Texto de Kátia Catulo
A precariedade é uma linha a atravessar profissões, empregos, faixas etárias, níveis de escolaridade ou setores públicos e privados. Mas não é linear e não depende de se ter ou não um vínculo contratual.
O que está em causa é, muitas vezes, a ausência de direitos laborais como uma remuneração regular, acesso a segurança social, a sistema de saúde ou a indemnizações e subsídios quando se perde o trabalho. Um precário pode até ter meses em que ganha muito bem, mas também tem alturas em que leva quase nada para casa. E são esses altos e baixos que os obrigam a viver um dia de cada vez, impedindo-os de fazer planos.
O precário pode até estar empregado. A Organização Mundial do Trabalho, aliás, mostra no relatório “Trabalho digno em Portugal 2008-2018” que o emprego cresceu no período pós-crise. A má notícia é que as horas de trabalho aumentaram – de 36,9 para 38 horas semanais -, mas os salários, esses, estão praticamente na mesma, continuando também mais baixos face à média europeia.
É certo que o país está a criar mais postos de trabalho desde 2013, mas é sobretudo à custa do emprego de má qualidade, havendo agora 128,4 mil precários com contratos a termo ou de prestação de serviços, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (2017).
Um precário será sempre desigual quando comparado com os que têm um contrato a termo incerto. Mas também é desigual de caso para caso. As estatísticas não mostram essas diferenças. Os números servem como indicadores, dão um enquadramento geral, mas ficam sempre a boiar à superfície.
Para ir ao fundo da precariedade, é necessário ouvir quem trabalha sem rendimentos fixos ou quem precisa de bónus e prémios para não levar só um salário mínimo. Entrar na precariedade tanto é saltar de contrato em contrato como quase duplicar a carga horária para continuar a ter trabalho. E é não ter férias, fins de semana ou feriados para não deixar escapar uma oportunidade. E, também, aproveitar os meses bons para compensar os maus.
Ser precário é isso e não só. Melhor do que descrever as condições é ouvir o que eles têm para dizer. Passemos a palavra a sete precários. Cada qual com uma profissão ou um emprego que, por si só, já é um convite à precariedade. Nuns casos é por não terem escolha, noutros, é o preço para trabalhar naquilo de que tanto gostam. E só pagam esse preço por acreditar que, um dia, o futuro será diferente deste presente.
Onze horas de amor por dia
Nome: Luísa Sousa
Idade: 49 anos
Profissão: ama
Cidade: Almada
Às 7.30 horas, a campainha já está a tocar. A dona da casa destranca a porta e abre os braços para receber as quatro visitas, ainda estremunhadas, que vão preencher as próximas 11 horas do dia dela. Luísa Sousa, 49 anos, trabalha para uma instituição particular, mas é no seu apartamento, em Almada, que cuida de crianças entre os quatro meses e os três anos. As educadoras e a diretora pedagógica supervisionam o trabalho dela, mas quem lhe paga o salário é a Segurança Social.
O esquema é confuso, mas fica mais confuso para as 341 amas de creche familiar a trabalhar para as IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) e misericórdias. De um lado, as instituições particulares dizem que não são suas empregadoras – não lhes pagam o salário, assegurando apenas uma competência do Estado. Do outro, a tutela responde que, se trabalham em exclusivo para uma única entidade, então, não pode ser responsável por elas.
Assim estão as amas, empurradas de um lado para o outro, sem patrão, ou sequer uma lei a regular a profissão. Luísa tenta manter-se em cima desse limbo há 19 anos. Todos os meses, emite um recibo verde para receber de volta 762 euros. O valor inclui os duodécimos dos subsídios de férias e de Natal e exclui a prestação para a Segurança Social. Descontos feitos sobram 646 euros/mês.
É o vencimento por 55 horas semanais de trabalho, mas só se não ficar doente: “A baixa só é paga a partir do décimo dia”. E, no caso de usar uma tarde ou uma manhã para ir ao médico, as crianças ficam na instituição e perde o dia. A alimentação e material pedagógico são assegurados pela instituição e os produtos de higiene pelas famílias. Mas água, luz, papel higiénico, guardanapos, detergentes ou desinfetantes são por conta dela. E o mesmo se for preciso consertar sofás rasgados ou pintar paredes rabiscadas.
