Um homem de família

Que Natal vai ter Samuel? É um homem-magneto para os outros (ou outras). Um devoto da fidelidade, um crente tão profundo na família que o leva a gerar ramos diferentes do mesmo tronco. Desviando-se das regras sociais e da gramática, admitiu o acontecimento: “Foi quando a irmã dela passou, ao qual nasceu um filho, pronto”. Podia Samuel reunir na Consoada os filhos, os enteados, os sobrinhos e primos-irmãos, e até primos que são irmãos em simultâneo. Pode não ser sagrada, mas é família.
Samuel falava dos Açores por videoconferência, a juíza disse-lhe que depor à distância era “situação excepcional para um arguido”, mas o resto mantinha-se: ia ser julgado por “violência doméstica e crime de ofensa à integridade física simples” contra a ex-mulher e a filha desta. [Acusação: quando a mulher o confrontava com infidelidades, ele chamava-lhe puta e porca e mandava-a lavar a boca, ameaçava tirar-lhe os filhos e batia-lhe, a ponto de os vizinhos chamarem a polícia. Quando ela ameaçou fazer queixa, ele respondeu que divulgava um vídeo sexual dos dois.] Queria Samuel falar? Queria e muito:
– Vivemos uma relação, sim senhora. Começámos aqui nos Açores e depois tivemos de nos ausentar dos Açores porque a mesma teve problemas com a família e fomos para o Continente. A nossa relação terminou em 2014.
– Não foi até 2018?
– Não, não, senhora doutora. Vivíamos na mesma casa, debaixo do mesmo tecto, mas só por causa das crianças.
– Mas não viviam como se fosse marido e mulher?
– Eu dormia na sala e ela dormia no quarto. Durou até 2018, foi quando eu me vim embora. Ela não tinha para onde ir. Eu, por minha vez, também, o meu ordenado não era muito. E depois ela tinha as crianças e organizámo-nos de maneira que um dia, quando ela pudesse sair, ou eu, um de nós saía. Era uma casa camarária.
A ex-mulher, mais uma rapariga e um rapaz estavam sentados a meu lado. Elas pareciam ter agulhas espetadas nos olhos e nos ouvidos, que se espetavam mais quando ele falava. Eu só via Samuel de lado. Com o ecrã virado para as bancadas dos magistrados, calhara-me o pior lugar da última fila do galinheiro num cinema. Mas quando ele disse que a fuga psicológica da sua triste vida era jogar futsal todas as noites, consegui definir o vulto na TV: um homem atlético, de ar simpático. O interrogatório começou a correr mal quando se enganou no nascimento do filho. A mulher e a juíza deram um pulo incrédulo.
– O senhor não sabe a data de nascimento do seu filho?!
– Peço desculpa, eu sei, eu sei.
Depois a juíza fez uma pergunta corriqueira (e, afinal, bíblica):
– Pergunto-lhe se a certa altura o senhor manteve relações afectivas, amorosas, com outras mulheres às escondidas da dona Joana e se, quando foi confrontado, admitiu isso.
– Ó senhora doutora, eu quando tive a relação com a Joana, até 2014, nunca traí, nunca fiz nada, nada com ninguém.
– Hum.
– É assim, depois em 2016 a irmã dela passou lá por casa… Eu vou ser sincero. Passou. Eu já não tinha relação nenhuma com a senhora dona Joana e nós tivemos um caso, tivemos um caso. Tive um caso, é verdade. Com a irmã dela. Mas enquanto tive a relação com a dona Joana, eu sempre fui uma pessoa fiel. Nunca tive relações com ninguém!
Samuel torcia-se numa cadeira numa ilha no meio do Atlântico.
– É assim… a minha vida amorosa, eu vou ser muito honesto. É para isso que eu estou aqui. Eu só tive um caso.
– Até pode mentir, como arguido tem direito a fazê-lo.
– Sim, sim, mas é assim, eu não tenho necessidade de mentir. Eu tive só com a irmã dela em 2016, foi quando ela passou, ao qual nasceu um filho, pronto. Nasceu um filho, pronto. Mas é assim. Eu tenho a actual mulher com quem estou a viver, mas nunca tive mais casos com mais ninguém.
E por ali fora: “Sou um homem sério”; “jamais, fui eu que eduquei as crianças, pelo amor de Deus!”; “gosto de sossego, gosto de estar na minha paz, foi assim a minha educação!”.
Quando o bebé da irmã da ex-mulher nasceu, exigiu teste de paternidade. Não acreditou ser o pai. À saída, a ex-mulher:
– Homem de família! Se mostrasse as gravações dele a bater na outra! Aquela pose de doutor… Um verdadeiro sociopata!