Trabalhar sem companhia: o dia a dia de quem tem profissões solitárias

Texto de Filomena Abreu

João Morgado: o homem a sós com as paredes

É frequente os dias começarem da mesma maneira. Entregam-lhe as chaves e deixam-no a respirar os ecos do silêncio. João Morgado, 34 anos, arquiteto, mas mais fotógrafo, vai além do que lhe compete. Apresenta-se ao trabalho como quem com ele namora. Pode ser com uma moradia, com um museu, com um pavilhão. Já aconteceu com capelas, escolas e apartamentos.

A sua profissão é prender em imagens a essência dos espaços. Fá-lo com comprovada distinção. Em 2015 foi considerado, pela revista americana Top Teny, um dos dez melhores fotógrafos de arquitetura do Mundo. Um ano antes, venceu o prémio da agência Arcaid Images Architectural Photography, com uma foto tirada à Piscina das Marés, em Leça da Palmeira – da autoria do arquiteto Álvaro Siza Vieira (com quem é frequente trabalhar). Méritos de um lobo solitário. Fruto da entrega total ao serviço. E, claro, do vício da luz. “Estou muito dependente dela. Às vezes fotografo de manhã e fico à espera, até ao fim do dia, para captar outra luminosidade. Chego a estar 14 horas sozinho nos edifícios só por causa disso.”

Sem aborrecimentos. Meticuloso. “À procura do melhor enquadramento. E dos detalhes.” Uma busca constante inspirada nas paredes caladas com quem trava diálogos ininterruptos. Cúmplices. É assim hoje como há nove anos, quando fundou a empresa “João Morgado – Fotografia e Arquitetura”. Estava o país mergulhado em crise. “Na altura, o melhor modelo de negócio era o do “one man show”. E a verdade, é que eu conseguia, ainda consigo, fazer tudo sozinho.” De início ao fim.

“Contacto com os clientes, faço orçamentos, tiro fotos e edito.” Cenário um: Portugal, Itália, França, Espanha, Brasil, Estados Unidos ou Kuwait. Câmara na mão, objetiva em riste. Até pode acontecer tirar meia hora para enviar e-mails ou para falar com clientes, mas a maior parte do tempo estuda os cantos à casa. Cenário dois: o seu espaço, em Vila do Conde. Sentado ao computador ou com o telemóvel ao ouvido. “E mesmo nessas horas estou só. Por opção, trabalho melhor sem colaboradores. Nem me imagino a fazer isto de outra maneira, porque já sei o que preciso para que o trabalho corra bem.”

A ideia também não é “aumentar a quantidade em detrimento da qualidade”. Neste momento, tem a agenda preenchida para dois meses. “Claro que demoro mais, porque não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Mas os clientes sabem disso e contactam-me com a devida antecedência. As obras também são demoradas, acaba por não haver inconvenientes em termos de prazos. E assim, quando chega a hora de fotografar, os edifícios já estão prontos.” E ele também. No fim, quando o sol se põe, João só tem de arrumar o equipamento e bater a porta.

O fotógrafo começou a trabalhar sozinho por causa da crise. Hoje não se vê a ter colaboradores. (Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Ana Luísa Amaral: sozinha na multidão dos ruídos

Pega em papel e caneta e sai para a multidão. Em busca de recolhimento. Escreve ensaios, está a traduzir os sonetos de Shakespeare, mas é a escrever poesia que se sente mais feliz. “Adoro ir até a um café que há aqui perto.” Um ali em Leça da Palmeira que caracteriza como “extraordinário”. Explica: não tem rádio, nem televisão, nem música. Tem esplanada. “O meu prazer é estar lá sentada a escrever porque só ouço o ruído das pessoas e esse ruído é igual a estar em casa sozinha. O som da humanidade, o som humano à minha volta, não interfere com nada.” Garante que podem estar a falar do que quiserem que não ouve. “O ruído é um amparo.”

Já em casa, Ana Luísa Amaral, que tem, breve pausa, “sessenta… e três, sim, são sessenta e três” – às vezes a cabeça em desacordo com o corpo – precisa mesmo de silêncio. “Não posso ter nem sequer música de fundo. Incomoda-me. Interfere. É outra arte a intrometer-se na minha e eu não consigo escrever. Preciso realmente do recolhimento, acho que é fundamental para quem escreve.” Algo que não se mede pela quantidade de tempo que permanece só, até porque o contabilizou. Mas mede-se pela qualidade. “Posso precisar de uma hora ou de dez dias seguidos. Às vezes o poema vem. Outras vezes não.”

