Testes de autodiagnóstico: o que pode correr mal?

As prateleiras das farmácias estão cheias de kits de rastreio de uso doméstico e venda livre. Uma verdadeira ode ao faça você mesmo em saúde. Toda a gente os pode comprar e levar para casa. O problema, explicam os médicos, é que muitos trazem mais riscos do que benefícios.

Deteção da deficiência em ferro da bactéria Helicobacter pylori no estômago. De sangue oculto nas fezes. De hipotiroidismo. De alergias alimentares. Dos valores de PSA da próstata. De infeções urinárias, vaginais e bacterianas durante um estado gripal. Estes são exemplos de uma panóplia cada vez mais vasta de kits de autodiagnóstico que podem ser comprados na farmácia, com preços entre os 10 e os 20 euros e resultados prontos em poucos minutos.

Os folhetos informativos alertam que os resultados positivos podem ter causas inofensivas, os negativos nem sempre significam que não exista um problema, e que o diagnóstico final deve ser feito por um médico. Apesar disso, dizem também que são uma forma rápida e fiável de saber o estado de saúde em relação a estas condições e, em alguns casos, declaram que devem ser repetidos regularmente, de forma preventiva.

Mas os factos, de acordo com os médicos, são outros. “Não vejo vantagens na realização de nenhum destes testes. Os exames existem para afunilar hipóteses de diagnóstico e não para gerar hipóteses de diagnóstico. E o resultado de um teste em si mesmo raramente ‘faz’ um diagnóstico”, defende Bruno Heleno, médico de família e docente da NOVA Medical School, em Lisboa.

A verdade é que os meios complementares de diagnóstico são, como o nome indica, isso mesmo: complementares. “Deve haver hipóteses de diagnóstico prévias que determinam a pertinência de realizar testes. Desligados do quadro clínico e dos achados do exame físico têm geralmente pouco valor e podem gerar muita confusão”, reforça Catarina Viegas Dias, médica de família, docente afiliada e investigadora clínica na NOVA Medical School.

Sabe-se, de resto, que o sobrediagnóstico e os falsos positivos podem causar problemas graves, o que levou a Ordem dos Médicos a promover a campanha “Choosing Wisely – Escolhas Criteriosas em Saúde” que, diz Catarina Viegas Dias, pretende “alertar profissionais de saúde e utentes sobre os riscos de fazer testes e tratamentos desnecessários, que trazem mais prejuízo do que benefício, como é o caso de tratar bactérias na urina quando não há sintomas ou fazer radiografias de tórax em utentes saudáveis e sem queixas”.

“Não vejo vantagens na realização de nenhum destes testes. Os exames existem para afunilar hipóteses de diagnóstico e não para gerar hipóteses de diagnóstico.” (Bruno Heleno, médico de família)

A investigadora considera que “não faz sentido” que testes de deteção de sangue oculto nas fezes, deficiência em ferro ou hipotiroidismo sejam de venda livre e “desligados” de uma avaliação médica. “Ainda que, no melhor dos cenários, a sua acuidade diagnóstica fosse idêntica às análises laboratoriais, os riscos mantêm-se e torna-se muito mais fácil fazer exames que temos indicação para não fazer. Por exemplo, não devemos testar deficiência de ferro se não estamos perante uma anemia.”

Tudo o que pode correr mal

Em Portugal, a comercialização destes testes é regulada pelo artigo 67.º do decreto-Lei n.ºº145/2009, relativo a “Dispositivos para diagnóstico in vitro de autodiagnóstico”. O artigo define que estes só podem ser disponibilizados em farmácias ou parafarmácias e que, aquando da dispensa, deve ser fornecida informação que alerte para a utilização adequada, a possibilidade de falsos positivos ou negativos, e ainda no sentido de não serem adotadas quaisquer medidas médicas sem consultar um profissional de saúde. A entrada no mercado desses dispositivos cabe ao Infarmed, que deve assegurar que os testes cumprem os requisitos legais, não comprometendo a saúde e segurança dos doentes.

Mas fará sentido vender kits que configuram uma espécie de meios complementares de diagnóstico faça você mesmo? Uma coisa é certa: há exemplos de situações em que a saúde dos doentes pode mesmo sair prejudicada. O problema destes testes, refere Bruno Heleno, “é que não existe integração dos resultados dentro do conjunto das queixas da pessoa. Isso significa, que podem levar ao atraso no diagnóstico ou deixar as pessoas alarmadas desnecessariamente”.

