Trabalhadores de 25 nacionalidades partilham os dias na Casa da Música

Foto: Catarina Vieira/Global Imagens

Vieram dos cinco continentes para tocar, cozinhar e enriquecer um lugar que é de todos. São 25 nacionalidades que se entendem, todos os dias, a falar a língua do respeito, da música e da cultura.

Os ódios à primeira vista, tal como os amores, nunca se esquecem. Jérémy Pernet conta o que lhe aconteceu. Assim que o apresentaram à Casa da Música, já lá vão quatro anos, torceu o nariz. “Não gostei da atitude, da postura, da provocação.”

O estudante de arquitetura tinha voado de Clermont-Ferrand, em França, para o Porto ao abrigo do programa Erasmus. Procurava um conhecimento “mais próximo da construção” e uma “experiência mais sensual da arquitetura”. E o edifício não lhe enchia as medidas. A mudança do horroroso para o maravilhoso foi subtil. “Algo progressivo, conquistado.” Misturado com outros fragmentos da vida. Deu-se o inimaginável, à luz dos seus tenros 24 anos.

Durante aqueles meses de estudo, apanharam-no desprevenido e assaltaram-lhe o coração. De uma só vez, três paixões fulminantes. A companheira, a cidade e a Casa da Música. Pareceu um complô. Foi de tal forma desconcertante que ficou sem opção. Regressou a França para concluir os estudos e viu-se obrigado a voltar ao Porto.

“Com necessidade e vontade de começar a minha carreira de arquiteto, de encontrar um gabinete onde pudesse trabalhar e pessoas que me estimulassem.” Aos itens juntou uma ideia que vinha ganhando raízes. Estava cada vez mais convencido de que aquele caixote disforme cinzento era “a proposta justa para o Porto”. Para “a democratização da cultura”.

Assim decidiu tentar fazer parte dele e foi lá deixar um currículo. “Só me responderam dois anos depois a dizer que estavam interessados no meu perfil. Procuravam guias estrangeiros, sangue fresco.” Há cinco meses que faz disso um part-time. Ou “um terço-time”, brinca Jérémy. Porque também é arquiteto independente e fotógrafo de arquitetura. “Por norma, faço quatro visitas semanais, cada uma com duração de uma hora.” Em francês, inglês e português. Ensina e aprende. “Quando me cruzo com um técnico faço perguntas. Com os músicos igual.”

Uma sede que mistura passado e presente. “Percebi que houve muitas coisas que se passaram que explicam a Casa da Música de hoje, que não é exatamente igual à que foi pensada no início.” Demora um segundo antes de concluir. “Curioso. Um lugar que nasce de um conceito espacial puro, que nem sequer tem a ver com a cidade do Porto, faz-nos voltar sempre ao corpo, ao que vivemos.” À terra. “Tudo por causa das interações que aqui acontecem. Das pessoas que vêm aqui parar.” Uma Casa que cruza 25 nacionalidades diariamente.

Por todo o mundo a pregar a música

O pai de Dawid Seidenberg não sonhou que o filho viesse um dia a integrar o naipe de metais da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música (antiga Orquestra Nacional do Porto, cujo nome foi alterado em 2010). No entanto, a procura do culpado é breve. E Dawid, que assegura que não lhe podia ter calhado melhor sorte, está-lhe grato por isso. Cresceu na Alemanha de leste, com quatro irmãos e três irmãs. Educação rígida. “Naquela altura, havia poucas possibilidades para vermos o Mundo, fora da União Soviética.”

O pai, perdidamente apaixonado por música, viu nela a solução para o clã. Incutiu-lhes a motivação para que um dia pudessem sair dali e serem livres. Donos dos próprios destinos. O de Dawid começou cedo. Aos seis anos, entrou para a escola. Além das letras e dos números ensinaram-no a tocar trompa. Ensaiava meia hora antes de almoço e uma hora antes do jantar. “Todos os dias. Sábado e domingo.” A ideia daqueles dias põe-lhe um sorriso no rosto. O pai, músico, era o professor. Quando o alemão tinha 13 anos, o muro de Berlim cai. Na mesma altura, entra, por sua própria iniciativa, numa escola profissional de música. Despede-se da trompa e diz olá ao trombone. “Ordem do pai. Ele achava que a forma dos lábios merecia um instrumento maior.” Fez-lhe a vontade, não teve outro remédio.

