Rui Cardoso Martins

Uma ladra de ouro

Ilustração: João Vasco Correia

A senhora é juridicamente desvaliosa, dona Rosinha. E outra má notícia para uma cuidadora de idosos e ladra de idosos, nem a dupla profissão a descansará: a Galp avisou há dias o Governo que a transição energética ameaça “a justiça social”. Diz a petrolífera – em refinada causa própria, pois assenta a rentabilidade na exploração e refinação de petróleo – que haverá efeitos económicos na electrificação completa do país. É menos poluente, mas se as refinarias fecharem por falta de lucros isso não é “justo” e iremos pagar mais a longo prazo.

Será que isto lhe interessa, dona Rosinha? Provavelmente, não. E as alterações climáticas estarão na sua agenda? É possível que agora só pense em alterar o seu modelo de negócio. Tratar de velhos e roubar-lhes o ouro para vender deixou de ser viável.

Minutos antes, eu vi a dona Rosinha a falar com a segurança do rés-do-chão do tribunal, queria saber da sua sala e era tão simpática, delicada de voz, que até eu a contrataria para cuidar de velhotes. Um ar prático: fato-de-treino, cabelo apanhado, óculos grossos. Mas quando subi ao piso 3, e a juíza a mandou levantar, desvendou-se a vera Rosinha. A sentença falava em botões de punho de ouro e outros objectos, talvez anéis, brincos, pulseiras, fios ligados pelo crime. Não se provou que este furto em concreto valesse os dez mil euros da acusação. Mas o historial de Rosinha era dourado, por assim dizer.

“… Admitindo apenas ter tirado dois dos objectos que estão aqui em causa, a verdade é que não ficou o tribunal com dúvida nenhuma de que estes objectos foram retirados da casa da senhora e as declarações prestadas pela arguida não nos mereceram nenhuma credibilidade, tanto mais que veio aqui dizer que nunca tinha vendido objectos nenhuns, quando constam aqui registos de várias dezenas, se não centenas, mas pelo menos dezenas de objectos que foram vendidos pela arguida num período de dois ou três meses.”

“Ficou o tribunal convencido de que a arguida se dedica à prática deste tipo de ilícitos com frequência, dado que trabalhava como empregada doméstica e agora trabalha como cuidadora de idosos. Enfim, o que está aqui a ser julgado são estes, mas a verdade é que por uma questão de transparência se deve dizer também que da prova junta aos autos ficamos convencidos de que a arguida faz disto um modo de vida.”

“Este crime é punido com pena de multa ou pena de prisão. Entende o tribunal que as exigências de prevenção são muito elevadas, uma vez que este tipo de ilícito é muito frequente, as exigências de prevenção especial também devem ser consideradas elevadas, porque apesar de a arguida não ter antecedentes criminais por crimes contra o património, o tribunal deverá ter em conta já ter sido condenada pela prática de um crime de violência doméstica, o que desde logo traduz uma personalidade juridicamente desvaliosa.”

“Além de a arguida não ter admitido os factos – limitou-se a uma ínfima parte do que praticara – nada fez para ressarcir as vítimas, o arrependimento demonstrado em tribunal não nos pareceu sincero, antes se nos afigurou que a arguida veio aqui representar um papel em que se assumiu como vítima, chegando ao extremo de explicar a sua conduta com o facto de necessitar do dinheiro para liquidar a factura da luz, quando nos autos consta uma lista de objectos vendidos pela arguida e o respectivo valor que recebeu. Acresce que trabalha como cuidadora de idosos, em casa destes, e com acesso aos bens das pessoas.”

A juíza condenou Rosinha a dez meses de prisão, substituída por pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, num total de 1800 euros. Mais as custas.

— A senhora percebeu a sentença? A senhora foi condenada, naturalmente. Se não pagar a pena de multa, vai cumprir os meses de prisão e, ainda que pague a multa, se no período até à pena ser extinta, nestes dez meses, se voltar a cometer crimes vai cumprir a pena de prisão. E fica advertida que a próxima vez que a senhora for apanhada não vai haver tribunal nenhum que lhe aplique uma pena que não seja de prisão efectiva, percebeu? Aí já não tem de ter essas suas preocupações de pagar a luz, pois no estabelecimento prisional o Estado assegura-lhe a luz de forma gratuita…

Rosinha compôs o fato de treino e virou-se para sair. Tinha um sorriso amarelo, mas não brilhante, não era ouro mas sarro.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)