“Quem faz isto só pode ser por gosto”, avisa Luísa. E, mesmo assim, é preciso saber lidar com os altos e baixos: “Quando comecei, em 2001, tinha toda a energia do mundo, mas ao fim de quatro anos tive a minha primeira quebra”. Uma depressão diagnosticada pelo médico de família, que nem estranhou, tendo em conta o dia todo em casa sem adultos por perto.
Gerir os humores aprende-se com o tempo, mas só porque tem a família por perto: “O apoio das minhas duas filhas e do meu marido é fundamental”. Não é que as depressões tenham desaparecido, apenas não são suficientes para desistir. “Ao fim de 20 anos não me imagino noutro lugar.”
A coreografia de todos os momentos
Nome: Sara Silva
Idade: 32 anos
Profissão: bailarina
Cidade: Matosinhos
Sara Silva acorda com as pilhas ligadas. Quem falta contactar e quem ainda não me respondeu? Quais as candidaturas que estão a terminar? Que festivais acontecem nos próximos meses? De quanto dinheiro preciso para o próximo projeto? Muitas perguntas para o início do dia de uma bailarina de dança contemporânea, que também veste o papel de produtora, de contabilista ou de professora de balé para chegar ao fim do mês com um rendimento a variar entre os 800 e os 1 000 euros em prestação de serviços. Por vezes nem isso, já que, no verão, quase tudo pára. Mas, o que ela não pode é desligar as pilhas, então é que seria pior.
Dir-se-ia que a vida atarefada condiz com o cargo que ocupa. Sara dirige a Companhia de Dança de Matosinhos, função partilhada com a colega Diana Amaral. Pode parecer um lugar de topo e com remuneração à altura, mas é só mesmo pompa. A companhia só tem bailarinos, coreógrafos ou cenógrafos quando ambas conseguem financiar os projetos junto de autarquias, fundações, entidades do Estado ou através de crowdfunding.
Por estes dias, o tempo dela espartilha-se entre aulas na Academia de Dança de Matosinhos, oficinas, um mestrado na Alemanha e ainda uma tournée que, nos últimos dois anos, tem levado uma “Bailarina Espe(ta)cular” ao público infantil de Matosinhos, Porto, Lisboa, Faro ou Sintra. Projetos ou viagens são preparados com quatro, cinco ou seis meses de antecedência. É preciso revirar a rede de contactos, candidatar-se a concursos ou viver em casa de amigos. Só assim consegue participar em audições no estrangeiro, montar espetáculos ou avançar na formação. “Nós, os bailarinos, estamos sempre a pedir”, conta Sara, reconhecendo serem muitos a bater às mesmas portas.
Aos 32 anos, esperava alguma “estabilidade financeira”, mas o único período em que não esteve a fazer contas foi quando deu aulas na Kale – Companhia de Dança, em Vila Nova de Gaia, com um contrato de dois anos. O restante percurso foi sempre a planear o dia e os meses seguintes em simultâneo. “É um tipo de vida emocionalmente cansativo.”
Ainda assim, não atira a toalha ao chão. Sara quer dançar desde os três anos, quando viu a irmã mais velha de tutu e sapatilhas a rodopiar numa aula de balé. Foi aí que começou a viagem dela, levando-a até Inglaterra, aos 18 anos. Em Londres descobriu que é com a dança contemporânea que o seu corpo ganha liberdade. E foi com essa liberdade que regressou, em 2012, a Matosinhos, recomeçando a procurar o lugar dela. Até hoje, continua a procurar.
O homem-máquina preso ao telefone
Nome: Danilo Moreira
Idade: 42 anos
Profissão: operador de call center
Cidade: Lisboa
De auricular na orelha, os operadores de call center aguardam que a máquina dispare as chamadas – quatro ou cinco em simultâneo. Se uma falha, o sistema passa para a seguinte até alguém atender. Não há tempo, nem para beber água. Há humanos que aprenderam a fintar a máquina. “Aguarde um momento enquanto finalizo a operação” – pedem ao cliente e usam esse “momento” para hidratar a garganta.
Em cada quatro horas, um descanso de 10/12 minutos, mas só um de cada vez. Os intervalos, como tal, podem cair em cima do almoço ou da saída. Por vezes, três atrasos num mês – entradas, pausas ou regresso do almoço -, nem que seja por um só minuto, e lá se vai o prémio de assiduidade. Os objetivos estão definidos à hora, à semana ou ao mês, variando as métricas de empresa para empresa ou de serviço para serviço: números de chamadas/questionários/processos/reclamações resolvidas/vendas e por aí fora.
