Violência no parto: as marcas de quem não foi feliz na hora de ser mãe

Foto: Orlando Almeida/Global Imagens

Texto de Sofia Filipe

Perdeu a conta dos profissionais de saúde que entraram na sala de parto. “Estava ali, nua, aberta, suja e com vontade de morrer”, afirma, com mágoa e angústia, Bárbara Magalhães, sobre o nascimento de Aléxis, a 10 de novembro de 2011.

Mãe de primeira viagem, asmática, foi ao Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo, no dia anterior, devido à falta de ar. Diz que no Serviço de Obstetrícia lhe fizeram “o primeiro de muitos toques, sem perguntar ou explicar” e que a informaram que já estava em trabalho de parto.

“Durante a gravidez planeei um nascimento em casa, com a parteira que me acompanhava e tinha a piscina de parto instalada”, revela esta mãe, de 39 anos, de Vila Praia de Âncora. Partilhou esse desejo com a equipa médica, que “não o encarou com bons olhos”. Segundo refere, foi dissuadida, mas, após refletir com o companheiro, optou por permanecer na unidade hospitalar e mencionou que “não queria ser medicada nem episiotomia”.

Bárbara Magalhães considera-se vítima de violência obstétrica. Segundo Sara do Vale, presidente da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e no Parto (APDMGP), isso acontece “quando não há consentimento informado”. Em média a associação recebe um pedido de ajuda por dia por violência obstétrica.

A OMS emitiu diretrizes para definir padrões de atendimento a grávidas saudáveis e reduzir intervenções clínicas desnecessárias, em que recomenda às equipas médicas e de enfermagem para não interferirem no trabalho de parto, com o intuito de o acelerar, a menos que exista risco de complicações.

A Ordem dos Enfermeiros (OE) garante não ter recebido queixas sobre violência obstétrica e, “como implica violação dos direitos da mulher grávida, o incumprimento dos deveres e princípios ético-deontológicos dos profissionais resulta em procedimentos previstos pela Ordem”. O presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica (MCEESMO) da Ordem dos Enfermeiros, Vítor Varela, explica que “qualquer denúncia ou queixa obriga a MCEESMO a propor a abertura de um processo de averiguações”.

Bárbara Magalhães, 39 anos, planeou um nascimento em casa, com parteira e piscina de parto, mas acabou por ter Aléxis num hospital (Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

De acordo com o consenso da especialidade, em vez do termo “violência” é adotado “mau-trato” que, no entender de João Bernardes, presidente do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos e professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, é mais adaptável à realidade portuguesa.

Inclui situações de “abuso físico ou verbal, falha de prestação de cuidados adequados, negligência, discriminação e/ou recusa de aceitação da autonomia da mulher, depois de esclarecida sobre os benefícios, os malefícios e a justiça distributiva/social das suas decisões”. Bernardes acrescenta que qualquer queixa à OM, devidamente apresentada, é alvo de abertura de um processo disciplinar, podendo ser arquivado ou levar à condenação. Assegura não ter conhecimento de qualquer queixa relacionada com violência obstétrica apresentada à Ordem.

Contudo, fala de 20 entradas no Colégio relacionadas com “maus desfechos obstétricos ou ginecológicos, com alegações de ‘má prática’ ou ‘negligência'” e indica que normalmente são dirigidas a toda a equipa.

A episiotomia é uma intervenção que consiste no corte do períneo e pode ser necessária para facilitar a saída do feto durante o parto. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a taxa média não deverá exceder os 10%. João Bernardes assegura que não está apurada a média a nível mundial, mas, atendendo aos dados disponíveis, estima que no nosso País ronde os 30-40% dos partos vaginais sem intervenção obstétrica, subindo para os 50-60% quando assistidos com fórceps ou ventosa.

Voltamos a Viana do Castelo. Bárbara Magalhães conta que entrou mais depressa em trabalho de parto e sofrimento depois do obstetra romper a bolsa amniótica por desconfiar da existência de mecónio no líquido. Repete ter ouvido “dezenas de vezes” que sentia dores “porque queria, pelo que tinha de aguentar” e, como “todos queriam ver”, sentia-se uma “aberração num circo”.

A certa altura, o médico disse que ia fazer uma episiotomia para evitar a laceração. “Revejo caras a rir, a olhar com nojo, o meu namorado sempre a discutir com eles, sangue e medo”, desabafa. Chegou a redigir uma queixa, com o apoio da enfermeira parteira. Porém, não teve coragem de avançar. “A ideia de encarar as pessoas mexia muito comigo. No parto de uma amiga, vi o obstetra que me atendeu e quase desmaiei”, relata esta mulher, que diz também ter ouvido comentários pejorativos por ser vegetariana.

