Texto de Helena Teixeira da Silva
Ainda há uma torta tentação para evocar o passado do Rivoli quando se quer pesar o presente do Rivoli. A história é conhecida: 12 anos de estio, vazio, ocupação, rivolução a desenhar num tecido cultural outrora robusto uma cicatriz que o tempo atenua mas não apaga. Isolada, a obra erguida no Teatro Municipal do Porto depois de 2013 tem valor absoluto, mas comparada é incomensurável.
Esse exercício que oscila entre a comparação e a tentação, e a que muitos não conseguem resistir, não assiste, contudo, a Tiago Guedes – o rosto da reinvenção daquele equipamento. Até porque quando olha pelo retrovisor, o diretor artístico selecionado através de um concurso público no verão de 2014 vê sobretudo cinco anos rutilantes: quase 600 espetáculos apresentados, mais de seis mil atividades, 600 mil pessoas na plateia representando uma taxa média anual de ocupação de 90%, e o regresso de uma presença assídua e assediada dos artistas e das companhias da cidade no circuito internacional das artes.
Por isso, pela primeira vez em vários anos, é possível voltar a abordar o presente do Rivoli antecipando o seu futuro próximo e não discorrendo sobre o seu passado distante. Tréguas.
O Teatro Municipal do Porto, agora um corpo com dois braços – Rivoli e Campo Alegre – é hoje a respiração do coreógrafo que nasceu em Leiria há 41 anos. “É um teatro onde vamos para nos inquietarmos, para descobrirmos coisas novas, para olharmos o mundo através do olhar dos artistas.”
Um teatro, afirma o programador em conversa com a “Notícias Magazine”, um dia depois de ter chegado da Bienal de Dança Contemporânea da China, “não pode ser um sítio de passividade nem de confirmação; tem de ser um lugar que nos desafia, um lugar onde vamos para nos enriquecermos e não para nos entretermos.” E também não pode ser um lugar unidiscisplinar, porque é aí que reside o verdadeiro elitismo, considera.
“Quando só há um tipo de oferta artística, estamos a excluir todas as outras pessoas que querem ver todas as outras disciplinas. Por isso, pugnamos por uma programação diversificada e com estéticas muito diferenciadas, passando por várias áreas: dança, música, teatro e literatura.”
Obedecendo a estas premissas que, no seu entendimento, devem enformar um teatro público, Tiago Guedes faz um breve zoom à programação, na semana em que inaugura a sexta temporada com a sua impressão digital. Assim, se no ano passado revisitámos as criações da coreógrafa norte-americana Trisha Brown (1936-2017) e da lendária bailarina Lucinda Childs, que aos 79 anos derramou elegância ao vivo no Porto, este ano será apresentada uma retrospetiva do norte-americano Merce Cunningham (1919-2009).
“São três peças emblemáticas dançadas pelo Ballet de Lorraine, que poderão ser vistas em junho do próximo ano.” Mas já em setembro haverá uma incursão pelo novo flamenco do sevilhano Israel Galván (“La Fiesta”, dia 27), artista repetente no Rivoli; em outubro, a estreia de Hooman Sharif (“The dead live on in our dreams”, dias 18, 19 e 20), criador iraniano que desenvolveu todo o seu trabalho nos antípodas do Irão – na Noruega, e que aceitou o desafio de criar um espetáculo sobre a “necessidade de explorar o passado para mudar o futuro”; em novembro, o regresso do francês Phillippe Quesne (“Crash Park, la vie d’une île”, dias 15 e 16), com uma criação a lembrar “Lost”, a série que documenta a vida dos sobreviventes após a queda de um avião numa ilha deserta, mas aqui com mais poesia e filosofia do que suspense e ficção científica; e a apresentação histórica do trabalho da ativista chinesa Wen Hui em parceria com a checoslovaca Java Svobodová (“Ordinary People”, dia 29), as duas partilhando uma história política idêntica, a do sistema totalitário comunista. Já em 2020, uma exibição da “floresta coreográfica” do francês Boris Charmatz (“10000 Gestes”, 15 de fevereiro) e, durante toda a temporada, uma coleção extensa de criações de companhias do Porto e do país: de Victor Hugo Pontes a Joana Providência e Maria do Céu Ribeiro, da Teatro de Praga às Visões Úteis. É apenas uma amostra.