O desempenho é monitorizado todos os meses com duas ou três audições aleatórias. São avaliados a simpatia, a capacidade de resolução de problemas, a agressividade estratégica ou os procedimentos técnicos. E o resultado, por regra, deve ultrapassar os 75%, senão é o prémio de qualidade no atendimento que vai à vida.
Quem descreve o que se passa em grande parte dos call centers é Danilo Moreira. Tem 42 anos, 13 dos quais ao serviço da Meo/Altice, em Lisboa, que não é o seu empregador. Como em qualquer call center, a contratação é através de empresas de trabalho temporário. Ele agora está na retenção de clientes da banda larga. Tem de segurá-los, mesmo depois de irem à loja ou solicitarem por escrito que os deixem em paz. Depois disso tudo, é Danilo que entra em ação. Três em cada dez terão de ficar. “Há meses em que consigo e outros em que atinjo algo como 2,2 clientes, levando meio prémio.”
Para cumprir as metas, usa o fator humano como estratégia – “amor, cortesia e calma” – mesmo quando as queixas explodem ao ouvido: “Oiço o cliente, vou ao cerne do problema e tento criar empatia”. Os rendimentos oscilam com os bónus, acrescentando algumas centenas de euros ao salário mínimo. O prémio máximo, a rondar 350 euros, é praticamente inalcançável, pelo menos para um humano. “É preciso não falhar nada”, constata Danilo, explicando que levou em média 106 euros/mês em 2018.
Os operadores de call centers são cerca de cem mil em uma dezena de setores, segundo a Associação Portuguesa de Contact Centers. Mas encontrar um que revele a identidade é difícil. Danilo dá a cara por todos. Essa é uma das razões para estar à frente do Sindicato dos Trabalhadores de Call Centers. Querem contratação direta – descartando os contratos mensais renováveis -, pausas de seis minutos/hora, tarefas rotativas ou intervalos mínimos de 15/25 segundos entre chamadas. Os operadores não ditam as regras, mas Danilo acredita que “juntos fazem a mudança”.
Uma mão-cheia de bolsas vazias
Nome: Joana Santana
Idade: 38 anos
Profissão: bolseira de investigação científica
Cidade: Loures
Tudo o que seria expectável acontecer a um recém-licenciado aconteceu a Joana Santana. Com um curso em Biologia Aplicada aos Recursos Animais Terrestres, saiu, em 2004, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e começou a estagiar numa empresa de ordenamento e gestão de recursos naturais. Seguiu-se um contrato a termo e, três anos depois, a integração nos quadros.
Um percurso sem espinhas, que só descarrilou quando passou à fase seguinte. Em 2010, deixou a empresa para tirar o doutoramento com uma bolsa da Fundação de Ciência e Tecnologia (FCT). Desde então, é de bolsa em bolsa que salta. Até agora, colecionou cinco. A última durou um ano e termina a 1 de abril. O que se segue é um caminho incerto, mas familiar para muitos bolseiros.
Aos 38 anos, Joana terá de procurar um novo contrato. Ou vários, se quiser aumentar as hipóteses. Em fevereiro de 2018, tentou a sorte no concurso Estímulo ao Emprego Científico, disputando uma das 515 vagas abertas pela FCT com 4 227 candidatos. Em setembro, ficou de fora. Resta-lhe mais um para tentar agarrar um dos 300 lugares. O que ainda não se sabe é quantos estão nesta corrida. “Com tantos no desemprego e com muito mais experiência, a minha esperança é mínima”, desabafa a bióloga de Loures.
A derradeira esperança está num terceiro contrato, que lhe permitiria continuar a trabalhar no Instituto de Ciências e Tecnologias Agrárias e Agroalimentares da Universidade do Porto. É para esta entidade que atualmente desenvolve, a partir do Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, a investigação sobre relações entre sistemas de produção agrícola e biodiversidade. “Apesar de doutorada, vi-me obrigada a concorrer a uma bolsa para mestre e isso custou-me muito.”
Os bolseiros, para começo de conversa, trabalham para universidades, institutos privados ou públicos, mas sem vínculo contratual. No caso de Joana, significa ganhar um subsídio de manutenção mensal de 989,70 euros. Sem subsídios de desemprego, de alimentação, de férias ou de Natal. Em contrapartida, estão isentos de impostos e até podem descontar através do Seguro Social Voluntário, mas só no índice mais baixo e se a bolsa ultrapassar os seis meses.