“No parto de uma amiga, vi o obstetra que me atendeu e quase desmaiei” (Bárbara Magalhães)

A administração da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, da qual faz parte o Hospital de Santa Luzia, confirma que “não deu entrada nenhuma reclamação no Gabinete do Cidadão acerca deste episódio” e esclarece à “Notícias Magazine” que, “de acordo com os registos existentes no processo clínico, após merecida avaliação, verifica-se que foram cumpridos todos os processos e normativos em vigor”.

Associação recebe um pedido de ajuda por dia
Laura Ramos tem 43 anos, é natural de Mangualde, vive na capital há 20 anos e revela ter assinado com o marido, João, e o filho, Vasco, uma queixa dirigida à equipa de Ginecologia/Obstetrícia de um hospital de Lisboa que não especificou. Datada de 21 de junho de 2017, a acusação foi também enviada para a OM, OE, Entidade Reguladora da Saúde (ERS), Ministério da Saúde e presidente da República, na sequência do atendimento no parto do Vasco, que completa dois anos em dezembro. Ao longo de dez páginas relata a “situação traumática” que viveu, desde que deu entrada no hospital até ser “suturada com violência, sem qualquer anestesia”.

Laura Ramos, 43 anos, criou uma petição pública que já reuniu mais de sete mil assinaturas e conseguiu levar a violência obstétrica a ser discutida na Assembleia da República (Foto: Sara Matos/Global Imagens)

Conta que ao encontrar uma posição mais confortável, de gatas e encostada à poltrona que estava ao lado da cama, a bolsa amniótica rompeu e as contrações aceleraram. Segundo diz, nesse momento uma enfermeira entrou na sala e, alterada, gritou para a equipa: “Venham cá que esta vai parir no chão”, obrigando Laura a subir para a cama “sempre aos gritos”.

É com tristeza que recorda o “choque de ser maltratada por profissionais de saúde, como se não fosse humana”, bem como “os comentários irónicos e o discurso paternalista, baseado no protocolo, como se o corpo da mulher (o meu) não tivesse qualquer interesse”. Também indica que ouviu diversas vezes que tinha de se despachar e pensa “sempre num campo de batalha” quando recua até àquele que poderia ter sido um lindo momento – o nascimento de um filho.

Quando questionado sobre o motivo por que acontece violência obstétrica, Vítor Varela comenta que vivemos com muitas ligações ao passado, com falta de liberdades e de opções. “Tudo é feito da mesma forma com o mesmo objetivo, despachar porque isto é um negócio”, considera, para explicar que “as experiências das mulheres com os seus cuidadores não capacitam, não confortam, pelo contrário infligem muitas vezes danos permanentes e traumas emocionais durante a assistência da gravidez, o parto e o puerpério (salvo exceções)”.

Laura também lamenta não poder contar uma “história bonita do nascimento” dos filhos mais velhos, Miguel, de cinco anos, e Diana de três anos. “Roubaram-me violenta e gratuitamente a oportunidade de ter um parto feliz. Senti-me humilhada, desrespeitada e violada física e psicologicamente nos meus direitos”, acusa, com a voz carregada de tristeza. Mas lida com “essas lembranças” de uma forma positiva. Tornou a queixa numa carta aberta, depois de receber a resposta do hospital a indicar que serviria para reflexão, e acumulou o ativismo em prol dos direitos das mulheres com a profissão de jornalista.

“Roubaram-me violenta e gratuitamente a oportunidade de ter um parto feliz. Senti-me humilhada, desrespeitada e violada física e psicologicamente nos meus direitos” (Laura Ramos)

Sara do Vale conhece inúmeras histórias e garante que as puérperas com maior satisfação são aquelas em que as mães foram envolvidas nas decisões. “Nem sempre o parto acontece como se idealizou, mas tomar parte é diferente de perder o controlo”, assinala a presidente da APDMGP, que recebe uma média de um pedido de ajuda por dia por violência obstétrica.

“Muitas só querem desabafar e nem pensam em apresentar queixa. Outras têm a ideia errada de que não vale a pena”, especifica. Na Oporto Trauma Clínica, a psicóloga Lígia Catão acompanha algumas mulheres que vivenciaram experiências como as de Bárbara e de Laura e aponta a episiotomia desnecessária como um exemplo possível de violência obstétrica. “Em alguns casos, com referência a dificuldades sexuais, percebia a origem do trauma quando trabalhava as condições do parto”, sustenta a psicóloga, que também é terapeuta sexual pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica e pretende escrever um livro sobre a temática.

A alteração na sexualidade não é a única sequela. Sara do Vale indica a incontinência urinária e fecal, bem como “dificuldade na ligação ao bebé, alteração do projeto de vida, stresse pós-traumático, flashback ou depressão”.