Esse duplo perigo é claro, no caso do teste de deteção da Helicobacter pylori, uma bactéria que pode causar sintomas como enfartamento e digestões difíceis. “Há mais causas para estes sintomas e há pessoas que pela idade, história familiar ou queixas devem fazer com brevidade uma endoscopia. Fazer este tipo de teste [com um resultado negativo] pode dar uma sensação de falsa segurança”, exemplifica o médico.

Por outro lado, os testes à venda podem apresentar muitos falsos positivos: “A deteção baseia-se num anticorpo contra a bactéria e uma pessoa que já teve a infeção e fez um tratamento com antibiótico para a erradicar vai continuar a ter anticorpos em circulação, logo, o teste continua a ser positivo”.

Mas há outros exemplos de como podem atrasar o diagnóstico e tratamento. “Uma infeção vaginal pode dar queixas parecidas com uma infeção urinária. Nessa circunstância, um teste de autodiagnóstico de infeção urinária negativo não exclui a necessidade de tratamento. O que aconteceu foi ter-se escolhido um teste para a doença errada”, explica Bruno Heleno.

“Não faz sentido que testes de deteção de sangue oculto nas fezes, deficiência em ferro ou hipotiroidismo sejam de venda livre e desligados de uma avaliação médica” (Catarina Viegas Dias, médica de família)

A médica Catarina Viegas Dias concede que há casos muito específicos em que os testes auto-aplicados podem ser uma mais-valia, citando uma revisão sistemática que mostra que a automonitorização da coagulação em doentes tratados com anticoagulantes diminui a ocorrência de eventos trombóticos. Mas estas mais-valias só podem ser aferidas depois de ser tudo rigorosamente testado. “Onde está a prova que sustenta os restantes testes? Não encontrei.”

As “intolerâncias” e a infertilidade

Também os testes de alergias e intolerâncias alimentares na versão leve-e-faça-em-casa se popularizaram. Estes kits, por norma com valores que rondam os 80/100 euros, prometem medir a “intolerância” do corpo a dezenas de alimentos. Assim que começaram a ser comercializados, a Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica (SPAIC) emitiu um comunicado muito claro, desaconselhando-os fortemente, frisando que “não têm qualquer fundamentação científica” e implicam riscos a nível individual e de saúde pública.

Mário Morais de Almeida, imunoalergologista do Centro de Alergia da CUF, em Lisboa, esteve envolvido no comunicado da SPAIC e garante que ele se mantém atual, já que os médicos são constantemente confrontados com resultados destes testes sanguíneos “em que se avaliam anticorpos IgG4 específicos que traduzem apenas uma exposição prévia ao alimento, isto é, uma resposta normal do nosso organismo”.

Isto origina um número elevado de falsos positivos, com resultados dramáticos. “As consequências podem ser de extrema gravidade, levando a significativas restrições ou modificações dietéticas com um impacto nutricional, metabólico e na qualidade de vida. A situação é ainda mais grave quando envolve grupos sensíveis, como crianças, idosos ou pessoas com doenças crónicas.”

A exceção à regra no que toca a testes domésticos parece ser a área da fertilidade. Para casais que estão a tentar engravidar, o teste de ovulação digital que faz a medição da hormona luteinizante (LH) demonstra ser útil na previsão dos dias férteis sem aumentar os níveis de stresse das mulheres que os usam. Também os autotestes de fertilidade masculina podem ser uma ajuda.

“Avaliam a concentração de espermatozoides e, no caso dos mais recentes, também a sua mobilidade, os dois parâmetros mais importantes para a avaliação do potencial fértil masculino”, especifica Susana Alves, diretora do Laboratório de Andrologia das clínicas IVI, em Lisboa.

A especialista acredita que podem ser úteis para casais que, numa fase inicial, não conseguem engravidar e sentem ansiedade. “São simples, práticos e com uma fiabilidade que ronda os 90%. Perante um resultado anómalo, o casal poderá evitar o prolongamento – e por vezes, o agravamento – da infertilidade, recorrendo a um médico especialista”, conclui.