Dawid Seidenberg, alemão, é trombonista na Casa da Música (Foto: Catarina Vieira/Global Imagens)

“Só quando já era crescido é que percebi que existiam outras profissões que também seriam interessantes. Para mim e para outros cinco meus irmãos acabou por ser um processo muito natural.” Tanto que hoje, dos oito, seis vivem da música. Cinco com trompa. Um com trombone. “Tem graça, porque a estatística de quem consegue fazer parte de uma orquestra é muito baixa. Não é fácil. E na minha família seis conseguiram, é um caso de estudo.”

Dawid seria por dois motivos. Além desse, quem o conhece diz que de alemão tem muito pouco. Já vem de trás. “A maioria dos meus colegas queria entrar numa orquestra alemã. Eu já tinha o sonho de trabalhar noutro país. Onde houvesse bom vinho, boa comida, onde se falasse outro idioma. Queria sair da Alemanha.” A oportunidade surgiu em 2001, quando um amigo lhe pergunta se estava interessado em fazer audições numa cidade portuguesa, “o Porto”. Veio, todavia só integrou o grupo em setembro de 2002. No início ainda ensaiavam no convento de S. Bento da Vitória, a antiga sede da Orquestra. “Acompanhei tudo. Já são 18 anos. Sinto que sou parte da história. E isso é uma grande honra. Obviamente que não é tudo bonito. Onde há luz há sombra, mas estou feliz por viver neste país.”

Só lamenta o português meio “enrolado”, louvavelmente esforçado. “Devia ser obrigatório para os estrangeiros fazerem um curso de português quando chegam à Orquestra. Senti falta disso. O que aprendi foi na rua. Por isso, falo assim. Nem bem, nem mal. Gostava de ser muito melhor.” A justificação é aceitável. “Vim jovem, com 25 anos, numa altura em que não sabia se queria ficar muito tempo. Passei aqui algumas fases menos boas, em que não sentia a 100% que isto ia ser o meu destino.” Deambulava entre o “vou-me entregar mais” e o “se calhar não vale a pena”. Agora, não duvida. “Estou no sítio certo.”

De Moscovo com amor e garra

A certeza do trombonista é partilhada por Ianina Khmelik. Outro caso em que a música foi usada como trampolim para uma vida melhor. A ideia de viver fora de Moscovo, na Rússia, partiu dos pais. Quando a jovem fez 15 anos, aproveitaram os laços de amizade que tinham com os professores da Escola Profissional de Música de Espinho e enviaram a filha única para Portugal. Um dos professores ficou seu tutor. “Ao contrário de muitos, não me integrei tanto na comunidade russa, mas convivi logo com portugueses. Daí o meu português ser melhor e ter acabado o 12.º ano com 19 à disciplina.” Um currículo escolar invejável. O visto de estudante foi substituído pelo de residente. Começou a viajar, a conhecer outras culturas, outros estilos de música, outras bandas e a fazer parte de orquestras. Tocou nos eventos da Porto 2001, nome dado à iniciativa Porto Capital Europeia da Cultura 2001, para a qual o arquiteto holandês Rem Koolhaas projetou a Casa da Música. E quando abriram oficialmente provas para fazer parte da Orquestra Ianina entrou.

Ianina Khmelik, violinista na Casa da Música (Foto: Catarina Vieira/Global Imagens)

“Ainda sou do tempo em que tocávamos na garagem, quando o edifício ainda não estava pronto.” Efetivamente só foi inaugurado em 2005. O orgulho nota-se na voz. “A Casa da Música é o paraíso. As condições que nos oferecem são muito superiores às de outras grandes orquestras.” Para Ianina, com 36 anos, os atrativos vêm de todo o lado. A violinista tem uma vida paralela com a música eletrónica e o pop/rock. Foi violinista dos GNR, durante alguns anos. Gravou três discos com eles. E tem um projeto a solo, “IAN”. Apesar desse sucesso, não prescinde do lugar na sua amada Casa, onde o tédio não tem assento. “Não tocamos só música contemporânea nem só música clássica. Claro que não estamos no coração da Europa, como Paris ou Viena, mas isso não nos impede de evoluir. E lá fora estão atentos ao que fazemos.”

