
Texto de José Miguel Gaspar
Resumindo: “É uma bonita tradição e muito antiga, é uma coisa cheia de honra, de louvor, eu não gosto, eu adoro”, dizem as namoradas dos forcados, aficionadas, a vê-los de cima da primeira fila. “É um espetáculo para trogloditas, para quem não quer evoluir”, dizem os ativistas antitourada plantados num protesto de silêncio fora da Praça, são sarcásticos: “E o comércio negreiro dos escravos, não era também uma bonita tradição, e de belos rendimentos, desde os anos de 1500?”.
Ninguém é indiferente à tourada, sobretudo o touro, único animal senciente que vai ali para sangrar. Uma família de férias leva crianças a ver os touros, um dos miúdos tem só cinco anos, é a sua primeira vez, ele não saberá o que dizer, tem um ar espantado ou então está com frio ou então está com sono ou então todas as três. “É da emoção”, diz o tio dele por ele, Feliciano Matias, que é da Amora, Seixal.
“É a idade com que eu vim há muitos anos, também me estreei novinho a ver tourear.” Está também o cunhado Dionísio, mais a Mariana, tem 14 anos, estão todos em Montechoro a feriar, mas só Feliciano, que é alentejano, está a falar. “É uma tradição, é antiga, o toiro foi criado para lidar, se não fosse já estava extinto. É uma indústria que alimenta cinco mil famílias, eu sei, já tivemos forcados entre nós e depois é simples, quem quer vem, quem não gosta não vem, ninguém vem aqui obrigado a vir”, diz Feliciano que sabe a cartilha da tourada de cor.
“Talvez o toiro sofra, não digo que não, mas…” e ele não acaba a frase, a banda desata a tocar, são os oito da Escola de Música da Charanga, erguem rufos, trompetes, saxes e mais metais e ali já não se consegue falar.
O voo, o orgulho e as canelas feridas do Galamba
Galamba entrou no segundo lote da equipa escalada por Márcio Chapa, o Cabo dos Forcados da Tertúlia Tauromáquica do Montijo, e não deu qualquer sinal de inquietude e ninguém se lembrou da Lei de Murphy e do cúmulo daquilo que pode correr mal. Estava teso e bradado com os outros sete, todos vestidos de meias de renda branca, gravata e casaquilha, a ansiar.
Chegada a sua vez, num supetão içado de trás da balaustrada ripada de madeira, salta para a arena de terra sendo seguido sucessivamente pelos outros sete. Finca o barrete verde rubro de pompom, finca as pontas da jaqueta florida justa, deita as mãos aos quadris e começa logo a avançar. O segundo segue-o a seis metros e atrás os outros seis enfilados uns nos outros, a expectar.

Galamba, o forcado da cara, diz do peito “heh touro”, depois repete, alonga, alonga, e progride nas vogais escuras a avançar para o animal, uma perna mais lançada do que a outra, em gestos de airosidade. Nesta altura ele é que parece o touro, a riscar o pé na terra, a cabecear retas no ar, a saltitar de pés paralelos entre as nuvenzinhas de pó. Mas o touro, o touro que já tinha cinco ferros espetados no alto do lombo com arpões, um fora da divisa a pender, com o sangue a escorrer da pele preta para os papelotes da bandarilha a ventar, o touro que sangrava dos dois lados do lombo e dos 400 quilos de pé, nada. O touro não se mexia.
Aquilo repete-se tudo durante uns segundos que a Galamba pareceram muitos, mantém-se o impasse e depois, bom, depois foi como diria Camões: “Com a fronte cornígera inclinada, bramando duro, corre, e os olhos cerra, derriba, fere, mata e põe por terra”. Foi isso que o touro fez, descontando o fere e mata, mas definitivamente o touro pôs o Galamba por terra. (Em rigor, ferido ficou o orgulho e ficaram as canelas do Galamba, escoriáceas que ele depois mostrou como medalhas a escorrer.)
Como aquilo se passou foi muito rápido, como quando o comando põe o filme à velocidade X2. O touro, como os cães do condicionamento clássico de Petrovich Pavlov, ouviu qualquer coisa, acordou e desatou a correr em direção ao Galamba que não o fechou. O animal apanhou o primeiro, o segundo, desordenou o terceiro, não fechavam os outros que se chegavam, o anel todo desordenado, o Galamba no chão enrolado, a pega despenteada, e eles deslargam como que se desabrochassem todos ao mesmo tempo à volta do touro. Os bandarilheiros saem de trás dos borladeros, correm a brandir as capas agitadas, vozeiam para o touro cornucópias e atraem o animal para outro extremo da Arena.