Se for no café, prefere que não a conheçam. Prefere não conhecer ninguém. É o sozinha na multidão. “Se conhecesse as pessoas que lá estão era totalmente diferente. Não sou capaz de escrever num ambiente conhecido. Como não sou capaz de escrever na sala de casa se a minha mãe ou a minha filha estiverem aqui sentadas. Não sou capaz. Não sou capaz.” Recusa que lhe falem de carreira. “A minha profissão é uma: professora na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É isso que me dá dinheiro, trabalho e eu adoro. A minha profissão não é ser escritora, ou tradutora. Eu sou amadora. E gosto da palavra. É um privilégio, não é?” E sem nunca se aborrecer.

“Sou filha única, talvez isso conte, habituei-me a brincar sozinha. A estar sozinha.” É de Lisboa, mas vive em Leça desde os nove anos. “Odiava isto. Odiava. Quando vim sentia-me muito só. Troçavam comigo por causa da pronúncia, por ser magrinha. E esse estado de solidão acompanhou-me por muito tempo. Durante meses, adormeci a chorar.” Com 15 anos fez as pazes com o Norte. Hoje, sabe, estar sozinha não é sentir-se sozinha. “Vivo com uma cadela e duas gatas e não me pesa.” Rodeada de papéis, bordados com poemas. Dizem que o génio é 99% suor e 1% de inspiração. “O que é certo é que essa parte da inspiração, que nós não sabemos de onde vem, mas que está lá, como um mistério, quando chega é uma coisa maravilhosa. E chega em silêncio. E chega de uma forma solitária.”

A escritora e tradutora até pode escrever num café cheio de gente, desde que não conheça ninguém. (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Carlos Rosado: à espera que algo não aconteça

O farol de Leça da Palmeira tem dois motores de rotação. Quando escurece, um deles liga-se. Se por algum motivo avariar soa o alarme. Caso a anomalia persista, o segundo entra em ação. Imaginemos que corre mal e que esse também falha. É preciso pôr o antigo mecanismo de relojoaria (que vigorou até 1950) a rodar. Mas pode ser pior. Se houver uma quebra de energia elétrica exterior, em condições normais o gerador vai arrancar e o farol continua a emitir luz. Porém, até esse pode não colaborar. Aí, recorre-se à relojoaria e substitui-se a lâmpada pelo camping gaz. Existe um plano A, um B, um C, um D.

“E haveria sempre outro caso nenhum desses resultasse. Nem que se pusesse ali uma vela e o faroleiro desse à manivela.” Porque se há coisa que o homem sabe é que as máquinas são falíveis. Por isso, é indispensável a presença humana que garanta que tudo corre como esperado. Ou não fosse o lema dos faroleiros “nunca deixar que a luz se apague”. Carlos Rosado. 48 anos de vida, quase a completar 23 de profissão, sabe de cor o que fazer quando, de três em três dias, fica sozinho de serviço 24 horas. O que significa que entra às 9 horas e que depois das 17, quando todos deixam o posto, a torre está por sua conta, até às 9 horas do dia seguinte. Durante esse tempo zela e espera que nada aconteça.

Num farol, os dias nunca são iguais, mas há práticas que se repetem. Duas em especial, o retirar de cortinas ao pôr-do-sol, para permitir que a luz se veja ao longe, e o colocar de cortinas ao amanhecer. Lá no alto, depois de subir 235 degraus, explica o orgulho que sente por vestir a farda branca. “Apesar das novas tecnologias, os faróis continuam a ser fundamentais, principalmente para o tráfego marítimo de recreio e de pesca, que são embarcações mais costeiras. Confirma-lhes o que estão a ler nos radares e nos gps.

Quando olham o horizonte e distinguem a luz característica do farol, ganham outro alento e segurança.” E pode nem parecer, mas, mesmo sozinho, um faroleiro tem sempre muito que fazer. “Entre outras tarefas, à meia noite, às 3 horas e às 6 horas tenho de verificar se os assinalamentos marítimos, do Porto de Leixões e de Angeiras, estão a funcionar. Se sim, registamos; se algum deles estiver apagado, tenho de informar o chefe. Será preciso resolver.” Durante a noite, não há com quem falar, mas o silêncio não é um problema. “Até porque ouço sempre o mar. É uma espécie de canção de embalar, mais no verão.” Longe vão os dias em que os faróis eram fogueiras que ardiam livremente. Mas, na essência, a importância da luz mantém-se. “Gosto da paz e do sossego que esta profissão me traz. Contudo, tenho noção da grande responsabilidade que também acarreta.”