Os obstáculos são muitos, mas o que reivindicam é “somente” a substituição das bolsas por contratos de trabalho e a integração progressiva da carreira. “Nada do outro mundo”, já que assumem funções que seriam desempenhadas com ou sem eles, remata a bolseira, que trabalha para a Universidade do Porto, mas não pertence à Universidade do Porto.
Arrancar vantagens de uma desvantagem
Nome: António Silva Santos
Idade: 28 anos
Profissão: estafeta
Cidade: Porto
A Uber Eats chegou ao Porto em maio do ano passado. No final desse mês, António Santos já estava em cima da mota a fazer entregas de comida ao domicílio através da plataforma da multinacional americana. Para trás, deixou um restaurante, muitas vezes de manhã à noite, sem horas extra pagas e com o salário mínimo. Não é que trabalhasse menos como estafeta. No início, chegou a fazer entre 70 e 80 horas semanais. A diferença é que tirava à volta de três mil euros por mês.
Entretanto, muita coisa mudou. Os extras antes oferecidos pela Uber Eats é que davam o lucro. Oito viagens entre as 19 e as 23 horas, por exemplo, rendiam 30 euros. Quatro entregas às sextas, das 12 às 15 horas, valiam 60 euros. Os bónus eram prática corrente e acumulavam com os 90 cêntimos por quilómetro percorrido. “Chegava a casa encharcado pela chuva ou pelo suor, mas com 200 ou 300 euros no bolso.” Com a empresa bem implantada na cidade, foram-se os incentivos, reaparecendo só nos feriados ou em dias de chuva quando os pedidos são muitos.
Quem hoje quiser trabalhar 40 horas semanais faz entre 800 e 1 000 euros, é difícil ir além disso. O que vale é que aproveitou o tempo das vacas gordas. Juntou o suficiente para montar um negócio paralelo. Um mês e meio depois, recrutou dois colegas para trabalhar com ele. Neste momento, são 35. António, como proprietário da empresa, oferece seguro de acidente de trabalho, aluguer da mota e 120 euros/mês para despesas com gasolina. Em troca, o estafeta dá-lhe 50% do que faturou com a Uber Eats. Quem tiver transporte próprio e custear o combustível entrega 15%.
António tem 28 anos e um currículo cheio de empregos precários. Foi cozinheiro, serviu às mesas e chegou a trabalhar em vendas. Ganhou salários que, embora mínimos, eram certos. Mas não desistiu de ter um negócio próprio. Tirou um curso em gestão de empresas para agarrar a primeira oportunidade, não suspeitando que seria essa veia empreendedora a segurar o futuro dele.
Não fosse o acidente de mota, em outubro, estaria ainda a percorrer as ruas do Porto, levando comida à porta dos clientes. Mas a rotura de ligamentos impede-o de conduzir um ano e nunca voltará ao ritmo normal. Passa agora os dias a dar assistência aos estafetas ou a tratar de contabilidade. O frenesim do trânsito faz-lhe falta, mesmo que nem sempre recompense.
“Não há férias pagas, subsídios de Natal ou rendimentos regulares, ainda assim há sítios piores, como caixa de supermercado ou empregado de restaurante.” E se, por um lado, falta a estabilidade salarial, por outro, não há hierarquias ou ataques claustrofóbicos por se estar encafuado num escritório: “O nosso patrão é um aplicativo, não quer saber se estamos na esplanada à espera de um serviço”.
Pescar um salário em maré de tempestade
Nome: Frederico Faria
Idade: 24 anos
Profissão: pescador
Cidade: Cascais
Aos 17 anos, Frederico Faria não sabia o que fazer da vida. Na escola não queria continuar, mas também não estava preparado para trabalhar fechado numa sala a olhar para o computador. “Por que não experimentas uns dias comigo no mar?” – perguntou-lhe o pai. Conhecendo o filho, já devia saber que ele não seria o mesmo quando regressasse a terra.
“Tomei logo o gosto”, confessa o rapaz, hoje com 24 anos, conquistado pela maresia que lhe sopra na cara, pelo balanço das ondas, pelos golfinhos que vêm às dezenas ter com ele e até pelas baleias que, muito de vez em quando, se deixam avistar.
Desde esse dia, foi para o mar que ele voltou todas as madrugadas ou, pelo menos, todas as madrugadas em que as marés permitem aos cerca de cem pescadores de Cascais largarem o cais e regressarem com os porões cheios de polvos. À uma e meia da manhã, Frederico salta da cama e, meia hora depois, está na embarcação São Bartolomeu do Mar, com o armador e o irmão mais velho. Afastam-se devagarinho da costa, até os prédios e as luzes ficarem do tamanho de insetos. E entram na escuridão, revirando os alcatruzes para desalojar os polvos dos abrigos. Só regressam a meio da manhã, quando as redes estão pesadas ou quando o combustível não dá para mais.