Um entusiasmo que não é partilhado por todos os colegas. “É geracional. Temos músicos que odeiam tocar música contemporânea. São pessoas muito mais velhas, é-lhes difícil perceber a beleza daquela música.” Algo que não transparece nas atuações. E que o jornal britânico The Guardian não teve em conta quando, numa lista dos 25 edifícios de todo o mundo com a melhor arquitetura do século XXI, colocou em 7.º lugar a Casa da Música. Não é a primeira distinção. Em 2014, a companhia Emporis divulgou um top-15 das salas de concertos “mais espetaculares do Mundo”. O edifício português ficou em 2.º lugar. “São coisas que enaltecem a cidade, o país e a cultura”, remata a irreverente violinista, que também sabe tocar piano.

Peixinhos da horta com sotaque

O instrumento do ucraniano Yuri Biloshapka são os tachos. O local onde costuma atuar chama-se cozinha. E os pratos que confeciona merecem ser apaludidos de pé. É tudo muito simples. A comida e o homem. Pomos a música a tocar. À capela. “Tenho 37 anos e sou cozinheiro. Vim para Portugal no dia 5 de junho de 2006, mas só cheguei à Casa da Música, em 2016.”

Começou num restaurante. Passou para um hotel. “Até que, um dia, a empresa de trabalho temporário disse-me que precisavam de mim no café/restaurante da Casa da Música. E eu vim para este sítio que é muito diferente dos ambiente que conhecia.” Os dedos ajudam a contar. “As condições da cozinha são melhores. O ambiente de trabalho, melhor. Boa equipa, bom chefe, bom diretor, tudo bom.” Trabalha numa cozinha em que “ninguém chateia”. Ele e outra colega. Prossegue, sem perguntas.

Yuri Biloshapka, cozinheiro (Foto: Catarina Vieira/Global Imagens)

“Aqui fazemos francesinhas, pregos, peixinhos da horta, bolinhos de bacalhau negro, camarão com fio de batata, bacalhau à Brás e tranches de carne. Já os provei todos. Por acaso são bons”. Foi difícil aprender a confecionar esses pratos? “Não.” Tem algum favorito? “Não.” Aborrece-o ficar o dia todo na cozinha? “Não. Estou lá fechado, mas conheço pessoas de todo o Mundo. Alguns trabalham aqui. Vêm falar comigo, quando entro para o serviço. ‘Yuri olá, tudo bem?’ Este é o melhor sítio onde já trabalhei. Grande. Bom e bonito.”

O edifício que mudou para sempre a cidade e que inevitavelmente obrigou a cidade a mudar por causa dele faz em abril 15 anos. Necessários para que todos se adaptassem a ele. Hoje, é vê-lo, qual pedra lapidada, numa das zonas mais nobres da cidade, junto à rotunda da Boavista. O pé-direito, de 30 metros, surpreende. Os planos em cimento branco, casados com vidro e alumínio, arrumam qualquer ousadia de não o encarar. E se o exterior parece ter pai extraterreste, o interior mostra bem o coração lusitano espelhado, sem dó, nos azulejos portugueses. O objetivo foi criar um espaço que marcasse, só de ouvir o seu nome. Casa da Música.

Veio ele, a mulher, a mãe e a amiga da mãe

“Casa da Música”, perguntou Bernard à pessoa que estava do outro lado da chamada. “Quando cheguei aqui para a entrevista não sabia nem por onde entrar. Eu ouvia falar dela, até por causa da paragem do metro, mas não sabia bem o que era. Onde era. Nem o que se fazia aqui. Quando percebi que era esta riqueza toda, nossa, fiquei impactado.”

Três meses antes do telefonema não lhe passava pela cabeça que por causa daquele edifício a sua vida ia finalmente entrar nos eixos. A história obriga a novo recuo no tempo. E põe o brasileiro Bernard Cavalho, atualmente com 35 anos, numa vida privilegiada no Rio de Janeiro. “Trabalhava para a Petrobrás. Fazia manutenção das plataformas de mar. 15 dias lá, 15 dias de folga em terra e estava separado da mãe da minha filha. Justamente num dia em que me preparava para trabalhar recebo a notícia. As condições no Brasil estavam más e o padrasto da minha filha tinha uma proposta em Portugal.” A cabeça começou a girar. E nada tinha a ver com as ondas. “Não quero ficar sem a minha menina, porém era uma oportunidade na Europa.” O Brasil com problemas na Educação, na Segurança, na Saúde. Bernard já com problemas de saudade antecipada. “Demorei a tomar a decisão, mas lá consenti. Até porque não queria separar uma família.” Antes de partirem, o trato. “Nas férias do ano letivo, Lívia iria ao Brasil”.

