Rui Cardoso Martins

Um homem muito educado

Ilustração: João Vasco Correia

Já se adivinhava pelas calças de caqui, passadas a ferro, a camiseta creme imaculada, o cinto de couro castanho, o sapatinho de pele, o cabelo oleado de caracóis e o bigode, ah o bigode: uma linha junto ao lábio aparada como relvado inglês, um carril de pêlos, enfim, via-se que o senhor Afonso era pessoa educada.

Foi por isso bizarro ouvir as palavras da juíza, alinhadas em tom metálico, até agressivo, uma sentença fora do contexto do relógio de marca que dava ao piloso pulso de Afonso um toque aristocrático ou mesmo, porque não, aristotélico, no sentido de firmeza de pensamentos.

– Não foi provado que projectou o agente Barros para cima do capô, pois ele mesmo aqui testemunhou que por razões de segurança foi ele que se agarrou ao carro… O senhor apresentou uma tese de que não tentou atirar o carro para cima do agente, mas confessou que se recusou identificar-se.

Afonso mantinha o nariz no ângulo recto em que começara, nem graus para cima, nem para baixo, e a juíza continuava:

– … um exercício de violência contra agente em funções, um crime de resistência e coacção sobre funcionário. É conhecido o crescente desrespeito pelas forças da autoridade e compete aos tribunais punir e fazer cumprir o respeito devido às forças da autoridade. A sua incapacidade de reconhecer o que tinha feito…

Estávamos a chegar ao coração de alface fresca de Afonso, porque há que reconhecer, depois de ouvir o que se passou, que num homem tão composto pode morar um humorista, um anarca, pois raras vezes se ouviu réplica mais extraordinária do que a que Afonso dera à juíza dias antes, no julgamento:

– Admite que disse ao guarda que, ou ele saía da frente, ou lhe passava por cima?

– Disse, mas com educação.

Na sentença a juíza revia a frase, catalogando-a por extenso: “Ainda chegou ao ponto de ter o desplante de dizer que disse ao guarda que ou ele saía da frente ou lhe passava por cima, mas que o fez com educação!” A admiração que a sala sentia pelo senhor Afonso aumentou, quem é que tem a coragem de falar assim?, e o julgamento acabou com ele condenado a um ano e quatro meses de prisão, suspensos pelo mesmo período. Afonso não vai para a prisão porque quase atropelar um polícia “terá sido num quadro ocasional, não tendo o arguido uma personalidade perigosa”.

E eu saí a pensar em outros casos de extrema boa educação a que assisti em décadas de tribunal, e vêem-me à memória, do sótão do tempo, coisas muito avariadas.

Por exemplo, aquele bêbedo poético que caiu da mota que conduzia sem carta, e que disse em tribunal:

– Peço perdão e vou viver a minha pessoa de outra maneira.

Uma das mais belas frases de distanciamento de si próprio desde Fernando Pessoa.

E a mulher de um subchefe que foi à esquadra fazer queixa do próprio marido, por este lhe ter dado um murro, e que vendo a dificuldade em formalizar a queixa ao comandante da esquadra, disse ao oficial (e camarada do marido) de serviço:

– Ó tu que estás sentado aí nesse lugar onde se sentam os porcos, seu cabrão.

Ou ainda a testemunha Oliveira que há uns anos não podia dizer o que tinha ouvido na rua, porque

– A minha educação não me permite, desculpe, mas a minha educação não me permite…

e o juiz cada vez mais enervado

– Ó senhor Oliveira, já sabemos que é uma pessoa educadíssima!

mas forçando-o a dizer, porque sem repetir as palavras não se provava o crime. O senhor Oliveira respirou então fundo. Fungou. Meteu ar pela fresta do canino. Estalou a língua.

– O que ele disse é que… peço desculpa… é que… a filha dele tem uma cona igual às outras, mas tinha a mania que tinha uma cona d’ouro.

Como é inteiramente compreensível, fez-se silêncio sob as arcadas da casa da Justiça. Não é que o senhor Oliveira tinha razão para se calar? Ou há educação ou cai o Mundo, não é?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)