Todos têm a sua. Mas a de D. Sancho I é a mais antiga

Texto de Filomena Abreu

D. Sancho I, filho de D. Afonso Henriques, herdou em 1185 um trono jovem que precisava de se afirmar. Ao alargar as fronteiras a sul, com a ajuda dos cruzados, tornou-se “Rei de Portugal, de Silves e do Algarve”, salvaguardando a independência do reino. Quando faleceu, em 1211, deixou um testamento claro.

Após anos de uma relação conflituosa com a Santa Sé, o rei temeu pela salvação da sua alma. Assim decidiu, numa das cláusulas do documento, inscrever a vontade que justifica o texto. “Dou a minha copa de ouro [uma espécie de cálice] para que façam dela uma cruz.” O desejo cumpriu-se três anos depois, com a peça a ser doada, conforme sua vontade, à Igreja de Santa Cruz de Coimbra, mandada erguer pelo seu pai, onde ambos estão sepultados.

Feita com ouro real, na parte frontal tem safiras, granadas e pérolas, algo extremamente vanguardista para a época, pela utilização de pedras preciosas e pelo desenho em geral, repleto de pormenores meticulosamente trabalhados. Uma mestria árabe que diz muito sobre a convivência ecuménica da altura. No reverso, apresenta ao centro o “Agnus Dei” – o cordeiro, símbolo do sacrifício e da morte de Cristo, mas de pé, já ressuscitado.

As extremidades dos braços, outra raridade, são em forma de flor-de-lis, em filigrana, e representam os símbolos dos quatro evangelistas: a águia, de São João, o leão, de São Marcos, o touro, de São Lucas, o Anjo, de São Mateus. Em tudo esta cruz se distancia das demais, conhecidas como “patadas”, que se faziam naqueles anos.

Outro dos elementos que sustenta o lado extraordinário é o facto de a data inscrita na cruz estar já de acordo com o calendário gregoriano, utilizado nos dias de hoje, mas demasiado moderno para a época. Apesar de tudo, a grande relíquia era na verdade um fragmento de madeira que albergava no centro.

Um pedaço do Santo Lenho, onde se acredita que Cristo tenha sido crucificado, que D. Afonso Henriques tinha tomado ao seu primo, Afonso VII de Castela, na batalha de Veiga de Valdevez. Pedaço esse que foi dividido em dois, sendo que um deles acabou na cruz processional. Utilizada nas procissões da cidade, por exemplo, para sanar os ares da peste.

Esta é uma das raras peças da ourivesaria europeia do século XIII que chegou aos nossos dias quase intacta, apesar do atribulado percurso. A cruz fazia parte de um elaborado espólio que se guardava na cripta da Igreja de Santa Cruz. Assim se manteve até ao século XV, quando um dos priores do mosteiro resolveu empenhar a cruz para custear os estudos de um filho, na Universidade de Bolonha. Acabou resgatada, a expensas próprias, pelo prior que se seguiu. Mas, quando chegou, já não trazia o Santo Lenho.

Permaneceu, depois, guardada no santuário de Santa Cruz até à extinção das ordens religiosas, em 1834, altura em que recolheu à Casa da Moeda e depois ao cofre do Palácio das Necessidades. Em 1916, deu entrada no Museu Nacional de Arte Antiga, onde ainda hoje está. Como objeto-monumento. Como uma ode à independência do Reino de Portugal. Como contadora de 800 longos e atribulados anos de história.