Bernard Carvalho, técnico de manutenção (Foto: Catarina Vieira/Global Imagens)

Não aconteceu. “Os planos deles correram mal. Passei o Natal e o Ano Novo sem ela e comecei a pensar na minha vida.” Quanto mais pensava, mais metia na cabeça que tinha de arranjar forma de assegurar um melhor futuro para a filha. Fazê-la regressar ao Brasil deixou de ser uma opção. “Eu morava com o meu pai num condomínio em frente à praia, ganhava o equivalente a mil euros. Tinha o meu carro. Parece uma loucura, mas as saudades foram decisivas. Pedi demissão e larguei toda a minha vida estruturada porque quando se tem filhos as prioridades são outras.” Chegou a Portugal com a mulher. A mãe veio de férias e ficou. Uma amiga da mãe, que veio tentar a sorte, também. Todos instalados durante 15 dias no T1 da ex-mulher de Bernard. “Onde ainda cabia a mãe da minha filha, a minha filha, a minha ex-sogra e o padrasto da Lívia e uma filhinha deles, de dois anos.”

Numa semana, a mulher de Bernard conseguiu trabalho, a amiga da mãe também e ele foi para as vendas porta a porta. Ao fim de três meses, dizia mal da vida. “O que eu fui fazer?” E num desses dias de desânimo o telefone tocou. Era da empresa Manvia, responsável pela manutenção da Casa da Música. “Gostaram do currículo que tinha enviado mesmo antes de sair do Rio.” Para tudo mudar basta um segundo. “Quem diria que hoje estaria a contrato e feliz?” Entretanto, já foi pai de outra menina e sempre que lhe pedem conta a sua história. Com gosto. “Quando eu falo que trabalho na Casa da Música, dizem-me: ‘nossa, até para os portugueses é difícil trabalhar aí’. E eu consegui entrar num lugar desses. Foi coisa de Deus.”

Há um ano na Casa, move-se pelos andares como se estivesse no céu. “Do piso -3 até ao 9 a gente faz tudo. Não conheço toda a gente, mas há interação. Tem de haver, desde as meninas da limpeza ao administrador. Todas as funções são importantes. E há respeito por todos, mesmo que não haja intimidade.” O amor ao trabalho é tanto que já recusou outras ofertas. A ganhar mais 300 euros. “Eu não saio daqui de jeito nenhum. Gosto das pessoas, o ambiente é muito bom. Não quero trocar.”

Nos quadros da Casa da Música constam 199 pessoas, a que acresce o contributo diário de outras tantas, entre equipas externas e colaborações pontuais, como músicos convidados, serviços de limpeza, segurança, etc. Dessas quase 200 do quadro, 85 são mulheres e 114 homens. 84 são músicos e 115 profissionais de outras áreas. Têm entre 22 e 66 anos. Juntos, ainda que não se conheçam todos, põem a Casa a funcionar. E tornam possível as diferentes atividades, como os concertos, a manutenção, a restauração (restaurante e café). Uma máquina bem oleada para um lugar que recebeu em 2018 cerca de 680 mil visitantes. Não é à toa que Bernard diz que está sempre a ouvir línguas diferentes. Faladas e tocadas. “Às vezes, entro para medir a temperatura da sala de instrumentos e fico maravilhado. Tanta cultura. Tanta riqueza.” Ele, que era percussionista de conga no Brasil, emociona-se se ouve sons da sua terra. “Por vezes acontece e sinto-me um privilegiado.”

Escadas, portas pesadas e o sorriso

Olhando para os últimos 20 anos, Ilaria Vivan diz o mesmo. “O tempo voa, mas só porque tem sido tudo muito bom.” A harpista, natural de Trieste, em Itália, começou os estudos na música aos oito anos. Quando concluiu a formação, procurou oportunidades de trabalho em orquestras um pouco por toda a Europa. Soube da prova do Porto e decidiu concorrer. “Quando cheguei, a Casa da Música era só um projeto.” A adaptação foi fácil. Até porque não estava sozinha. “Houve um grande grupo que chegou na mesma altura, quando a Orquestra aumentou. Foi uma fase de conhecimento recíproco. Gente da mesma idade que vivia experiências parecidas, a novidade da cidade e a novidade da sinfónica.” O que lhe facilitou a vida. “Encontrei pessoas simpáticas, bons amigos e colegas. De outras culturas, com outras tradições. Esse lado da orquestra que se criou na Casa da Música, além de interessante é muito enriquecedor.”