O faroleiro de primeira classe garante, desde 2013, que a luz do Farol de Leça da Palmeira nunca se apague. (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Teresa Cardoso: de noite como se fosse de dia

Começou em Esmoriz. Na altura, havia falta de pessoal. Ela, grávida do filho mais velho, foi recomendada à empresa por uma amiga. “Chamaram-me 12 meses depois.” Andou de posto em posto até parar, há 31 anos, na passagem de nível da Granja, na Linha do Norte, em Vila Nova de Gaia, onde é guarda desde então. À entrada do abrigo há um aviso. Num papel que cumpre religiosamente: “Proíbida a permanência de pessoas estranhas ao serviço.”

A barraca, “toda a vida lhe chamamos assim”, é uma divisão pequena, onde permanece sozinha. “Tenho de lá estar durante as oito horas de serviço. Só saio quando os comboios passam. Ao aproximarem-se, as composições calcam uma espécie de pedal que faz soar os sinais. Teresa Cardoso, 62 anos, natural de Vila Real, mas residente em Ermesinde, levanta-se. Se for de dia, pega na bandeira vermelha. Se for de noite agarra na lanterna. Fecha a porta da cabine, baixa as cancelas e ergue o que tem na mão. “Como quem diz ao maquinista que a via está livre.”

Assim que a composição passa, as campainhas desligam-se. E Teresa levanta de novo as cancelas para deixar passar os veículos. “Esta passagem é muito movimentada. É mesmo necessário estar aqui alguém.” São oito horas nisto. Nem sempre no mesmo turno. Pode lá estar das 8 às 16 horas, das 16 à meia noite ou da meia-noite às oito da manhã. “Para mim tanto me faz. Houve um tempo em que tive medo de estar ali sozinha, agora é como se fosse sempre de dia. E posso dar graças a Deus porque, fora umas bocas, nunca ninguém se meteu comigo.” É um trabalho solitário, mas que faz com gosto. “A gente mentaliza-se e habitua-se a estar só. E no trabalho até gosto porque estou mais concentrada. E aqui a atenção tem de ser redobrada. Tenho perfeita noção da grande responsabilidade que tenho. Podemos perder uma vida num instante.”

Em 42 anos já apanhou alguns sustos. Carros na linha. Pessoas na linha. “Já me vi obrigada a ter de parar os comboios para evitar graves acidentes.” Tirando esses percalços, não restam dúvidas. “Adoro o que faço. Envelheci aqui. Mas há dois anos, as Insfraestrutuas de Portugal fizeram uma festa, para homenagear a profissão que está em vias de extinção. Ofereceram-me um alfinete de ouro pelos meus 40 anos de serviço. E eu enchi-me de coragem e fui ao palco ler umas palavras para agradecer. Gostei daquele bocadinho.” A voz um pouco tremida. “Quando me reformar terei muitas saudades. Até gostava de levar uma bandeira. Ou então uma lanterna, daquelas antigas, a óleo, que nos deixavam o nariz preto no fim do dia. Eu apego-me às coisas.”

A guarda da passagem de nível da Granja já antevê as saudades que sentirá do seu pequeno abrigo. (Foto: Fábio Poço/Global Imagens)

Óscar Viana: viver ao contrário

Azar, azar, já não tem há muito tempo. Da última vez, ligaram-lhe do centro emissor de Muge, uma freguesia do concelho ribatejano de Salvaterra de Magos, a dizer que tinha disparado o alarme de intrusão. “Nem tive de fazer nada. Bom, tive. Disse que não estava na hora do piquete e que por isso era da responsabilidade da segurança verificar o que se passava.”

O relato é de Óscar Viana, 54 anos. Profissão: supervisor técnico de emissão no Grupo Renascença Multimédia, em Lisboa. Trabalha por turnos. Manhãs, tardes, noites e, de cinco em cinco semanas, lá tem de fazer as madrugadas. São sete dias seguidos a entrar à 1 hora e a sair às 7 horas. Normalmente, já trabalhamos sem companhia de outras pessoas, mas quando fazemos madrugadas não vemos ninguém. No edifício estão os seguranças, eventualmente um jornalista. Três ou quatro pessoas no máximo.

“Tão poucos tão poucos que nem nos cruzámos. Bom, podemos ver-nos ao início da noite…” É quase uma sorte. Naquele turno trabalho não há muito. O que é bom sinal. “Só lá estamos a segurar as pontas. Eventualmente a fazer ligações quando há programas de exterior, para garantir que tudo corre bem. E, depois, a desligar e a pôr a edição de rádio a correr normalmente, quando esses programas terminam.” Mas, se algo correr mal, convém ter um Óscar lá para atuar. “O que não é normal, mas às vezes lá calha.”

