Um violento acamado

Vai chegar o dia em que deixarei de me surpreender nos tribunais. Amanhã não será a véspera desse dia. Na primeira fila da plateia, uma mulher de expressão dura mas arestas redondas – difícil de explicar, talvez uma cara esculpida em areia – aguardava com as mãos nos joelhos. Era uma posição formal e ao mesmo tempo leve, típica dos instantes cruciais da vida (quando queremos mostrar calma). Ela esperava muito daquela manhã. Começou então a juíza a falar. Avisou que ia fazer um resumo e, como farei o mesmo, será o resumo de um resumo. Mas acrescento as consequências: preparem-se que vai ser duro, pode-se ouvir, cheirar, visualizar esta mansa desgraça portuguesa.
O senhor Nilton foi acusado do crime de violência doméstica, mas a sessão de julgamento foi sem ele, dadas as limitações físicas. O arguido e a ofendida, Maria, viviam na sua residência nos Olivais, em Lisboa, há cerca de 28 anos. Tiveram uma filha, Catarina, que continua a viver com os pais. No Verão de 2017, ele ficou irremediavelmente acamado numa operação à coluna cervical que correu mal, ficando dependente da família para as necessidades mais básicas. Desde então, destrata a companheira, dizendo-lhe para ir comprar tabaco, ficando muito revoltado se a ofendida não lhe traz tabaco por não ter dinheiro suficiente para essas despesas. Insulta-a, dizendo aos gritos: vai dar a cona, vai mamar caralhos e montar cabritos, não vales nada, és uma merda. Quando a ofendida sai de casa para fazer compras, o arguido telefona-lhe, manda-lhe mensagens, controlando onde ela se encontra e exigindo-lhe tabaco. Quando a ofendida regressa, trazendo os víveres, pergunta em que sítios andas, és uma vaca, és uma puta, e este insulto tem-se mantido com frequência quase diária, e de maneira cada vez mais intensa. Atingindo-a com o propósito de causar vergonha, o que conseguiu, sabendo que era conduta punida por lei. Mais se provou que o arguido tem um grau de incapacidade de 80 por cento e encontra-se acamado.
Maria recolocou-se na cadeira do tribunal, sempre a ouvir.
Há uma ordem de saída de casa, num agregado familiar com dificuldades de gestão dos seus provimentos. Ele foi funcionário público. É surdo. Maria está reformada por invalidez. Disse que toda a vida foi maltratada, destratada, e que passou a ser a certa altura incomportável, o que a levou a apresentar queixa.
A filha recorda-se de ter havido discussões lá em casa e que numa ocasião, aos cinco ou seis anos, ter visto o pai a agredir a mãe.
Mas não são feitas referências a datas e, apesar da franca emotividade dos depoimentos, não conseguiram concretizar quando. Foi há mais de trinta anos e os factos estão prescritos. Não houve testemunhas, foi tudo muito vago. É manifesto o desgaste, os problemas financeiros, mas não foi suficiente para provar os crimes. O senhor Nilton tem uma personalidade difícil, ficou acamado e a sua revolta ainda se tornou mais acentuada.
No entanto, outras testemunhas ouvidas pelo tribunal disseram que havia provocações de parte a parte. E o relatório da Santa Casa faz considerações à dinâmica do agregado que a ofendida não conseguiu contrariar. Há uma pessoa que está totalmente dependente de terceiros até ao fim da vida e que beneficia do apoio da Santa Casa… mas nem sempre foi aberta a porta aos técnicos e houve propostas de ajuda sempre rejeitadas. Situações que não são abonatórias da ofendida. A própria Maria disse que o seu objectivo era só arranjar uma casa para si e para a filha. Com todo o respeito, disse a juíza, a senhora está reformada por invalidez, mas a sua filha tem 35 anos, está na flor da idade, tem capacidade para, em querendo, ainda arranjar um trabalho.
Não podemos considerar que houve agravamento da gravidade da agressividade lá em casa, pelo facto de o arguido estar acamado. Tão simples quanto isso: agressividade verbal sim, (é ofensivo, é mau…), mas agressividade física é impossível. Como é que uma pessoa acamada, que nem sequer pode vir a julgamento, poderia continuar com a agressividade física nos mesmos moldes?
Nilton foi absolvido de violência doméstica. E nem crimes de injúrias apanhou, pois para isso a mulher não apresentou queixa. O que está realmente em causa, disse a juíza, é uma situação que urge acautelar com uma solução social, que não compete ao tribunal. Maria levantou-se, refez a cara de areia e perguntou à juíza como recorrer contra a decisão. Maria não sabia como, nem tinha dinheiro. A juíza disse para ir lá à secretaria pedir os papéis. Bom dia, obrigado, despediu-se Maria.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)