A primeira pega falhou. O público não se impacienta. Instiga-o e torna a instigar. A segunda foi diferente, foi pior. Quase tudo foi igual, mas desta vez o Galamba voou desjeitoso de lado, sacudido pelos cornos, o seu segundo foi acalcanhado – um moço forcado, o mais novo do Montijo, o Paulo Carvalheira de 20 anos, vendo-o aflito e pisoteado lançou o seu corpo sobre o corpo dele para o proteger, foi um gesto raro na noite de instintiva bravura – e eles desistiram mais cedo, desflorados, do que da primeira vez.
E a banda toca o “Olé Albertino” finalmente
Só à terceira entrou a bem, a pega pela cara do touro, estavam todos afinados na necessidade, sentiram a pressão, entraram coesos, os braços arcados copio a verga do mastro de mezena e fecharam o touro num cacho, aguentando a retranca e implosão. E o povo saudou finalmente o feito e gritou “aguenta, heh, aguenta!” E aplaudiu o rabejador, o rabo do touro esticado num oito, ali na terra aos círculos a surfar.
E a Banda Musical do Rosário, de seis metais e dois tambores que toca ali ao vivo na bancada capitaneada pelo José Castro, saca os sons triunfantes do “Olé Albertino” com os seus ecos da charanga uga-uga e de Aragon e tudo acaba em bem para o Galamba, que quando saiu escorria sangue, a cara, o peito e a camisa branca maculada de sangue exausto e suor – não é dele o sangue, é do touro, só o touro aqui vem sempre para sangrar.

No fim, já depois do banho e daquilo ter passado, como se estivesse numa “flash interview” sem luz nas traseiras escuras de uma televisão, o Galamba explicará com franqueza o que se passou nas três pegas.
“À primeira não me dobrei com o touro e depois não recuei. Não sei o que me deu. Na segunda estive mal. Falhou tudo, o recuo, não abri os pés, não abri bem os braços, não fechei, não fiz o arco, nada. Não entendi o que o meu Cabo me disse, apliquei mal. À terceira o grupo foi mais acima, abri bem as pernas, carreguei, consenti mais o touro, e o grupo esteve bem, estamos de parabéns”, diz o Galamba, sem esquecer as duas pegas falhadas, uma delas em que ele voou.
“É assim, é cair e olhar em frente, levantar e tornar a ir, tantas vezes quantas for preciso, temos a honra da jaqueta a pesar”, e ele entra para a camioneta e a camioneta larga para a Moita não sem antes parar no sítio combinado onde eles todos vão jantar à hora de cear.
Direita e comunistas baixam IVA para 6%
A 28 de novembro de 2018, numa sessão plenária tardia, a Assembleia da República aprovou a descida do IVA para 6% nos bilhetes das touradas, equiparando-as aos espetáculos culturais em que atuam artistas como no cinema e nos festivais de verão. A proposta concordada por PCP, CDS e PSD, que fez pender a balança para a hora tardia, entrou em vigor a 1 de janeiro de 2019. PS e BE votaram contra, foi chumbada uma policitação do PAN para subir o IVA para 23%.
A 10 de agosto de 2019 os bilhetes para a Monumental de Albufeira, uma praça de betão de 1982 com capacidade para 3803 pessoas, o mais barato custa dez euros e é só para crianças (6-12 anos). A seguir um casal de reformados paga 40 euros, o mesmo preço da última fila do último anel da Praça. Descendo as bancadas: 25 euros, 30, 40, 45 euros para sentar na primeira fila por cima da arena e mais 50 ou 55 para entrar nas três filas da barreira.
Naquela noite, uma das 27 do verão em que há espetáculo, a lotação estaria a 1/4: casais, famílias com crianças, grupos de amigos joviais, a maioria do público é estrangeira. Ventou a pedir camisolas durante as duas horas que terminaram à meia-noite e certos espectadores polvilhados pela Praça estavam munidos de mantas todas da mesma cor, alguns com elas dos pés ao pescoço, esticadas e abertas como se fossem esquilos-voadores deitados, muito grandes, a descansar.
Escravizar pessoas também não era tradição?
“Não, não é coisa que se suporta, é primitivo, é barbárico, é uma escravidão, é uma desonra civilizacional. Que é isto, tirar prazer do sofrimento de um animal?!”, diz Mónica Gaspar que mora perto da Praça Monumental, é veganista e todas as semanas, ou sempre que pode, vai ali protestar à porta sem entrar. Ela gosta e segue sempre os Anonymous For The Voiceless, uma ONL, Organização Não Lucrativa, com sede mundial que ecoa as vozes dos animais e há um ano, ainda antes de o Parlamento ceder à descida do IVA das touradas para 6%, foi ali à porta da Praça insultada, depois agredida, depois fez queixa na GNR contra terceiros, mas já faz em novembro um ano e mais nada tornou a acontecer.