“O ordenado nunca é certo”, alerta Frederico. Depende do que se apanha e também das vezes em que ficam em terra por causa dos ventos e das condições do mar. “Se fomos trabalhar um mês e meio, desde o início do ano, foi muito.” O rendimento mensal pode subir aos mil euros, mas também ficar nos 900 ou descer aos 700. Nunca se sabe, mas um pescador aprende a equilibrar-se nas marés altas e baixas. “Os bons meses compensam os maus e, ganhando menos ou mais, gasto o mesmo”, diz ele, explicando que põe sempre de lado os extras para não se desorientar nos imprevistos.
Tanto assim é que as oscilações salariais nunca o impediram de pagar as despesas fixas com alimentação, renda e creches das duas filhas – contando com o salário da mulher, a trabalhar como auxiliar numa escola. Até conseguiria ser proprietário de uma casa, bastaria apenas que os bancos confiassem na capacidade dele em nunca ir ao fundo. Mas essa experiência de nada serviu quando pediu um empréstimo.
Frederico não tem um contrato e, como qualquer outro pescador, a cédula marítima é suficiente para o vincular a um armador que lhe paga à semana, passando todos os meses um recibo com o valor total. É assim que os homens do mar fazem negócios, mas não é assim que os os bancos concedem créditos.
Limpar, receber e gastar ao dia
Nome: Fátima Pereira
Idade: 59 anos
Profissão: doméstica
Cidade: Lisboa
Fátima Pereira começou como todas as domésticas. Uma vizinha entregou-lhe as chaves do apartamento para fazer limpezas. Foi o ponto de partida para uns recomendarem os seus serviços a outros. Há cinco anos, não lhe passaria pela cabeça limpar as casas dos outros. Não por vergonha, mas por não invejar a vida de quem não consegue nada fixo. Só que, em 2013, perdeu o emprego como auxiliar de ação educativa num agrupamento de Lisboa. Aos 55 anos, desconfiou que ninguém lhe daria outra oportunidade.
Hoje, tem sete casas espalhadas pela capital. Todos os dias limpa uma, muitas vezes aos feriados e até em fins de semana alternados. Sem recibos, contratos, subsídios ou descontos para a Segurança Social. É provável que ganhe um pouco menos. Ela tem dificuldade em estimar o valor certo. Trabalha todos os dias, mas não são dias completos. Três horas à segunda na Alameda, outras três à terça no Parque das Nações, uma a duas horas ao sábado, em Arroios, ou de 15 em 15 dias na Avenida de Roma, por exemplo.
Três horas num único dia rendem 18 euros, que desaparecem nesse mesmo dia ao entrar num supermercado e sair com um saco de compras. “Geralmente, o que recebo gasto logo, daí a dificuldade em saber quanto faço no fim do mês.” Mais do que 350 euros não é, assegura depois de fazer alguns cálculos de cabeça. E 225 euros vão logo para a prestação da casa. O filho ajuda-a, pagando a água, a luz e o gás. Sobram-lhe 125 euros para alimentação e transportes. É difícil viver assim? É pergunta que nem se faz. Há dias que só lhe apetece chorar, mas desde criança que se habituou a viver com quase nada.
Durante 14 anos, ganhou o salário mínimo como auxiliar de educação. “Era pouquinho, mas muito para mim.” Era tanto que poupou para agora, aos 59 anos, ter alguma margem se algo correr mal. Correr mal é ficar doente um único dia. O suficiente para não ter comida no frigorífico. Felizmente, tem uma saúde de ferro. “Vou trabalhar com sol, chuva ou frio e não apanho uma constipação.”
Deve ser dos genes de quem cresceu no campo. Fátima é de São Pedro do Sul, no distrito de Viseu. Aos 13 anos já estava a trabalhar, recolhendo resina dos pinheiros e continuando depois a cultivar batatas, feijões, uvas, couves e outros legumes. Aos 36 foi para Lisboa, solteira e com um filho de cinco anos, julgando que seria menos difícil. Comparando com a aldeia de Rompecilha é capaz de ser, mas, tanto na cidade como no campo, Fátima governa a vida de maneira igual. “Um dia de cada vez.” Não dá para mais.