Tarcísio Feitosa da Silva: “Um ativista no Brasil anda sempre com um alvo nas costas”

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Entrevista de Pedro Emanuel Santos

Apresenta-se como filho de seringueira e catador de caranguejo. Brasileiro, natural do Estado do Pará, fez parte da Comissão Pastoral da Terra, que defende os povos e a floresta da Amazónia. Recebeu, em 2006, o prémio Goldman pelo papel desempenhado nessa luta. Ameaçado de morte, foi obrigado a mudar-se para o Rio de Janeiro. Licenciado em Ciências Exatas e Naturais, mestre em Agricultura Familiar e Sustentável e graduado em Direito, Tarcísio Feitosa da Silva, 49 anos, faz da coragem mote de vida.

Os incêndios de agosto na Amazónia atingiram proporções descomunais. Ficou surpreendido tanto com a dimensão como com as consequências dos fogos?
Agosto não é o mês tradicional de queimadas na Amazónia, mas entre final de setembro e o início de outubro, quando se dá a chamada reforma de pasto para que esse pasto seja modificado e depois replantado. O que aconteceu foi algo planeado, preparado e provocado. Todas as provas mostram isso. Há uma quantidade muito grande de floresta amazónica que não tem destino, são as chamadas florestas desprotegidas e que abrangem 600 mil metros quadrados, cerca de seis vezes e meia a área de Portugal.

O que são florestas desprotegidas?
São florestas públicas que não são terras indígenas nem têm qualquer uso atribuído para proteção da biodiversidade. O Estado brasileiro é dono mas não as consegue proteger. E foi aí que o fogo foi provocado.

Havia sinais nesse sentido?
Sim, nomeadamente no âmbito da especulação de terras. Quando tal acontece, o primeiro sinal é a retirada das madeiras nobres, o segundo sinal é a retirada das madeiras secundárias, o terceiro sinal é o fogo, quando essas áreas são limpas para converter o que sobrou da floresta em áreas destinadas a agricultura, pastagem ou soja. Foi exatamente isso que recentemente aconteceu na Amazónia.

Já é possível perceber exatamente as consequências desses incêndios brutais?
Como esta foi uma queimada extraordinária num período nada habitual, houve uma quantidade imensa de emissões poluentes para a atmosfera que ainda está por calcular. Quarenta por cento desses focos de calor ocorreram precisamente na direção dos tais 600 mil metros quadrados de floresta desprotegida. Como tal, existe uma circunstância nova a acontecer.

Portanto, queimadas na Amazónia são habituais mas nunca com a dimensão das ocorridas neste ano?
Exatamente, até porque as de agosto, como disse, não são habituais e foram deliberadas. Que se queima na Amazónia isso sempre se queimou, mas nunca neste volume.

Mas por que razão se escolheu agosto e não outro mês qualquer para provocar esses incêndios?
Porque havia um clima político para isso. O Governo de Jair Bolsonaro, que tem responsabilidades diretas e indiretas sobre tudo o que aconteceu na Amazónia, privilegia a não fiscalização e até a proibição de fiscalização das áreas protegidas da Amazónia. Bolsonaro disse isso várias vezes na sua conta oficial do Twitter. Sempre condenou as ações do IBAMA [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e deu poderes a agricultores e produtores interessados nessas áreas.

“O Governo de Jair Bolsonaro, que tem responsabilidades diretas e indiretas sobre tudo o que aconteceu na Amazónia, privilegia a não fiscalização e até a proibição de fiscalização das áreas protegidas da Amazónia.”

Jair Bolsonaro é autor moral dos incêndios na Amazónia?
Os incêndios foram consequência prática do que Bolsonaro planeou quando adotou o discurso de retomar o que fora realizado na Amazónia pela Ditadura Militar, durante a década de 1970: pecuária e plantações extensivas, abertura de estradas no meio da floresta, áreas de mineração – os chamados garimpos. Isso tudo contribuiu muito para os fogos na Amazónia. A violência, as mortes nos campos, até o tipo de reforma agrária que o Governo Militar encetou então foram em tudo idênticas ao que agora foi recriado por Bolsonaro.

Portanto, é um caminho sem retorno, uma estratégia política pensada e deliberada?
Se isto continuar no futuro será o colapso. Há uma tese muito interessante do professor Carlos Nobre, um cientista brasileiro especialista em temas relacionados com o aquecimento global, em que ele fala do ponto de savanização da Amazónia.

De savanização?
Sim. Se se chegar a um determinado ponto de floresta destruída, o que restará da Amazónia tornar-se-á savana. E tal terá um impacto relevante para o clima do Mundo, além das toneladas e toneladas de emissões para a atmosfera, claro. Esta tese é muito interessante porque estamos a chegar a esse ponto. A savanização da Amazónia é um processo sem retorno. Basta ver que o Saara, em África, era antes uma floresta, passou por um processo de savana e hoje é um deserto. Inclusivamente, o Brasil e o Saara estão exatamente na mesma linha dos trópicos.

