Um transplante, uma luta, uma vida normal. As doenças raras que afetam o sistema imunitário

As imunodeficiências primárias são doenças raras e crónicas causadas por defeitos hereditários ou genéticos. Provocam várias infeções, não são contagiosas, mas podem conduzir a um transplante. Há sinais de alerta que envolvem otites, sinusites e resistência a antibióticos.

Ricardo Pereira tem 30 anos, é engenheiro informático e presidente da Associação Portuguesa de Doentes com Imunodeficiências Primárias (APDIP). Tinha três anos quando lhe diagnosticaram uma agamaglobulinémia ligada ao cromossoma X, depois de infeções atrás de infeções pulmonares com má resposta a antibióticos e um internamento hospitalar bastante longo. “O diagnóstico foi feito na Alemanha porque nasci lá e os meus pais eram emigrantes. Após o internamento e a descoberta da doença iniciou-se a terapêutica com imunoglobulina endovenosa”, recorda. Aos sete anos veio para Portugal e começou a ser seguido no Hospital Universitário de Coimbra.

Sofre de imunodeficiência primária, há quatro anos foi internado várias vezes por causa de uma bactéria que lhe provocou uma pericardite aguda. Sempre teve algumas infeções como otites, sinusites, artrites. “Ainda tenho algumas, mas nada de grave, está tudo controlado e considero ter uma vida com qualidade”, conta à NM. Uma vez por mês, faz um tratamento no hospital de quatro horas com anticorpos que recuperam o seu sistema imunitário. A imunodeficiência é para o resto da vida e é preciso ter algumas precauções por causa das suas mazelas pulmonares. “Não devo ficar muito congestionado, tenho de evitar as gripes na altura em que são mais fortes”, diz. Evitar tosses e expetoração. “Tenho de me precaver, fora isso tenho uma vida normal”, garante.

Maria do Rosário Fernandes, enfermeira, é mãe de Raquel que nasceu com uma imunodeficiência grave. Tinha apenas quatro meses de vida quando perdeu as defesas naturais. Começaram as infeções, pneumonias, internamentos, e o diagnóstico foi feito. Foi há 21 anos. “A Raquel ficou bem, foi necessário fazer um transplante, e depois foi uma luta”, lembra. Com 11 meses, Raquel estava na mesa de operações para um transplante num hospital francês. “Passámos 18 meses em Paris, a Raquel passou cinco meses dentro de uma bolha, numa tenda redonda e esterilizada, num quarto esterilizado.”

Depois do transplante de medula, Raquel esteve hospitalizada durante 18 meses com um estado de saúde bastante delicado. “Não foi fácil lidar com uma situação desta gravidade”, diz Maria do Rosário Fernandes. Os problemas no início da vida fizeram com que a filha ficasse com um ligeiro défice cognitivo. Raquel tem hoje 22 anos, é auxiliar numa creche de Coimbra, e é autónoma. “É uma jovem independente”, afirma a mãe.

Quatro ou mais otites durante um ano, duas ou mais sinusites graves em 12 meses, uma criança com atraso no crescimento da estatura e peso, são casos que merecem atenção.

Ricardo e Raquel têm imunodeficiências primárias que são doenças raras e crónicas que afetam o sistema imunitário. Estas doenças são causadas por defeitos hereditários ou genéticos, não são contagiosas, podem ser diagnosticadas no momento do nascimento e nos primeiros anos de vida e podem afetar qualquer pessoa, independentemente da idade ou género. São mais de 350 doenças raras e crónicas com uma característica comum: todas resultam no mau funcionamento do sistema imunitário.

Portugal tem condições para diagnosticar, acompanhar e tratar dos doentes, mas há aspetos a melhorar. Ricardo Pereira, como presidente da APDIP, lembra que os doentes precisam de integrar o estatuto de doente crónico e que o tratamento domiciliário, por via da administração de imunoglobulina subcutânea, deve ser regulamentado.

“Os doentes tratados com imunoglobulina endovenosa fazem o tratamento em meio hospitalar, os doentes tratados com imunoglobulina subcutânea fazem-no no conforto da sua casa, sendo este tratamento a opção preferível em muitos casos, pela comodidade e menor risco de infeção para estas pessoas, que têm já um sistema imunitário fragilizado. No entanto, esta forma de tratamento precisa de ser devidamente regulamentada, o que ainda não aconteceu até hoje”, sustenta.

Atenção a abcessos e doenças autoimunes

Há vários sinais de alerta. Quatro ou mais otites durante um ano, duas ou mais sinusites graves em 12 meses, mais de dois meses de resposta ineficaz a um antibiótico, uma criança com atraso no crescimento da estatura e do peso, abcessos na pele que não desaparecem, entre outros. Com o sistema imunitário debilitado, mais suscetibilidade às infeções na pele, no sistema respiratório e intestinal, na garganta, nos ouvidos, nos pulmões, no cérebro, na medula espinhal.

Estima-se que cerca de 60% das imunodeficiências primárias possam ser facilmente diagnosticadas com testes sanguíneos simples e baratos.

“Os pais devem estar atentos a um possível aumento da frequência ou gravidade das infeções, sobretudo com impacto no desenvolvimento da criança, a doenças autoimunes, sobretudo em crianças mais jovens e quando atinge vários órgãos, a quadros de aumento de baço e gânglios linfáticos”, adianta Susana Lopes da Silva, imunoalergologista, com vasta experiência em imunodeficiências primárias.

Para a especialista, um dos principais desafios, na vertente do diagnóstico, passa por uma maior divulgação dos sinais de alerta entre médicos de Medicina Geral e Familiar, pediatras e médicos internos. “Estes sinais devem motivar a referenciação para centros de referência onde existe a diferenciação clínica e acesso a laboratórios diferenciados para o diagnóstico.” “A curto prazo seria também importante avançar para a implementação do rastreio neonatal precoce de imunodeficiência grave, que poderá ser acoplado ao Teste do Pezinho, à semelhança do que já se passa em muitos países”, acrescenta.

O sistema imunitário fica debilitado e aumenta a propensão para infeções na pele, nos pulmões, na garganta, nos ouvidos, no cérebro.

O diagnóstico pode, por vezes, ser difícil, mas estas patologias são tratáveis normalmente por médicos especializados em doenças do sistema imunológico. Os tratamentos incluem terapias com imunoglobulina, transplante de células-tronco, antibióticos profiláticos, entre outras. Para casos selecionados, de acordo com o defeito genético identificado, há terapêuticas direcionadas para alvos específicos em diferentes vias imunitárias. “Existem ainda, para algumas imunodeficiências primárias, terapêuticas curativas: transplantes de progenitores hematopoiéticos, terapia génica não disponível no nosso país”, refere Susana Lopes da Silva.

A Semana Mundial das Imunodeficiências Primárias assinala-se de 22 a 29 de abril. Por todo o mundo, aproveita-se a oportunidade para informar políticos, escolas, famílias, e o público em geral, da importância de um diagnóstico mais precoce e de um tratamento ideal. Várias associações ligadas à doença unem-se com o objetivo de promover mudanças positivas nos sistemas e práticas de saúde e prestar cada vez mais apoio às pessoas que vivem com essas doenças raras e crónicas.