Rui Cardoso Martins

Uma advertência solene

Ilustração: João Vasco Correia

Baixo, com bigode desenhado aos cantos do lábio, mas partido a meio como uma ponte caída, Filipe tinha uma figura cómica de Cantinflas. Mas também a tristeza do homem-comum apanhado no arrastão dos deveres. Só gostava de coisas proibidas. Falhara o regime de prova para reintegração e entretanto condenaram-no a prisão efectiva (roubo) durante um ano e quatro meses. Os guardas trouxeram-no algemado, lento como um guindaste. Faltara a todas as reuniões, desistira de empregos. Até que levou uma “advertência solene” pela sua “dificuldade em interiorizar” as responsabilidades e por “comportamento anti-social”.

– Eu tive um mau percurso prisional…

E no segundo que parou para respirar deu-nos tempo para pensarmos no que será um bom percurso, se haverá um bom, muito bom ou até excelente percurso numa prisão. Talvez haja mesmo (em vez de advertência) uma “competência solene” para pendurar na lapela dos melhores presidiários. Mas Filipe contou factos:

– … já por duas ou três vezes acusei THC.

Tetra-hidrocanabinol. É exigência do programa não tocar em canabinóides, mas Filipe fuma haxixe. E também outras coisas que vêm nesse pano que escorre a água turva do passado:

– Na prisão queria desistir da escola, não é para o meu feitio.

– Então o que é que serve para si?

– Eu neste momento estou a trabalhar como barbeiro no estabelecimento prisional, há mês e meio. Parei de fumar, mas ainda não há provas porque ainda não fui ao despiste.

O juiz começou a escrever no papel os dados familiares, os tijolos da existência de Filipe para perceber em que casa ele se fez.

– Com quem vivia?

– O meu pai, a madrasta e os irmãos do lado do meu pai.

– Quantos irmãos?

– Cinco irmãos, tanto do lado do meu pai como da minha mãe.

– Escolaridade?

– Tenho o 6.º ano.

– Então no estabelecimento prisional não chegou a fazer nenhum ano…

– Não. Teria de fazer até ao 9.º…

Estudar, como disse, não é para o seu feitio.

– Trabalhei em empresas na Tailândia e Itália. Era servente e ajudante de montador. Estive a trabalhar até Dezembro de 2017. No Natal, já não fui.

O juiz anda para trás e para a frente com as folhas, como se tocasse numa concertina de papel.

– O senhor… passe a expressão, como diz o povo: meteu a pata na poça. Começou a beber…

– Não muito. Mas eu saí da Tailândia por minha vontade. Quis ficar em Portugal.

A técnica de reintegração, de dentro da lata longínqua de uma videoconferência, disse:

– Ele tinha obrigações para cumprir em tempo escolar, mas não o fez. Em termos de interacção, é participativo, colaborante, educado. Contudo, relativamente à frequência escolar, passou a faltar. Disse que tinha desistido.

– E que mais fez?

– Também entrou no programa Estrada Segura. Mas deu positivo em THC a 21 de Janeiro de 2019, e assim não pode começar a trabalhar nesse programa…

– Mas sabe se ele é agora barbeiro?

– Solicitou que lhe dessem um local para cortar o cabelo aos outros prisioneiros reclusos. Parece que tem jeito… Mas ele até ao momento tem estado inactivo. No fundo, desaproveitando as oportunidades que lhe eram oferecidas.

– Não aceita?

– Aceita, mas depois apresenta dificuldades em progredir, em se empenhar.

– Portanto, o incumprimento é a informação mais actualizada…

Do outro lado da linha, um segundo de estática:

– Exactamente.

Filipe, daí a pouco, esticava os braços às algemas para voltar à prisão. A cara dele não dizia nada. Mas o que os olhos mostravam, numa advertência solene a todos nós, era uma profunda apatia, a de alguém que nem quer tentar. Como se o rapaz não tivesse feitio para ser, para existir.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)