Trabalhar sem parar, sem desligar. E a cabeça e o corpo é que pagam

Texto de Sara Dias Oliveira

“Não dá para parar, não há um horário para pausas.” É o trabalho de todos os dias, uma roda-viva, as quase 70 refeições diárias para o apoio domiciliário e as 40 para o centro de dia, as ementas para confecionar ao pequeno-almoço, almoço, lanche. Regras e horários para cumprir.

Fernanda Castro trabalha num centro de dia, na cozinha, tem semanas em que está de serviço aos sábados e domingos de manhã, além do horário habitual de segunda a sexta em que entra às 8 e sai às 17 horas. A única pausa é das 12 às 13 horas, ao almoço, tempo que aproveita para sair do local de trabalho, comer qualquer coisa, ouvir um pouco de música para se distrair.

“É muita coisa ao mesmo tempo, é muito cansativo e, por vezes, uma pausa de poucos minutos dá para aliviar a cabeça”, garante. Não tem intervalos durante a manhã ou à tarde, entra e começa a labuta. “Concentro-me no que tenho de fazer e não paro.” Depois da jornada laboral, o incontornável serviço doméstico. “Tenho ainda a vida de casa.” As caminhadas ao ar livre ajudam-na a descomprimir o corpo e a mente. “Precisamos de um tempo para descansar, para ganhar energias para o dia seguinte porque temos mais um dia de trabalho pela frente.”

Carlos Monteiro vende doces regionais numa banca na Estação de São Bento, no Porto, já lá vão 12 anos. De segunda a sábado, chega de Lousada de comboio, recheia a pequena loja e abre aos clientes por volta das 9.20 horas para as vendas que terminam habitualmente por volta das 18.30 horas. Aos domingos, está na feira da Póvoa de Varzim. Trabalha de segunda a segunda e as pausas dependem das vontades dos clientes.

Normalmente, consegue tirar uma hora ao almoço, das 12 às 13 horas. “A hora de almoço dá para aliviar a cabeça”, comenta. De qualquer forma, consegue tempo para respirar entre uma e outra compra. Antes disso, trabalhava no corte de roupa de criança, confeção por conta própria. “Aí é que trabalhava, era de noite e de dia. E passados uns anos é que se sente, são os ossos que dão sinal, vai-se para a cama mais cedo.”

Henrique Novo tem uma vida de trabalho, mais de 70 anos, há mais de 30 que conserta sapatos num pequeno espaço no centro do Porto com máquinas da arte, prateleiras com calçado de todo o feitio. Trabalho é trabalho, mesmo que seja por conta própria. Começa às 8.30 horas, almoço das 13 às 14.30 horas, fecha às 19, aos sábados tem porta aberta das 9 horas ao meio-dia. Pausas? Nada disso.

“Agarro-me ao trabalho e só penso no trabalho, e trabalho é trabalho”, explica. Nada de conversa no café, nada de voltinhas pelas redondezas. “O trabalho é para se respeitar, é preciso ser muito profissional. Não somos todos iguais, é conforme o feitio das pessoas.” Henrique Novo não precisa de pausas, além da hora de almoço, em que tem tempo para a refeição, descansar um pouco no sofá, ler o jornal. “Pausas de manhã ou à tarde viram o cérebro para outras coisas e quando se vai retomar o trabalho já não é a mesma coisa.”

Os tempos mudam e cada um tem a sua opinião. Contudo, a fadiga, o stresse e o burnout são consequências diretas da má gestão da vida profissional e que afetam a vida pessoal. Longas horas de trabalho, elevada pressão para atingir resultados, ligação constante às novas tecnologias, viagens frequentes em alguns casos, são o retrato mais comum do atual ambiente do ganha-pão.

“Nunca tivemos uma pressão tão grande pelos resultados. A tendência de colocar o rendimento numa folha de Excel é um fator de stresse enorme e os objetivos são cada vez mais exigentes”
José Soares
Professor

Mas é preciso cuidado e saber lidar com a situação. José Soares, professor catedrático de Fisiologia na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, fez um inquérito a 2 500 trabalhadores de várias empresas do país e chegou à conclusão que só 12% da força produtiva nacional afirma sentir-se “muito bem” quando acorda de manhã, só 14% faz pausas de 90 em 90 minutos durante o horário laboral, e 36% garante dormir sete horas por dia. Os dados estão no seu livro “Reload”.

A sociedade habituou-se a viver num estado de “never offline”, sempre ligada, desconfortável quando desliga, como a síndrome do membro fantasma que sente o telemóvel a vibrar mesmo quando o aparelho não está à mão, na carteira ou no bolso.

“Nunca tivemos uma pressão tão grande pelos resultados. A tendência de colocar o rendimento numa folha de Excel é um fator de stresse enorme e os objetivos são cada vez mais exigentes”, assinala. Por outro lado, a jornada diária é feita de muitas horas de trabalho, turnos, fins de semanas tomados pelas obrigações laborais, noitadas a preparar relatórios e reuniões em casa. E a performance sempre a ser avaliada, deslocações e viagens mais frequentes num Mundo mais global e mais próximo.

“Pagamos um preço muito caro por isso.” O cansaço toma conta do corpo e da mente e a saúde dá de si com menos horas de sono. “As funções cognitivas são afetadas, há maior probabilidade de tomar decisões erradas, falhas de memória, dificuldades de concentração, maior irritabilidade.”

Menos stress, melhor performance

Há dois planos interligados nas relações laborais: quem manda e quem obedece. As decisões são tomadas de cima para baixo e se quem manda não percebe que a fadiga e o stresse são inimigos da produtividade, então é preciso alterar a forma de trabalhar. Mas, por outro lado, há o trabalhador enquanto pessoa que tem de tomar as suas próprias decisões precisamente na gestão desses obstáculos que vergam e condicionam a eficiência laboral e até a maneira como se encara um dia na empresa.