Se for necessário, pode interrir em qualquer uma das quatro rádios do grupo. Para passar o tempo, retira publicidades dos programas. Coisa rápida. “Mas, no geral, há mesmo muito pouco para fazer.” Por isso, vê televisão, vai ouvindo, à vez, as quatro emissões, para garantir que estão a funcionar.” Se falharem, o alarme dispara, mas não é de imediato. “Assim, as chances de corrigir erros é maior.” Parece coisa pouca, sem grande impacto, mas não é. Com a internet, as transmissões já não são só nacionais, têm difusão internacional. “Por exemplo, se uma bloquear, seria uma falha geral. Mundial. E nas nossas rádios isso não pode acontecer. Não era bom esperar que o problema se resolvesse só às sete horas, quando o resto da malta entra ao trabalho.”

Óscar podia encobrir a verdade. Não o faz. “Gosto do meu trabalho, mas se dissesse que gosto de fazer madrugadas estava a mentir. Sei que é um trabalho importante e de responsabilidade, mas envelhece. Altera-nos o ciclo diário. Vivemos ao contrário, a dormir de dia e a trabalhar de noite. É muito desgastante e não é compensado de maneira nenhuma. Porém, tinha de calhar a alguém.” Menos mal que não é sempre ao mesmo. “Muita gente acha que de noite não está ninguém na rádio. Outras vezes sabem que está. Pode é não ser a pessoa que esperam que esteja.”

O supervisor técnico do grupo Renascença vira o ciclo de sono ao contrário para garantir que as emissões não falhem. (Foto: Filipe Amorim/Global Imagens)

Agostinho Martins: um vício e uma herança

Às 5 horas, os barcos estão apetrechados e os homens prontos, mas ninguém se faz ao mar. Só ali, na praia de Couve, são oito embarcações. Há outras cinco em Cedovém. Os pescadores miram a estação do Instituto de Socorros a Náufragos da Apúlia. Serenos. Nesse instante, ninguém o vê, mas Agostinho Martins, 68 anos, põe a chave à porta, entra e acende a luz. É como um ritual. Assim que as oito janelas denunciam a presença do patrão salva-vidas os homens sentem que podem partir. “Vão com outra confiança.” E ele fica, à distância, sozinho, de vigia. Binóculos atentos, a controlar as luzes.

“Conheço bem os barcos e sei quais as zonas para onde costumam ir pescar. Se os deixo de ver durante muito tempo já fico com preocupações.” Agostinho não tem de estar ali àquela hora, devia entrar às 9, como o outro tripulante. Assim como devia sair às 17 horas, mas os seus olhos só largam o mar depois das 20. E quando o tempo está “mais rasca” até fica lá a dormir. “Não consigo ir para casa. É a minha missão. Não fico de consciência tranquila. E se há azar? Se demoro a chegar aqui pode ser fatal. Um minuto na água parece uma hora.”

A profissão é um amor. Um vício. “Saudável”, sublinha. É, na verdade, também uma herança. Passou-a o irmão mais velho. E o pai. O pai é que é o grande responsável por tudo. Em 1935 foi primeiro patrão salva-vidas de Apúlia. José António Faria Martins, o nome que ainda há dias rebatizou a estação onde Agostinho trabalha. Sete dias por semana. Seja Páscoa ou Natal. “Não consigo fechar o portão.” Antigamente ainda tirava 15 dias de férias em Agosto. Ia para o Algarve com uns amigos que são como família. Mas há muito que isso não acontece. Tem 38 anos de serviço e só o fez durante 25.

“Nem o meu filho que está em França consigo ir visitar. Eu tenho amor a isto, de certo exagerado.” Tudo o que sabe aprendeu em miúdo. Com o pai e com “os velhotes”, que só tinham a quarta classe. “O mar não precisa que sejamos muito estudiosos. O que nos pede é respeito. E nós só nos atrevemos a ir contra ele se for preciso safar alguém.” Quando esse dever se impõe, já não vai sozinho. Quase sempre leva ajuda. Faz as contas. Ao todo, 204 salvamentos. “Às vezes aparecem-me aqui uns jovens para me cumprimentar. Têm 20 ou 30 anos. Perguntam-me se me lembro deles. “Tirou-me do mar há uns anos.”” Crianças e adultos conquistadas à morte nos agueiros. “É uma honra para mim.” E ele uma segurança para quem anda naquele mar.

O patrão salva-vida de Apúlia não consegue estar em casa sabendo que os seus pescadores estão no mar. (Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)