Rui Cardoso Martins

Urban depressivo

Ilustração: João Vasco Correia

O jovem parecia ter sido aumentado de corpo numa experiência radioactiva de banda desenhada ou filme da Marvel Comics. Tinha um terço a mais de altura, largura, musculatura, toda a sua escultura era maior do que a necessária para ser humano. Quanto a finura, infelizmente, estava mal servido. A juíza olhava o promontório de músculos em pé na varanda dos réus, a camisa de flanela quase a rasgar-se nas axilas do Hulk branco e loiro, e sugeriu ao penhasco móvel que falasse de maneira menos incrível, “com sentido”. Resumia-lhe a sentença:

“Quando as pessoas falam, as coisas têm que ter um mínimo de coerência, e a versão que o senhor traz aqui das munições é absolutamente incoerente”, explicou a juíza. “O arguido pode mentir o que quiser, mas tem que ter consciência de que, quando mentir, isso vai ser valorizado pelo tribunal. A versão que traz aqui das munições é uma versão em que ninguém consegue acreditar.” E abanou a cabeça ao adamastorzeco das docas de Lisboa. O arguido Pedro era segurança da discoteca Urban Beach (outra vez?!, ó glória de mandar, ó vã cobiça…) na noite em que mais um desgraçado saiu para se divertir e acabou na esquadra e no hospital.

A polícia fez uma rusga ao quarto de Pedro e descobriu balas. Ele disse que as munições eram dos tempos de fuzileiro, que as deixara esquecidas num bolso da farda e que a mãe, ao lavar a farda, guardara as balas numa caixa do armário do filho. Acontece que o guarda que prendeu Pedro também foi fuzileiro – azarito… – e disse em tribunal que os fuzileiros não usam tais balas. A juíza olhava o jovem de forma jurídico-maternal:

“Mesmo que a senhora tivesse encontrado as munições no bolso, a mim parece-me que as iria entregar à mão do filho, não me parece que as fosse esconder numa caixinha dentro do armário à espera que ninguém as visse e, mesmo que as tivesse colocado no armário, o arguido acabaria por encontrá-las. Esta versão, de acordo com as regras da experiência, não faz qualquer sentido, o tribunal não pode credibilizar esta versão que o arguido lhe traz e nessa medida é evidente que o arguido sabia que elas lá estavam, até porque era o seu próprio armário, o armário que usava.”

A noite das agressões foi revista ponto a ponto: “O ofendido descreveu as agressões e não teve dúvida nenhuma em descrever o arguido como o autor destes socos, e a verdade é que o ofendido foi sempre coerente porque, chamada a polícia, esta identificou logo o arguido como a pessoa que cometeu as agressões, e foi por isso que o agente identificou o arguido como suspeito e o agente aqui também confirmou isso, que o ofendido tinha sido muito claro ao identificar quem é que tinha sido o autor desses socos”.

Pedro levou uns tipos para o defenderem, mas a lição estava mal estudada. “As duas testemunhas de defesa aqui apresentadas, na minha óptica, não mereceram qualquer credibilidade, desde logo a segunda que ouvimos aqui era manifesta a forma hesitante como tentava contar os factos, até se duvida que lá tivesse estado efectivamente no dia destas agressões, porque desde logo contou três versões diferentes, que aliás o tribunal até teve o cuidado de dizer ‘olhe que o senhor já contou que passou-se assim, depois mais à frente já conta a história de outra forma, depois de outra, afinal a que agressões é que o senhor presenciou?’”, perguntou a juíza. A testemunha ficou nervosíssima e não conseguia responder.

O jovem foi condenado a 360 dias de multa a sete euros, total de 2 520 euros, mais custas, mais indemnização cível de 121 euros ao homem esmurrado. “Isto era um estabelecimento de diversão nocturna, as pessoas estão ali para se divertir, estes funcionários têm obrigações acrescidas. A agressão não é solução e o arguido bem sabe disso, e portanto esta ilicitude é bastante elevada.”

“Este processo é este processo. O tribunal nunca teve nem nunca terá em atenção os processos que os arguidos têm pendentes noutros tribunais. Todas as outras situações que possam ter acontecido à porta do Urban pelas quais o senhor possa eventualmente vir a ser julgado, não tiveram a mínima interferência.” “As pessoas hoje em dia pensam que podem partir para uma agressão só porque lhes apetece. O senhor até tem uma boa estatura, até é fácil para si partir para a agressão, mas os outros não têm de ser alvos das suas agressões. Senhor Pedro, percebeu o que eu disse?”

Ele virou-se num sorriso azedo, os olhos claros risonhos. Caminhou nas coxas eucalípticas, o exoesqueleto não de osso mas de carne, e não parecia ter percebido, ainda não.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)