Dois casos em tribunal
Maria é o nome que preserva a identidade de uma mulher de 43 anos, de Castanheira do Ribatejo, que sofre de stresse pós-traumático, depressão, crises de ansiedade e pânico na sequência do último parto. Era mãe de quinta viagem e quando se dirigiu ao Hospital de Vila Franca de Xira, no dia 19 de maio de 2017, estava longe de imaginar o desfecho.

“Sinto como se tivesse sido violada e tão triste que só me apetece desaparecer”, suspira. Ao regressar ao trabalho, Maria admite que estava sempre a chorar, não tolerava gritos nem confusões, não conseguia subir escadas e o inevitável aconteceu – perdeu o emprego de auxiliar de linha numa fábrica.

“Sinto como se tivesse sido violada e tão triste que só me apetece desaparecer” (Maria)

Ainda chora (e muito) ao recordar o nascimento da pequena Beatriz por ter sido “vítima de violência obstétrica por parte de um enfermeiro parteiro”, sublinha. Diz que aquele profissional da saúde “aumentou a dose de oxitocina, causando grande incómodo, gritou que não queria era parir e disse que era culpada pelo sofrimento por ter recusado a epidural”.

E adiciona: “Sempre a refilar, pediu para ‘meter-me a jeito’, pensei que fosse o toque, mas puxou algo, senti-me a ser esventrada, disse para parar e abandonou a sala. Ao regressar, o enfermeiro esgaçou a vagina, tive dores horríveis, gritei e ele berrou que quem mandava era ele e não queria ninguém a gritar”. Confessa que também não consegue ter intimidade com o marido por se sentir violada e ter medo de engravidar.

Maria é o nome que preserva a identidade de uma mulher de 43 anos, de Castanheira do Ribatejo. Ainda chora quando recorda o nascimento da filha, em maio de 2017 (Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Maria fez queixa no Hospital de Vila Franca de Xira, na provedora do hospital, na ERS, na Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e na OE. A resposta veio da unidade hospitalar e esta mãe assegura que foi chamada de “mentirosa por palavras caras”. Por seu turno, o Hospital Vila Franca de Xira argumenta que “o Serviço de Ginecologia/Obstetrícia garante às parturientes um ambiente de total segurança clínica e tranquilidade, tendo obtido a classificação máxima de Excelência Clínica no âmbito do Sistema Nacional de Avaliação em Saúde, responsabilidade da ERS”.

Esclarece ainda que “o acompanhamento das parturientes é garantido por uma equipa clínica composta por médicos obstetras e enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Materna, Obstetrícia e Ginecologia, que no exercício das suas funções permanecem atentos e procuram garantir a máxima qualidade dos cuidados prestados”. “A segurança clínica da mãe e do recém-nascido é para os profissionais uma prioridade, tendo, no caso relatado, sido prestados todos os cuidados clínicos adequados”, conclui a unidade hospitalar.

Maria também teve uma resposta da OE a solicitar a sua presença. Na ocasião, disse que “não queria prejudicar ninguém e aceitaria um pedido de desculpas”, que foi recebido no passado dia 8 de outubro, mas que “em nada transmitia arrependimento”. Por isso, Maria pretende “continuar a luta e avançar até onde conseguir”. Não é a única a levar para a frente uma queixa.

Segundo a APDMGP, vários casos seguem para tribunal e pelo menos dois são do conhecimento da associação, desde que foi fundada em dezembro de 2014. Uma das pacientes de Lígia Catão decidiu denunciar depois de ganhar a confiança suficiente, através de sessões de psicoterapia neuropsicofisiológica para o trauma (EMDR e Brainspotting), de forma a encarar alguns elementos da equipa que acusa de violência obstétrica.

Laura Ramos afirma ser muito difícil provar a ocorrência de violência obstétrica por ser “a palavra de um contra a de outro”, mas defende que “o importante é não baixar os braços”. A prova dessa postura está na petição pública criada para acabar com a violência obstétrica nos blocos de parto dos hospitais portugueses. Em três dias, ultrapassou as quatro mil assinaturas necessárias para ser discutida na Assembleia da República. A primeira audição aconteceu no passado dia 10 de outubro e as subscrições têm aumentado, ultrapassando as sete mil.

Bárbara Magalhães não teve apoio das pessoas mais próximas. “Não compreendiam que vivi abuso obstétrico”, realça esta mulher que acabou por adquirir “novas ferramentas para lidar com a gravidez e com o parto”. Foi mãe pela segunda vez, em dezembro de 2017, de Leonardo, no Centro Hospitalar da Póvoa do Varzim, onde entregou o plano de parto, que “não foi recebido com risos ou ameaças”. “O parto foi meu, do bebé e do meu companheiro.”