Texto de Filomena Abreu
“Oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes”
in “A infância de Herberto Helder”
O pensamento faz um voo rápido ao passado. Jacinto Lucas Pires sorri, ao aterrar no momento em que tudo se fez verbo. “Devo-lhe a minha entrada no mundo louco da literatura.” Fala a memória de um jovem estudante de Direito, que após um concurso de contos, na Universidade Católica de Lisboa, conhece melhor um dos elementos do júri, o padre Tolentino Mendonça. Foi Tolentino Mendonça quem mais tarde o pôs em contacto com a editora Cotovia.
E assim começou a carreira do prestigiado escritor. “Tornámo-nos amigos e passei a perceber que essa generosidade não tinha sido só um acidente comigo. Ele é assim com toda a gente. E com as ideias também. As palavras dele evocam profundeza, mas com uma simplicidade fascinante.” Um elogio ao homem e ao poeta.
“Fora da Igreja é perigosamente consensual. E dentro dela, em certa medida, é radical e porventura controverso.” Um homem que “sabe fazer pontes e dar murros na mesa da sua casa, quando é preciso”. Porque “está atento aos outros e vê o que neles há de melhor”. Detalhes preciosos que apaixonam quem dele se aproxima.
“De onde vem este braço que toca no outro”
in “Isto é o meu Corpo”
José Tolentino Mendonça nasceu em 15 de dezembro de 1965, no Machico, na ilha da Madeira, numa família de pescadores. O mais novo de cinco irmãos viveu os primeiros anos de vida no Lobito, Angola, para onde o pai foi trabalhar.
“Era uma pequena comunidade de pescadores madeirenses, com as suas famílias. Tive a sorte de crescer aí. As tradições que marcavam eram madeirenses… mas inscritas naquele território novo e inesquecível. São dessa altura as minhas primeiras leituras, muitas delas feitas através da memória da minha avó que nos contava romances de cor. Daqueles romances verbais, de cavaleiros, e assim”, revelou, em 2011, numa entrevista à “Notícias Magazine”.
Aos 11 anos regressou à beleza dos dias da Madeira, onde colecionava folhas no outono e pescava nas horas livres. Alheio ao desejo de um dia vir a ser padre. Na mesma entrevista destacou isso mesmo. “Deus sempre andou por perto. Há um conjunto de coisas que vão emergindo, até as percebermos não só consistentes, mas decisivas. Em vários momentos, no seminário, na Madeira, por exemplo. Não foi um momento único.”
Ordenado padre em 1990, estudou Ciências Bíblicas em Roma, antes de assentar na capital, onde foi capelão e, mais tarde, vice-reitor na Católica e dirigente do Secretariado da Pastoral da Cultura.
Foi nesses anos que mais pontes construiu entre as gentes, os poemas e a fé. Antes de ser chamado ao Vaticano como consultor do Conselho Pontifício da Cultura, ordenado como arcebispo titular de Suava e nomeado bibliotecário e arquivista da Santa Sé.
“Levamos anos a esquecer alguém que nos olhou apenas”
in “Calle Principe, 25”
A escritora Alice Vieira conta com carinho e graça o momento em que conheceu o “amigo Zé”, há muitos anos, quando foram pela primeira vez à Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha. “Ficámos a dar-nos muito bem. Só quando cheguei a Lisboa é que percebi que ele era padre.”
Quando se assinalaram 15 desde que perdeu o marido, Tolentino fez uma cerimónia na capela do Rato, onde foi capelão até ao ano passado. “Foi do mais bonito que já vi.” A escritora frisa o orgulho que sente por o amigo estar em Roma. Contudo, a saudade escapa-se pela boca antes mesmo de a conseguir conter.
Se calhar nem tenta. “Ele bem me diz, ‘mas tu não sabes a alegria que é ver um livro do Miguel Ângelo’. E eu penso, está bem, mas eu queria-o era à minha beira.” Pensará o mesmo que muitas das pessoas que iam à missa ao Rato.
“Era um momento especial. Os miúdos podiam brincar e sentar-se ao pé dele. Convidava os autores a ler as próprias obras. Ou ele citava-as nas homilias. Na comunhão os divorciados também se punham na fila e recebiam o sinal da cruz na testa. Sentiam-se incluídos. A igreja era uma casa grande onde estávamos todos.”
“Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões”
in “da verdade do amor”
Luís Mah, professor e investigador na Lisbon School of Economics and Management (ISEG) – Universidade de Lisboa sentiu-se imediatamente parte dessa casa, mal conheceu Tolentino. O encontro deve-o a um amigo que o levou para o grupo de homossexuais católicos, dinamizado na Capela do Rato. Quis perceber o que era ser gay e cristão.
“Quando cheguei senti conforto. Havia mais como eu, uma comunidade. Era um momento para estarmos em conjunto, havia debate, sobre fé, sobre espiritualidade, sobre política e sobre o nosso dia-a-dia.” O docente, que refere ter tido sempre “uma veia ativista e revolucionária dentro da Igreja”, explica que ali se sentia à vontade.