“É a reposição de uma certa normalidade”, defende Tiago Guedes. “É normal que uma cidade como o Porto, segunda maior cidade do país, que foi Capital Europeia da Cultura, tenha uma programação internacional de qualidade elevada, que é especialmente forte em dança porque funciona em complementaridade com outras instituições da cidade, e que está muito ligada às companhias e aos artistas locais, a nível de apresentação e coprodução.”
Aficionado de festivais – “Têm uma dinâmica de contaminação de que gosto muito”, justifica -, o programador desenhou também o Dias da Dança (DDD), cuja quarta edição acontecerá pelo segundo ano consecutivo de mãos dadas com o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI). A energia deste certame tornou-se indissociável da cidade – e das cidades à volta, como Gaia e Matosinhos, sendo que este ano haverá mais extensões a novas cidades. Tudo encaixado numa maratona que inclui programas paralelos de workshops, colóquios e conferências, com especial destaque para o ciclo “Modos de ocupar” comissariado pelo jornalista Pedro Santos Guerreiro.
O programa de artistas associados, que na temporada anterior catapultou Marco da Silva Ferreira, na dança, e Jorge Andrade, no teatro, também sofre uma evolução nesta edição. “Transformámos o programa numa coisa chamada JAA! – Jovens Artistas Associados!, em que nenhum tem mais de 25 anos. Já não é apenas uma programação de acompanhamento e apresentação, mas também de formação. Vamos lançar-lhes desafios e vice-versa.” Os eleitos são a bailarina Ana Isabel Castro e a dupla de artistas Guilherme de Sousa e Pedro de Azevedo, um mais do teatro físico e outro mais da coreografia. Os três serão acompanhados durante dois anos.
A “contemporaneidade”, o “questionamento”, a “abertura ao mundo” e a “comunicação com as companhias e as estruturas locais” será a marca de água da atuação e da programação de Tiago Guedes, cuja linha de continuidade já deu frutos. “O Rivoli tem hoje um enorme reconhecimento e visibilidade internacional”, orgulha-se.
“Fazemos parte de redes internacionais em Atenas, Lyon, Bruxelas ou Madrid.” Mas esta corrente elétrica tem-lhe valido também algumas críticas, nomeadamente a de o Rivoli provoca um efeito-eucalipto, secando tudo à volta. O diretor artístico do Teatro Municipal concede que faltam estruturas de média escala na cidade, algures entre a garagem e a instituição”, mas rejeita que essa ausência seja responsabilidade sua. “Não podemos colmatar tudo, se não teríamos uma atitude totalitarista em relação a todas as escalas.”
Programar também é criar
Quando, em 2013, abriu o concurso o para a direção artística do Rivoli, Tiago Guedes tinha apenas 36 anos. E atrás dele já um longo percurso como intérprete, coreógrafo e sobretudo programador. E um exótico domínio na arte de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Estudou música até aos 16 anos, depois dança. E depois hesitou entre Comunicação Social e Dança profissional.
Na dúvida, candidatou-se aos dois cursos e foi admitido nos dois. Mas a dança acabaria por prevalecer. Forma-se como intérprete e coreógrafo na Escola Superior de Dança, em Lisboa, participa em trabalhos de Francisco Camacho, Miguel Pereira ou João Fiadeiro (de quem também foi assistente), mas rapidamente começa a investir nas suas próprias criações.
Tem 24 anos quando estreia “Um Solo” (2002), peça multipremiada “sobre um homem sozinho a construir o seu espaço privado”, que haveria de andar em digressão dez anos (e a que regressou há dois meses, “por homenagem e gratidão” a Fiadeiro, forçado a encerrar as instalações da companhia RE.AL). No ano seguinte, tudo se repete, novos prémios, nova digressão, com “Materiais Diversos”, peça que daria nome à associação e ao festival que haveria de fundar.
A vida do criador desenrolava-se, veloz, numa sucessão imparável de múltiplas faces. Entre 2006 e 2008 tornava-se artista associado do Théâtre Le Vivat, em França. Ao mesmo tempo era desafiado para pensar numa curadoria e era arrebatado por uma espécie de epifania. “Percebi que um projeto de programação também é um projeto artístico. E comecei a ter menos interesse nas minhas criações quando comecei a entusiasmar-me com o potencial destes projetos colaborativos.”