“A vida profissional ocupa a maior parte do tempo ao longo da semana e é necessário encontrarmos fórmulas de preservar o nosso bem-estar, ou levaremos o nosso corpo e mente aos seus extremos. É possível, da maneira certa, ter uma boa performance e conjugar a vida profissional com a vida pessoal.”

José Soares, com ligações ao desporto de alto rendimento como treinador e consultor de atletas de diferentes modalidades, cujos princípios aplica agora na performance de pessoas e equipas em ambiente corporativo, criou os “4 R’s” numa transposição do mundo desportivo para o mundo empresarial, corporativo. “Recover. Refuel. Rethink. Reenergize.”

O primeiro “R” é recuperar. “Saber recuperar muito bem durante o dia e entre os dias.” Esticar as pernas por segundos, levantar-se da secretária ou do posto de produção e relaxar os músculos, um intervalo curto de três, cinco minutos para desanuviar a cabeça durante o dia de trabalho e recuperar o fôlego de um dia para o outro. “O sono está a ser muito maltratado”, diz.

Reabastecer é o segundo “R” e a alimentação é aqui o ponto essencial. Trabalhar, trabalhar, trabalhar e saltar refeições não é uma boa opção. “Como podemos utilizar o nosso combustível? Devemos comer para pensar e há alimentos que têm impacto na função cognitiva.” Mas há quem se esqueça da hora de almoço, quem faça intervalos demasiado longos com o estômago a roer e as consequências manifestam-se na saúde e no rendimento.

Repensar é outro “R”. “A motivação, a liderança, o trabalhar em equipa, têm uma base biológica grande”, refere José Soares. A predisposição é uma questão que pode passar despercebida mas que tem peso porque uma pessoa no lugar errado pode ser penoso para a vida de uma empresa, porque nem todos lidam da mesma maneira com o stresse, há quem fique mais desconfiado, há quem fique mais atento, e nem todos nasceram para mandar ou para obedecer. É necessário perceber as competências mais finas.

Revigorar é um “R” importante, recarregar energias, exercitar o cérebro, saber desligar, parar para descansar, para dormir, para organizar a vida. “‘Start and stop’, a vida tem de ser um bocadinho assim.” Menos stresse para uma melhor performance.

Não pensar, não sentir

O trabalho nunca é neutro porque influencia a identidade, o bem-estar, a saúde mental, a disponibilidade, o esforço, o prazer, a vida. Envolve tarefas, hierarquias, inesperados, adaptações, reajustes, decisões. Implica coordenação, comunicação entre pessoas, construção de equipas. O trabalho é determinante na realização pessoal, seja no prazer, na relação com os pares, no reconhecimento de competências, ou na pertença a um coletivo.

Tânia Pinto, psicóloga do trabalho e psicanalista, lembra que a organização do trabalho passou por transformações significativas nos últimos anos. As lógicas económicas alteram-se, as novas tecnologias chegam ao mercado de trabalho, outras necessidades que se juntam à produtividade, mão-de-obra mais flexível, horários mais elásticos, trabalho temporário, teletrabalho, e a noção de qualidade transforma-se num conceito que se pode medir a qualquer momento, consumidores proativos, linhas hierárquicas mais próximas, outros métodos de gestão de recursos humanos, novas formas de avaliação, trabalhadores supostamente mais autónomos.

“A tendência é para uma carga de trabalho cada vez maior, ritmos cada vez mais acelerados e um esbatimento da fronteira entre a vida fora e dentro do trabalho”, sublinha Tânia Pinto. As ferramentas informáticas permitem uma avaliação mais apertada do que se faz, do que se produz. “Ao autocontrolo junta-se a avaliação individual da performance que coloca os trabalhadores em concorrência uns com os outros a partir de critérios que lhes escapam e que revelam mais da gestão que do trabalho efetivo. Daqui surge o medo de não estar à altura, de ser despedido, que se torna no motor do investimento, do zelo.”

O sofrimento no trabalho começa quando a relação bloqueia, quando o trabalhador percebe que já não pode dar mais, que utilizou o máximo das suas faculdades, e que é difícil aliviar os constrangimentos que sente. “É a certeza de que o nível de insatisfação atingido não é passível de ser diminuído que marca a entrada no sofrimento. Tudo na organização do trabalho lhe pede que não pense, que não sinta, que se relacione cinicamente consigo e com os outros, que se resigne. Em suma, que abra mão da sua subjetividade para poder trabalhar – neutralização total da vida mental durante o tempo de trabalho.”

A insatisfação instala-se e manifesta-se pelo cansaço físico e psíquico. “O ativismo ou hiperatividade é uma das respostas possíveis a esses constrangimentos organizacionais, com efeitos conhecidos sobre a saúde: esgotamento físico, psíquico e emocional; problemas de sono, de atenção, de concentração, de memória. Problemas cardiovasculares, hipertensão e hipotensão arterial. Problemas musculoesqueléticos. Agir para não pensar, não sentir.”

Tânia Pinto acredita que é possível encontrar estratégias para um futuro não muito distante. “A transformação da organização do trabalho é, sem dúvida, a chave para a transformação da relação saúde mental-trabalho. Para essa transformação ser possível, é sobretudo necessário repor um discurso sobre o trabalho em si (e não sobre a gestão do trabalho), e dar espaço e escuta ao papel fundamental dos coletivos de trabalho na construção de soluções para os desequilíbrios.” Porque é no equilíbrio que está o ganho. A todos os níveis.