Quase não bebia água, no trabalho levantava-me de 15 em 15 minutos para ir à casa de banho, não dormia bem com medo de não chegar a tempo à sanita, não fazia programas sociais, como ir a concertos, porque as casas de banho ficavam longe e podiam estar ocupadas”, recorda a técnica de tecnologias de informação.

Foram tempos péssimos, mas há um dia que lhe ficou especialmente gravado na memória, 29 de setembro de 2017. Ia a chegar a casa, preparava-se para atravessar a rua, mas não chegou a conseguir. Mortificada de vergonha, teve uma crise de incontinência total. “Não me esqueço da data, não consigo esquecer. Cheguei a casa lavada em lágrimas, mas com a convicção de que não podia continuar assim. Sentia que era um pouco degradante estar assim aos 57 anos e não me imaginava a ter de usar fraldas com essa idade.”

Esses tempos estão para trás das costas desde que colocou o implante, em março de 2018: bebe água à vontade, vai à casa de banho com uma frequência normal, recuperou o sono e a vida social. “Dentro do azar que foi ter esse problema, tive uma imensa sorte porque afinal havia uma solução”, garante.

A magia da neuromodulação cerebral

Duarte Cancella de Abreu chega ao ponto de encontro no Belas Clube de Campo, onde vive, dois minutos antes da hora marcada, de mochila às costas, com um passo firme e rápido. Está prestes a fazer 58 anos, mas conta que, agora, há dois aniversários a comemorar anualmente: o dia em que nasceu e o dia em que, há quase dois anos, passou nove horas numa sala de operações, acordado e perfeitamente consciente, enquanto uma equipa médica lhe implantava no cérebro os elétrodos que haveriam de o devolver à vida.

Mas, para contar a sua história, é preciso recuar ao início. E o início foi há duas décadas, quando, com apenas 38 anos, foi ao médico por causa de uns tremores na mão e saiu da consulta com um diagnóstico de Doença de Parkinson. Rara antes dos 50 anos, resulta da morte das células cerebrais que produzem a dopamina responsável, entre outros, pela atividade muscular. Quando pelo menos 70% dessas células estão mortas, começam os sintomas: tremores, a rigidez dos membros e a lentidão e descoordenação de movimentos que se agravam com o tempo, já que é uma enfermidade degenerativa e os sintomas progressivos.

A cirurgia de estimulação cerebral profunda – conhecida pela sua sigla em inglês, DBS – é um método de neuromodulação invasivo, aprovado para o tratamento dos sintomas da Doença de Parkinson desde 2002, que envolve a colocação de microelétrodos no cérebro.

Em 2017, depois de quase 18 anos a lutar contra a Doença de Parkinson, Duarte Cancella de Abreu passou nove horas numa sala de operações, acordado e consciente, enquanto uma equipa médica lhe implantava no cérebro os elétrodos que haveriam de o devolver à vida. (Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Os candidatos à cirurgia são, segundo a neurocirurgiã Maria Begoña Cattoni, aqueles que têm Doença de Parkinson idiopática, ou seja, quando a condição não é provocada por outra doença – nomeadamente, traumatismos ou doenças vasculares. E, dentro destes, é particularmente útil àqueles que chegaram ao fim da linha terapêutica com medicação oral.

“Por norma, os pacientes conseguem ter os sintomas relativamente controlados com a mediação durante dez a 15 anos. A partir daí, começa a perder eficácia ou a ter efeitos secundários”, assinala a especialista em Neurocirurgia Estereotáxica e Funcional, responsável pela área cirúrgica de Estimulação Cerebral Profunda para tratamento das Doenças do Movimento da CUF.

Em 2017, depois de quase 18 anos a lutar contra a doença, o cenário não era famoso para Duarte. Tomava 25 comprimidos por dia – só ao pequeno-almoço eram 12 – e, mesmo assim, continuava a piorar. “Havia uma série de coisas que estava a deixar de conseguir fazer: tinha desatenções a conduzir, escrevia já tão mal que nem eu próprio conseguia ler o que tinha escrito e era difícil responder a mensagens no telemóvel, sobretudo quando entrava em ‘off’, a fase em que os comprimidos já deixavam de fazer efeito e ainda não tinha tomado os seguintes”, lembra, enquanto leva à boca uma chávena de café com quase impecável precisão. “Com a cirurgia, os sintomas da doença andaram dez anos para trás”, resume.

A cirurgia é feita em dois momentos: “No primeiro, são colocados microelétrodos em ambos os hemisférios cerebrais, localizados em zonas nobres – normalmente nos núcleos subtalâmicos -, que estão ligados a fios especiais, que passam por baixo da pele, por trás da orelha”, pormenoriza a neurocirurgiã Maria Begoña Cattoni.

Num segundo momento operatório, é implantado, também por dentro da pele, acima da clavícula, o neuroestimulador. Depois de acionado e programado, “o neuroestimulador envia microestímulos elétricos de baixa intensidade para os elétrodos colocados no cérebro, aliviando os sintomas da doença”.

