Uma ida ao barbeiro
Tudo em Mário parecia ter ficado a meio caminho: uns sapatos que podiam ser sandálias, uma roupa que ansiava por se reformar em farrapos, uma maneira de falar pendurada algures no meio do Atlântico, uma voz sem pátria única, repuxada pelas forças da América e da Europa. O estado intermédio subia até à sua barba e cabelo. Não dava para decidir se eram compridos ou curtos, se precisavam de ser cortados, se Mário os queria a crescer. A primeira coisa que lhe ouvi foi um belo exemplo desta mistura.
– E o seu companheiro de assalto era seu amigo?
– Não, conheci-o ali na rua.
A juíza abriu os olhos com a inesperada combinação:
– Mas foi naquele instante?…
– Um pouco antes, senhora.
– Então o plano era ele entrar na barbearia, partir o vidro e o senhor ficar a vigiar.
– E quando eu olhei para trás… el falsmfalsu fasgasdguta.
– Desculpe?!
– Deulepafugiefugiuorapaz…!
[Apesar do meu gosto pelo sotaque vulcânico das ilhas atlânticas, não percebi esta fala, que ficou gravada, e também a juíza suspirou]:
– Olhe, peço desculpa, mas o seu português dos Açores… não percebi o que nos contou.
Mário recolocou a língua mais a oriente.
– Fiquei na esquina a vigiar.
– O vosso acordo era que os objectos que de lá retirassem seriam divididos a meias pelos dois.
– Sim, senhora.
– O que correu mal foi que o outro rompeu o acordo e fugiu com todas as coisas…
Portanto, traído pelo próprio cúmplice, um clássico da ignomínia no código dos ladrões. Mas como tinham acabado de se conhecer, Mário não ficou a ruminar, antes agiu.
– Mas eu também fui tirar! Só que não tive tempo e…!
Trás!, bateu as palmas com violência, figurando-se a si mesmo no Mundo como um rato a estrebuchar na ratoeira, um arame na goela.
– Pois. Entretanto a polícia apanhou-o!
Estava o essencial da acção conversada, mas o crime tinha mais para dizer. Um pouco de História da emigração açoreana:
– Tenho o 12.º ano, mas estudei nos Estados Unidos.
– Na escola onde lá andou?
– Sim, é o equivalente ao 12.º ano.
Um pouco de banalidade sociológica para casos do género, Mário está a ser acompanhado numa comunidade de tratamento:
– Bebia álcool, tomava heroína, benzodiazepinas, estava mesmo fora de mim.
Não sabia explicar como é que a polícia encontrara munições de pistola Parabellum (da frase latina “se queres paz, prepara-te para a guerra”) no seu bolso (ou melhor, explicou mal):
– Isso estava no chão lá, senhora.
– Mas não é costume andarem munições assim no chão!
O tribunal tinha a lista dos objectos levados pelos arrombadores.
– O que o outro levou, não sei.
– Quer dizer que, havendo desaparecimento de outros objectos, terá sido o outro senhor…
Mário abanava a cabeça de cima para baixo.
– Está a dizer-me que sim com a cabeça, mas isso não fica registado.
– Sim. Sim, senhora.
Mário levara duas embalagens de perfume, cera, champô, no valor de 129 euros. E mais um artigo que ali apareceu por magia e, se quisermos ser generosos, por artes comoventes:
– Há aqui um objecto que não está na lista das coisas dadas como desaparecidas pelo dono da barbearia.
A juíza pediu a Mário que se aproximasse para ver a foto.
– O que é isso?
– É uma máquina de barba. Mas não me lembro, senhora…
– Também me disse que era barbeiro. Não seria sua?
– Devia ser minha, senhora, devia ser minha.
Seiscentos euros, suspensos por dois anos e seis meses. Mais 120 horas de trabalho em instituição de solidariedade, que poderá ser naquela em que ele já vive. A vida de Mário, como barbeiro capaz, pode ir para a frente ou voltar para trás.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)