“O Tolentino é uma espécie de terapeuta na sua essência. Sentíamos que ele tinha o dom de nos ouvir. E que encontrava sempre na Bíblia forma de nos ajudar a estar presentes na comunidade. O que me fez sentir uma das cartas do baralho. Ele é único. Vai ser o futuro Papa.”
“A Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento”
in “A fala do rosto”
De sacerdote a arcebispo e logo depois a cardeal. Tudo em pouco mais de um ano. “Uma ascensão que só surpreende quem não conhece o Tolentino”, garante o poeta e cronista Pedro Mexia.
Tolentino era vice-reitor da Universidade Católica quando foi convidado pelo Papa Francisco a pregar o retiro de Quaresma da Cúria Romana, em 2018. No fim dos cinco dias, Bergolio agradeceu-lhe. “Obrigada por nos ter recordado que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito voa e trabalha também fora.” Pedro Mexia, que também conheceu Tolentino enquanto aluno de Direito, constata: “O Papa ficou tão impressionado com ele como os alunos há 20 anos”.
Na apresentação de um dos livros de Tolentino, o cronista deu por si a refletir na transversalidade do público a que o filho de pescador chega. “Estava lá sentado a pensar: estas pessoas não voltam a estar juntas fora desta sala. Tem um discurso aberto e dialogante. E é um grande poeta.”
O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, referiu que “o cardinalato de D. José Tolentino é muito adequado e oportuno”. “Adequado ao cargo e ao próprio, pois o colégio cardinalício, nas suas melhores épocas, sempre contou com figuras de grande envergadura intelectual, como é claramente o caso. E muito oportuna, porque a nova evangelização que hoje se impõe requer também uma forte componente cultural, como o novo cardeal lhe garante. Estamos todos de parabéns.”
Mas o primeiro pensamento de Tolentino quando soube da nomeação não foi júbilo. Foi na admoestação que Jesus faz no Evangelho: “Procura o último lugar”.
O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, que inicialmente iria estar presente na cerimónia em Roma (tendo cancelado devido ao funeral de funeral de Diogo Freitas do Amaral), escreveu para a “Notícias Magazine” um texto (que pode ler no final deste artigo) sublimando o novo membro do colégio cardinalício.
Os cardeais são os primeiros conselheiros do Papa e são também quem escolhe o seu sucessor. Com D. José Tolentino, Portugal passa a ter cinco cardeais ao mesmo tempo. Algo inédito. Atualmente, o Vaticano tem 216 cardeais: 118 são eleitores e 98 não eleitores.
“Não constitui segredo
contam a sua história
mesmo se por atalhos
as coisas insignificantes de uma vida”
in “Atalhos”
Leonor Xavier, escritora, jornalista e amiga de longa data de Tolentino, também lhe enaltece “a abertura evangélica e de espírito”. “É tão talentoso,…anda pela cidade e não exclui ninguém.” Mais. “Estimula sempre a liberdade de expressão, por isso consegue reunir à sua voltar uma comunidade de crentes e não crentes.”
Leonor Xavier resume Tolentino a um ser notável. “Enquanto académico, teólogo, poeta. Áreas que conjuga com o asfalto, com a cidade, com as gentes. E é afetuoso, tem um sentido de amizade e uma grande ternura pelas pessoas.” Como se retribui tanto? Leonor só conhece uma fórmula, ensinada pelo mestre. “Cuidemos dele. Acompanhemo-lo em espírito. E rezemos por ele.”
Texto do presidente da República:
Ontem, Portugal viu receber o barrete cardinalício um dos seus nomes grandes na Cultura, na Educação, no diálogo ecuménico, na sensibilidade à Juventude, o Senhor Dom José Tolentino de Mendonça.
Todos, ou pelo menos muitos de nós, lemos os seus livros de poesia ou os seus escritos teológicos e filosóficos. Ou com ele convivemos no meio universitário. Ou testemunhámos os encontros que promoveu ou em que participou com outras confissões religiosas, com quem não professava qualquer religião ou com quem lhes era abertamente avesso. Ou o vimos entender-se com jovens das mais variadas latitudes e longitudes.
E alguns de nós recordamos uma conversa especial que marcou a nossa vida. Ou uma homília que abriu para pistas completamente novas. Ou um almoço, um jantar, um cruzamento de percursos que iluminou tempos de tristeza, inspirou riscos temerários, nos colocou num tempo acima do tempo. Ou um desafio daqueles que lançava na Capela do Rato, suavemente, como se não fora uma efetiva provocação comunitária.
Foi sempre assim. Há décadas infindáveis. Tantas quantas as que dele recordo.
Como sempre foi um exemplo de rigor ético, de luminosa inteligência, de prodigiosa palavra.
Tudo debaixo de uma postura muito simples, muito humilde, muito discreta, quase que como quem pede desculpa de incomodar os demais com uma palavra, um pensamento, um gesto.
Ontem, foi um dia alto para todos nós, católicos e não católicos, crentes ou não crentes.
Foi um prestígio para Portugal.
Marcelo Rebelo de Sousa