Os mecanismos que provocam essa melhoria ainda não estão completamente estabelecidos, admite a médica. Mas, apesar de ainda não se dominar toda a cascata de acontecimentos que provoca essa melhoria, há uma coisa que se se sabe: os pacientes melhoram. “Quando o procedimento corre bem e sem complicações, é seguro dizer que todos os doentes beneficiam com o tratamento, sendo que as percentagens de melhoria podem oscilar entre os 60 e os 80%”, defende a cirurgiã.

Duarte Cancella de Abreu é uma das provas vivas dessa incrível melhoria. Os efeitos da cirurgia foram imediatos. Assim que ligaram a bateria e se acertou a programação do estimulador, os tremores diminuíram. “Quando vou às consultas de revisão, de três em três meses, e desligam o estimulador, fico imediatamente com tremores. Ligam, e o tremor passa. É incrível. E é uma forma de revalorizarmos constantemente esta oportunidade.”

Tecnologia só devolve um sentido

Miguel Borges, de 52 anos, não é um homem que se possa apresentar em poucas palavras: é marido, pai, engenheiro, gestor, empreendedor, missionário, professor de ioga, budista, estudante de osteopatia e fundador da Amara – Associação pela Dignidade na Vida e na Morte. Fala cinco línguas, pratica desporto seis dias por semana e toca piano. Além disso, é surdo. “Completamente surdo, sem isto não oiço rigorosamente nada”, diz, a rir, enquanto retira dois pequenos aparelhos de trás das orelhas: a prótese auditiva, à direita, e o processador do implante coclear, à esquerda.

Miguel Borges já não ouvia o suficiente para ser possível “amplificar” o som. Por isso, avançou para o implante coclear – um dispositivo eletrónico cirurgicamente colocado que estimula diretamente o nervo auditivo. (Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Foi pelos 38 anos que Miguel começou a ficar aquilo a que muitos chamam “despercebido”. A perda de audição foi progressiva, começou por afetar só algumas frequências, o que resulta na perda de inteligibilidade, ou seja, começam a falhar partes das palavras, o que faz com que não se perceba a palavra toda. “Pedia frequentemente às pessoas para repetirem coisas.”

O diagnóstico de otosclerose coclear bilateral – a ossificação de estruturas do ouvido – veio pouco depois e Miguel iniciou de imediato um longo caminho de uso de próteses auditivas que foram sempre aumentando em tamanho e potência. No entanto, em 2014, já não havia prótese auditiva que valesse ao ouvido esquerdo.

“De forma muito simplificada pode dizer-se que a prótese auditiva é um altifalante: recebe o som de um lado e amplifica-o para o outro. Mas, para funcionar, tem de haver audição na cóclea. Se as células do ouvido interno deixaram de funcionar, o som não consegue passar para o nervo auditivo”, frisa João Paço, otorrinolaringologista e coordenador do departamento de Otorrino do Hospital CUF Infante Santo, em Lisboa.

À esquerda, Miguel já não ouvia o suficiente para ser possível “amplificar” o som. Por isso, avançou para o implante coclear – um dispositivo eletrónico cirurgicamente colocado que estimula diretamente o nervo auditivo. O aparelho tem uma parte externa, usada atrás da orelha, formada por um microfone que capta o som, por um processador que transforma esse som num sinal elétrico e um transmissor que envia por radiofrequência, através da pele, esse sinal ao componente interno.

Este, implantado por baixo da pele atrás da orelha, recebe o sinal e envia-o para os elétrodos colocados no interior da cóclea, estimulando diretamente as terminações do nervo auditivo. Os sinais elétricos conduzidos por este nervo são depois enviados para áreas específicas do cérebro onde serão interpretados como sons e linguagem.

João Paço faz implantes cocleares há 20 anos, já perdeu a conta a quantos fez, mas, mesmo assim, nunca deixa de ficar comovido com aquilo que se consegue proporcionar ao paciente. “Temos cinco sentidos e há apenas um que conseguimos devolver a quem o perdeu: a audição, através dos implantes cocleares”, conclui o médico.

Foram preciso vários meses e muito treino até o cérebro de Miguel aprender a ouvir com o implante coclear. De início, quando se ativa o dispositivo, só se ouve ruído, não se distinguem sons nenhuns é um “vruuu” constante. Miguel encarou o processo como um jogo: nem durante a noite o retirava: “Ligava, através de Bluetooth, o implante a audiobooks e ficava a noite toda a ouvir, para estimular e ser mais rápida a adaptação”.

Hoje, ouve perfeitamente, embora reconheça que escuta as pessoas um pouco como se fossem robôs. “É um som um pouco mais digital, mas já nem noto. Na realidade, esqueço-me que sou surdo porque sou um surdo que ouve. E sou muito grato à ciência por isso.”