Ilaria Vivan, italiana, harpista (Foto: Catarina Vieira/Global Imagens)

Aos 47 anos não lhe faltam histórias para contar. Uma delas é de amor. “Casei há 11 anos com um colega que toca flauta. Conhecemos-nos aqui e alguns anos depois reparámos um no outro. E pronto.” Outras histórias são feitas de despedidas. “Ficam-me na pele os momentos em que os mais velhos da Orquestra se reformam. É estranho, apesar de ser o curso normal das coisas. Sabe, é que nós somos como uma turma.”

A italiana-portuense, como se define, considera que a Casa que lhe dá trabalho tem ajudado muito a cidade. Ela, tal como tantas pessoas, aprendeu a gostar do edifício que no início lhe parecia “bastante ousado”. Agora, é “agradável”. “Mais por fora do que por dentro. Por dentro, apresenta muitos problemas, a meu ver, como portas gigantes e pesadas, escadas íngremes e desiguais, que tornam o dia a dia um bocado difícil e cansativo.” Uma espécie de metáfora da vida. “Obstáculos que é preciso transpor, sem perder o sorriso do rosto.”

A encantadora do oboé

Todo o rosto de Eldevina Materula, mais conhecida por Kika Materula, tem a beleza de quem, aos 37 anos, se sente mesmo feliz. Nasceu em Maputo, Moçambique, onde iniciou a formação musical. Aos 13 anos, foi estudar na Escola Profissional de Música de Évora, no âmbito de um intercâmbio. “Mas só quando chegou a Portugal é que ficou a saber o que era um oboé, o instrumento que hoje toca, ensina e que não trocaria por nada deste mundo. Ainda que o encontro com ele não venha embrulhado numa história mágica. Quando chegámos à escola de Évora, eu e os outros alunos moçambicanos fomos distribuídos pelos vários instrumentos.” Deram-lhe aquele. “Correu bem.”

Passados alguns anos, concluiu o curso na Escola Superior de Música de Lisboa e ao currículo acrescentou uma pós graduação na Suécia. No fim, empenhou-se num projeto social no Brasil que a fazia dividir-se entre um lado e o outro do Atlântico. Numa das vindas a Portugal, corria o ano 2009, fez as audições para Orquestra da Casa da Música, e desde então faz parte dos quadros. “Estou num naipe maravilhoso, todos de nacionalidade diferentes, mas muito, muito contente. Por estar na Orquestra e por ter os colegas que tenho.”

Grata à música, pelo tanto que dela tem recebido, iniciou, em 2013, o projecto Xiquitsi, que visa a integração, inserção social e capacitação profissional de crianças e jovens por intermédio do ensino coletivo de música. Projeto de onde saiu a primeira Orquestra Juvenil de Música Clássica de Moçambique. “Faço-o porque acredito que a música é uma grande e importante ferramenta para o desenvolvimento e crescimento de um país. E o meu país precisa.”

Kika Materula, moçambicana, oboísta (Foto: Catarina Vieira/Global Imagens)

Atualmente, o Xiquitsi integra 200 alunos. Alguns já fazem formação superior. “Tenho a certeza que um dia terei ex-alunos como meus colegas.” O sonho comanda a vida. Há três anos, um grupo deles esteve no Porto, a visitar a Casa da Música. “Viram concertos e ficaram completamente abismados com a grandeza da instituição, com o poder do edifício e altamente impressionados porque nunca pensaram que existisse um lugar com condições tão boas como as que nós temos para trabalhar.”

O brilho daqueles olhos inocente é partilhado por ela. Todos os dias. “Nunca pensei ter a sorte e o privilégio de trabalhar em Portugal, numa orquestra sinfónica com a qualidade que tem a da Casa da Música. Que, aliás, não poderia ter outro nome. Porque é de facto uma casa. A nossa casa. A Casa da Música.”