“Não vou desistir, gosto de justiça, é um defeito que tenho, deve ser de nascença, se isto é uma tradição portuguesa, então eu tenho vergonha de o ser”, diz ela a repetir a frase que já se ouviu dizer: “E escravizar pessoas de cor, não era também uma bonita tradição? Nós também andamos nisso desde 1500, colonizadores e negreiros, mas depois disso soubemos ou não soubemos evoluir?”.
Tem muitas perguntas sem resposta, a ativista, e enquanto ela está lá fora num protesto que não sabe silenciar, a cavaleira Mara, uma praticante que ainda não chegou ao grau acima, o de alternativa, vai espetar cinco ferros de dez centímetros e arpões de 40 milímetros, ela e outras três cavaleiras, há um touro para cada uma, e ela tem como todas, mas os delas são mais finos, estranhos gritos de incitação. É assim uma espécie de riso, de provocação gritada diretamente de cima do cavalo para a cara do touro, “ró-ró-ró, rá-rá-rá”, é um grito repetido, já testado, a ver se o touro arrosta, se se larga a grimpar.
Luukes, Levi e Tim todos embeiçados pela Mara
Luuk, outro Luuk, Levi e Stijn estão no último anel, o dos 20 euros, estão em tronco nu. Dois deles estão cozidos como camarões, estão agitados, são um cliché do fenótipo holandês encorpado e loiro. Vieram de Amesterdão, fumaram ridentes lá fora, estão de férias, festejam e agitam agora as cervejas nos copos plásticos de 40 cl, incitando-se mutuamente a sacolejar as t-shirts no ar. Impelidos uns nos outros, troncos nus, galgam as escadas estrepitosas até à primeira fila, e ficam ali a gritar certas amorosas palavras em neerlandês à cavaleira.
Dois deles atiram-lhe as suas t-shirts à arena, um gesto que é repetido por vários espectadores que atiram peças de roupa, lenços, alguns casacos, até um boné que voou num voo perfeito a remoinhar como o chapéu verde de Tornessol e que foi aterrar aos pés de Mara Pimenta, a cavaleira mais nova das quatro cavaleiras loiras da noite, a mais bonita e que era responsável pelo alvoroço da trupe dos Luukes.
Mara recolhe a t-shirt verde-água do chão, já está a pé, o cavalo já recolheu, está a dar a volta redonda de honra com os seus dois bandarilheiros de fatos brilhantes como bolas de boates, as monteras pretas postas na cabeça, as monteras parecem um chapéu do Mickey Mouse mas de orelhas caídas, Mara limpa duas gotículas teatrais de suor, atira a t-shirt de volta num vólei servido de baixo, e um dos Luukes apanha-a e exulta-a de braço no ar. E fica ali a saltar como Rocky ou como quem dança o “Eye of the tiger” depois de subir uma escadaria a rir.
Depois os Luukes e os amigos vão entediar-se, outra vez sentados e desorganizados no topo da última fila ventosa, já vestiram as t-shirts, mexem nos telemóveis, uma cerveja entornou-se sozinha, há pipocas derramadas pelas bancadas e o espetáculo segue sem lombas ou sobressaltos.
A ordem repete-se quatro vezes, cavaleira, ferros espetados, o touro sangra debaixo dos arpões e dos aplausos, às vozes o animal tropeça zonzeado, o público ri como uma cascata brocada, entram os forcados, agora os da Chamusca, alternam nas equipas de oito com os do Montijo, um touro, uma pega para cada uma, depois dos forcados entram os cabrestos, são cabrestos castanhos, tristonhos e são capados, tremulam sinetas para atrair o touro, saem os animais todos levados na vara do campino, os artistas dão a volta de honra, repetem os gestos repetidos dos outros artistas coreografados, e é assim até ao fim em que há uma palhaçada.
E agora uma vaca especialmente para si
A atividade é anunciada deste modo no cartaz, só em inglês: “E no fim do show teremos uma vaca especialmente para si para que possa experienciar o seu toureiro interior”. Passa-se o seguinte: há uma mesa com 12 cervejas no meio da arena, 12 espectadores são atraídos a ir beber, solta-se um bezerro mal mamado e os espectadores que serão sempre estrangeiros ficam ali a beber, a fugir e a galhofar da cria.
Alguns comportam-se como acrobatas, ou como recortadores, todos se sentem gladiadores, outros fazem dos casacos capas de gestos toscos, outros caem e são atropelados pelas pernas discordantes do vitelo azaranzado e outros como um gordo com cara de ucraniano ou de secaz da torcida-brava dos Bushwackers do Milwall comportam-se como animais não sencientes a agaturrar os cornichos da cria, a atirar-lhe cerveja aos olhos, a torcer-lhe o pescoço ao ponto da cria esgoelar.
E ali na arena fria e na bancada todos se riem, todos aplaudem, parece que é o maior divertimento do Mundo, deste e do outro até ao reino perdido de Hades ou ao último campo de Asfódelos onde o vento sopra um hálito de pântano e dejeção.