Rui Cardoso Martins

Uma burlona no OLX

Às vezes acontece-me, como acontece a todos, e a si também, querido leitor, ver alguém cruzar a rua e pensar:

– De onde é que eu conheço aquela pessoa?

e vários circuitos integrados do cérebro, ligados aos olhos, ao ouvido e ao nariz, começam a trabalhar em rede, vasculhando as gavetinhas de neurónios cheias de pó, ou preenchidas com dossiers gordos semelhantes a arquivos da Judiciária, folhas de papel amareladas, o cadastro deste malandro aqui, a lembrança fotográfica duma santa senhora ali, um bigode, uma saia, a forma cómica de andar, o tique nervoso num olho, enfim, entramos num circuito de informação em círculos, uma espiral em caracol pelo meio do coração, até que dizemos:

– Ah, esta pessoa é a!… espera… bolas, não me lembro.

Com o rapaz do relógio, no entanto, o reconhecimento foi imediato por uma razão: a arrebatadora coincidência de eu estar precisamente a pensar nele, melhor ainda, de ter acabado de descrever a sua figura aos camaradas do JN. Dois minutos depois, o rapaz cruzou a rua à minha frente, sem mais nem menos. Muito longe de onde o vira, dias antes, no Campus de Justiça de Lisboa, subia agora a Avenida das Forças Armadas, com uma camisa aos quadrados, ténis, um relógio brilhante no pulso, e conforme à descrição que enviara para a revista: “rapaz super-magro, louro, tímido beach boy”. Vendo melhor, mais ruivo do que loiro e penteado como um Kennedy. Fui a correr:

– Desculpe incomodar, não se importa?…

Virou-se, antecipando uma urgência, a súplica por uma moeda, um conto do vigário, mas apresentei-me:

– Vi-o no outro dia no tribunal, o caso do relógio.

– Ah, estava lá?

– Sim, quando foi depor contra a burlona do OLX. Fez bem em denunciá-la.

– Sabe, pensar que há pessoas que vivem assim a enganar os outros. Achei que tinha de apresentar queixa.

– Ela enganou mais pessoas?

– Ah, isso de certeza.

O mais interessante no tribunal, dias antes, foi a maneira como a boa-fé, a confiança que o rapaz tinha nos outros, se transformou na arma de resposta contra a burlona. A acusada não apareceu, apesar de convocada, e a juíza mandou chamar o rapaz, vítima do caso. Entrou a deslizar na sua magreza. Tinha visto a foto de um relógio na plataforma de vendas, gostara do relógio e quisera comprá-lo.

– Era para oferecer a uma pessoa.

Trocou várias mensagens educadíssimas com uma mulher. Ela deu-lhe um número de conta bancária.

– E eu transferi para lá os 50 euros do custo do relógio. Admito que fui ingénuo…

Mal pagou, a página com a fotografia do relógio desapareceu no ar. Aí, o rapaz zangou-se e encontrou o número do titular da conta no banco. E começou a ligar-lhe.

– Como é que conseguiu o número dele?

– Na internet consegue-se tudo, disse o rapaz, com uma secura empolgante. Eu avisei-o de que me dava o relógio ou o dinheiro, ou eu chamava a polícia, e ele só dizia: “Mas não fui eu, não tenho nada a ver com isso!”.

A juíza mandou chamar aquele que não tinha nada a ver com isso. Outro rapaz, mas este com uma tristeza infinita nos olhos. Disse que conhecia a rapariga desde os quatro anos de idade. Que ela vivera em Inglaterra e, ao voltar, por ainda não ter conta no banco, lhe pedira ajuda para receber algumas despesas:

– E dá a sua conta para transferir dinheiro não sabe de onde?!

– Ela disse que era dinheiro do tio!, soluçou o triste amigo da pré-primária.

A juíza decretou que a burlona do OLX virá a julgamento com mandado policial, algemada pela polícia.

E volto ao princípio, também me aconteceu ir na rua e lembrar:

– Hum, esta mulher atirou uma tampa de panela de pressão à cabeça do companheiro.

Ou:

– Este miúdo e a irmã sofreram violência doméstica, o pai perdeu a guarda deles.

É útil porque me mostra em que mundo, em qual época, calhou atravessar a chamada vida. Quanto ao relógio do OLX, não sei se existe de verdade, mas teve uma curta existência virtual.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)