Uma peça de teatro num ecrã de bolso

Filmagens de "Scroll" na Quinta do Covelo, no Porto. (Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Texto de Filipa Neto

As Visões Úteis desenrolam “Scroll” a partir desta segunda-feira, 3, até 17 de junho. Composto por uma narrativa de 15 momentos/dias, a peça saiu às ruas do Porto com a “Notícias Magazine” para mostrar como faz a interligação entre a tecnologia e a representação.

Às portas da Quinta do Covelo, na Rua de Bolama, assistiu-se à passagem dos protagonistas escolhidos para aparecerem nos ecrãs de bolso dos espectadores. O tempo era de últimos testes e ensaios. O público acederá ao espetáculo descarregando a aplicação “Scroll”, disponível para dispositivos Android e IOS. Através da app, poder-se-á seguir o decorrer de uma ação pelos olhos das personagens Caty (Catarina Gomes) ou Gil (Gilberto Oliveira).

As personagens têm como inspiração os trabalhadores do negócio de encomendas de comida por aplicações, de que a Uber Eats e a Glovo serão as mais conhecidas. No final do ano passado, para uma melhor perceção do labor destes motoristas, a equipa de produção das Visões Úteis acompanhou-os durante várias semanas, dia e noite, captando diferentes perspetivas daquele ofício.

A que conclusão chegaram? Na etapa inicial, são atribuídos aos trabalhadores muitos serviços, gerando uma expectativa de rendimento aliciante, mas à medida que entram mais funcionários, os serviços começam a diminuir, sendo atribuídos com mais frequência aos “novatos”. Isto obriga os que têm mais tempo de casa a estar constantemente ligados à rede de pedidos na esperança de elevarem de novo o seu rendimento.

Uma vantagem do ponto de vista da empresa e dos consumidores, pois a entrega das encomendas acelera. Também foi possível concluir que existem dois perfis claros de trabalhadores: os que veem nesta atividade uma oportunidade para mudar de vida e os que sentem que é apenas uma chance de remuneração, porque tem de ser.

Como forma representativa e ficcional de dar a conhecer ao público estas perspetivas, as Visões Úteis criaram uma empresa chamada “Scroll”, assim como a respetiva aplicação, na qual o espectador poderá acompanhar tudo. Cada dia disponibilizará um percurso e um cliente diferentes, a que corresponderá um ator convidado distinto.

Caty fará os percursos de bicicleta e Gil os de mota. Ao fim de cada jornada também será possível assistir a uma videochamada por Skype, com a dupla de atores e respetivas famílias, sobre toda a experiência enquanto motoristas de entregas. Aí, sublinha o diretor artístico Carlos Costa, será uma “situação mais íntima e de menor representação por parte dos atores”. Afinal de contas, a família é a real.

Os protagonistas Gil (Gilberto Oliveira) e Caty (Catarina Gomes). (Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

No decorrer dos quilómetros entre o ponto de recolha e o local de entrega, haverá uma situação que aproximará as duas personagens. Uma situação que irá exigir que se tomem determinadas atitudes relativamente à empresa, e que conduzirão ao desenlace da narrativa. Um desenlace que o diretor artístico não desvenda.

O teatro que carregamos no bolso

A ideia para “Scroll” surgiu da cabeça de Carlos Costa, com o objetivo de “perceber como seria escrever para o teatro que hoje em dia as pessoas carregam no bolso”. É como se as pessoas andassem sempre com um minipalco tecnológico que possibilita a comunicação e interação com os outros.

A partir dessa inquietação, e juntamente com os dramaturgos Ana Vitorino e João Martins, procurou-se perceber as várias relações que se proporcionam através do smartphone e como seria criar uma narrativa que convergisse várias plataformas sociais, como o Facebook, o Twitter e o Skype.

A equipa das Visões Úteis passou das ideias e questões para a realização de um projeto-piloto que começou há um ano. À companhia juntaram-se alunos da Universidade de Coimbra: os da Faculdade de Letras que estudavam Escrita para Teatro, e os da Faculdade de Ciências que estudavam Design de Meios Interativos.

Pediram aos estudantes de Letras para imaginarem algo que gostariam que fosse criado/implementado e, de seguida, como se fossem clientes, solicitaram aos alunos de Ciências uma aplicação que lhes concretizasse a ideia inicial. Daqui surgiu um brainstorming de possibilidades que se foram restringindo consoante as barreiras da tecnologia. Um projeto desta natureza torna impossível o total controlo da escrita, ao contrário do que acontece no teatro mais convencional.

Desta convergência emergiu também o casting para a escolha dos dois atores e a respetiva adaptação entre as características dos personagens e as personalidades reais de cada um. De seguida, convidaram os alunos da pós-graduação em Dramaturgia da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto, para terminarem a narrativa. É por tudo isto que Carlos Costa afirma que a narrativa tem “uma autoria atomizada por uma série de microcriadores”.

Por agora, pode-se descarregar a aplicação para acompanhar esta convergência: entre o teatro que os atores carregam nas veias e a tecnologia nas mãos do público.