Rui Cardoso Martins

Um famoso no desconhecido

Esta crónica não fala de pessoas conhecidas. Há trinta anos que dedico uma parte da semana de palavras, olhos, ouvidos e coração a assistir a sessões de uma espécie de AA (Arguidos Anónimos).

Pessoas que vão a tribunal contar as vidas, misérias, anedotas, desamores, crimes. Pessoas a quem troco o nome, por exemplo a vítima Mariana agora é Luciana, José é João, porque somos todos pessoas famosas numa escala pequenina só nossa, nem que seja a mulher abusada pelo namorado, que devo proteger do rumor público do seu bairro. Há semanas, no entanto, ao entrar numa sala do Campus de Justiça, vi jornalistas. Também sou assim: costas e nariz num papel, rabiscando notas. Assisti à sessão, as alegações finais de um caso grave de atropelamento. Mais tarde saía no “Jornal de Notícias”, assinada por Inês Banha, este título e palavras:

Deputado deu carro para abate após atropelar cantoneira

“O Tribunal Local Criminal de Lisboa considerou, na quinta-feira, que o facto de o deputado da Assembleia da República que, em 2016, atropelou uma cantoneira em Lisboa, ter dado o carro para abate após o acidente ‘inviabilizou qualquer prova’ quanto à atribuição do embate a uma eventual falha mecânica do veículo. Durante o julgamento, Pedro Delgado Alves – eleito pelo PS e presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, na capital – argumentara que, na madrugada do atropelamento, perdera o controlo do automóvel depois de o volante ter bloqueado quando tentava afastar-se, por segurança, do camião do lixo em que acabaria por embater, atingindo a trabalhadora. A justificação não convenceu o tribunal e o deputado foi ontem condenado a pagar dois mil euros de multa, por um crime de ofensa à integridade física por negligência simples. Fica ainda impedido de conduzir durante sete meses. O caso remonta a 17 de maio de 2016, quando, pelas 1.50 horas, o carro conduzido por Delgado Alves chocou contra um camião do lixo parado na via direita da Avenida Almirante Gago Coutinho, em Lisboa, atingindo Maria Lúcia Santos, que, no momento do embate, se encontrava de pé no estribo do lado esquerdo do veículo. Na sequência do acidente, a cantoneira, hoje com 38 anos, ficou ferida com gravidade numa perna e foi obrigada a tirar 596 dias de baixa. Ontem, a juíza que presidiu ao julgamento defendeu que o atropelamento ‘só ocorreu devido à desatenção do arguido’, por motivos que não foram apurados. E, atendendo à sua formação como jurista, acusou Delgado Alves de ter ‘deliberadamente’ tentado inviabilizar, com o abate do veículo, a prova de que, na sua origem, poderia ter estado uma falha mecânica. Nas alegações finais, o advogado do socialista, Vítor Faria, explicara a ida do carro para a sucata com o mau estado em que este ficara.”

Na manhã das alegações, a cantoneira (“mulher-do-lixo”) estava sentada a meu lado, as pernas volumosas, a cara esgotada. Delgado Alves, no banco dos acusados, baixava a cabeça cabeluda, a barba entalada num absurdo. Como é que isto lhe acontecera? A advogada disse: “Não há sinais de travagem, não há manobras evasivas, que poderiam ter evitado o acidente da forma como ocorreu. Nada disto foi feito. Só há uma explicação: não teve tempo, não teve tempo. Não viu. Demonstra claramente que o arguido seguia desatento e foi isso que provocou o acidente que desfez a perna da assistente. A minha cliente continua desempregada, sem poder trabalhar, porque não consegue estar mais de duas horas em pé. Portanto, aqui ninguém se aproveita da imagem de ninguém!”.

O advogado de defesa do deputado falou depois: “O arguido está aqui como cidadão perfeitamente comum, confia em Vossa Excelência e confia na Justiça deste país. O meu cliente com a verticalidade e a simplicidade que lhe são inerentes, tentou trazer ao processo alguns contributos no sentido de justificar a sua tese “ab initio”: houve uma avaria mecânica, o carro quando foi preciso não respondeu”. Uma avaria eléctrica, abriu-se uma luz e o volante bloqueou. Despiste de álcool negativo, despiste de psicotrópicos negativo, ausência de telefonemas ou uso de internet, velocidade excessiva ausente dos relatos das testemunhas. “Não há aqui esquemas de defesa. É um homem em pânico, um homem destroçado por se ver envolvido num acidente, tem noção da gravidade que decorre para uma senhora que estava sentada no estribo de um carro e que não tem culpa de nada.”

Mas antes de nos poder contar tudo – pelo menos alguma coisa – o carro, e a verdade inteira, foram para o lixo.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)