Terminado esse período, novo cruzamento: “Tinha de decidir se queria ser um artista não francês em França, ou se queria voltar ao meu país e, com algum espírito de missão e incerteza, fazer o caminho em Portugal”. Optou pelo que diz ter sido “um salto no abismo”. “Montei o festival Materiais Diversos, com um desafio adicional: não me interessava um projeto num grande centro urbano, como Lisboa ou Porto, mas pensá-lo num lugar mais pequeno, desmistificando uma questão que para mim é muito importante: a arte tem de ser para todos, assim seja bem escolhida, bem mediada e bem comunicada.”
O festival nasceu em Minde, “uma pequena freguesia do minúsculo concelho de Alcanena”, na região do Ribatejo. E ali cresceu “com uma programação internacional de grande qualidade (Raimund Hoghe foi ali apresentado várias vezes), mas feita de forma completamente caseira, com os artistas a dormirem em casa dos amigos e a comerem em casa dos seus avós.”
“Milito mesmo pela quebra do elitismo na arte, pela democratização ao seu acesso e pelo poder que a arte tem de aproximar as pessoas. E acredito que as pessoas daquela região tinham tanto direito e tanto interesse em ver artistas de Paris ou Berlim como as pessoas das grandes metrópoles.” E tinha razão. Um ano depois estava a ser desafiado para dirigir o Teatro Municipal de Alcanena, o Cine-Teatro São Pedro.
E três anos mais tarde aceitava um convite numa nova escala, para dirigir o Teatro Virgínia, em Torres Novas, um polo cultural importante da região centro, onde ficaria dois anos. Até ser selecionado para o Teatro Rivoli. “Não havia direção artística nem máquina em andamento. Podia parecer difícil fazer tudo de raiz, mas foi isso que me entusiasmou. Havia uma página em branco. Não se tratava de reescrever o projeto da Isabel Alves Costa (primeira diretora artística do Rivoli), mas de escrever um novo capítulo para a cidade com um novo contexto político e cultural”, lembra.
“Foi muito doloroso deixar o festival Materiais Diversos, que criei como se fosse um filho na minha terra. Mas quis dedicar-me a 100% ao Porto e a desenhar um projeto para um equipamento com um peso social e cultural enorme. O Rivoli tem uma história construída em 1932, acompanhou as suas revoluções, as suas estéticas e eu sinto uma enorme responsabilidade na direção”. Por outro lado, “construir um projeto de cidade taco a taco com os seus dirigentes políticos é um privilégio raro. Sentir que organicamente toda a gente está sintonizada, e que o nível de exigência é elevadíssimo faz-me querer honrar isso.”
Tiago Guedes partilha o que o que o seduz na consecutiva mudança que foi trilhando desde a adolescência – “o desafio”. E o que o prende aos projetos que aceita – “a liberdade”. Por isso, e apesar de o seu nome ter-se tornado incontornável quando se trata de especular sobre cargos futuros, nomeadamente governativos e ou em instituições culturais internacionais, a sua resposta é simples: “Digo muitas vezes aos meus colegas estrangeiros que o que se passa no Porto, em termos de condições de trabalho, é verdadeiramente excecional. Não porque haja condições milionárias – o orçamento artístico anual é de 1,7 milhões de euros -, mas porque existe um presidente de Câmara, Rui Moreira, que é também o vereador da Cultura, que fez da cultura uma bandeira política – o que é raro quando se quer ganhar cidades ou países -, acreditou veementemente que o seu programa para a cultura era o certo e iria vingar. E fê-lo, e continua a fazer, dando total liberdade a quem programa, sem qualquer tipo de indicação ou ingerência.” Donde, sublinha, sente que nunca foi “tão feliz a nível profissional”.
“Se um dia surgir um convite para outros projetos, terei de refletir. Mas a mudança terá sempre de obedecer àquilo a que sempre fui leal, um desafio maior do que o anterior. E, neste momento, vinculado como estou ao projeto, à equipa e à diretriz política com a qual me identifico, não estou a ver o que possa fazer-me mudar.”