Se o pior cenário se confirmar, a Amazónia torna-se savana daqui a quantos anos?
É preciso monitorizar cenários. Mas, pelos estudos do professor Carlos Nobre, há a certeza que esse risco é uma certeza se esta política não for parada a tempo. A floresta tem uma relação muito interessante entre si, ela ajuda-se mutuamente. Quando uma árvore é derrubada, essa árvore fica desprotegida e todas as outras à volta ficam desprotegidas. Imagine-se uma linha de árvores rodeada por campos de agricultura. A tendência é para que essas árvores vão caindo e deixe de existir o tal ciclo de ajuda.

Como é que se faz ver a um homem como Bolsonaro, que tem demonstrado pouco ou nenhum respeito pelo ambiente e pelas consequências das suas políticas, que há que alterar o paradigma?
O presidente Bolsonaro e a sua equipa negam a existência de mudanças climáticas. Aliás, na linha do que defende Donald Trump, embora com uma diferença fundamental: enquanto os Estados Unidos da América são um país organizado por estados quase independentes entre si, em que o Governo não tem muita intervenção, no Brasil os estados são muito dependentes da Presidência da República.

Daí a tal estratégia política intencional por parte de Bolsonaro?
Claro. Porque ele tem um plano para a Amazónia que passa, lá está, por ressuscitar aquilo que faliu com os militares na década de 1970. O rastilho do desmatamento é exatamente esse.

O ativismo social, e até político, pode ter um papel importante para travar o desastre anunciado na Amazónia?
Um dos ataques que Bolsonaro fez foi exatamente aos movimentos sociais e às Organizações Não Governamentais (ONG) que atuam na Amazónia. E isso vai ter um impacto. Entre 2002 e 2018 foram assassinados 653 ativistas.

Já foi ameaçado de morte?
Recebi, por exemplo, uma carta em que vinha descrito o depoimento de um pistoleiro que garantia que eu iria ser assassinado. Tive proteção policial entre 2004 e 2005 e em 2006 saí da minha região, o Xingu, na região amazónica do estado do Pará.

Foi obrigado a mudar-se para onde?
Primeiro, fui para Belém, capital do Pará, e desde há dois anos que estou a viver no Rio de Janeiro.

“A savanização da Amazónia é um processo sem retorno. Basta ver que o Saara, em África, era antes uma floresta, passou por um processo de savana e hoje é um deserto.”

Sente-se mais seguro no Rio de Janeiro?
Quando não se está na frente de fogo, digamos, existe um pouco mais de segurança. Mas os outros ativistas, os que ficam, estão sempre em perigo. É preciso um sistema de proteção para os ativistas, que hoje não existe. O que existe, sim, é um programa de proteção gerido pelo Governo. Dá para imaginar Bolsonaro a proteger ativistas?

Considera-se (ainda) ameaçado? Sente medo?
Um ativista no Brasil anda sempre com um alvo nas costas. É um alvo preferencial, especialmente se falarmos da Amazónia. Claro que sinto medo de morrer. Medo por mim, pela minha família – sou casado e tenho dois filhos – e também pelos amigos que estão na mesma luta. É muito assustador saber que de um momento para o outro se vai receber um telefonema a dizer que vamos morrer.

Que papel pode ter a comunidade internacional, nomeadamente a Europa, na proteção da Amazónia e de quem defende a Amazónia?
A Europa tem um papel fundamental. Por exemplo, em vez de comprar carne de origem de área desmatada da Amazónia, poderia importar carne proveniente de áreas de recuperação de solo. O mesmo com os Estados Unidos e a China, outros grandes consumidores. Hoje, o Brasil tem 140 milhões de hectares de área degradada. É solo que poderia estar a ser recuperado e não está. Se tal acontecesse, não seria necessário mexer num palmo de área de floresta na Amazónia. É uma questão de estratégia e de opção. Afinal, queremos que o Mundo acabe ou não? A Europa e o Mundo têm que fazer essa pergunta.

Tal estratégia enfraqueceria Bolsonaro? Teria impactos diretos na própria economia do Brasil?
Isso é bem interessante. Quando chegou ao poder, Jair Bolsonaro anunciou que iria juntar os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Quem protestou não foram os ecologistas mas os produtores rurais, que disseram claramente: “Se o presidente fizer isso nós poderemos ter retaliações por parte do mercado internacional”. E o que fez Bolsonaro? Separou os dois ministérios. A Europa, que consome a madeira e a carne do Brasil, e a China, que consome soja brasileira, precisam de pensar em como mudar o seu comportamento.

“Hoje, o Brasil tem 140 milhões de hectares de área degradada. É solo que poderia estar a ser recuperado e não está. Se tal acontecesse, não seria necessário mexer num palmo de área de floresta na Amazónia.”

Acha que esse conceito poderá ser alterado a breve trecho, sobretudo agora que os incêndios na Amazónia foram assunto dominante a nível internacional?
Claro que não será de um dia para o outro. Mas num primeiro ano importar-se-iam 10% dos produtos provenientes de áreas de agroecologia ou de áreas onde o solo foi recuperado e de produção de gado sustentado. E por aí fora. Para cada quilo de carne consumida per capita são destruídos 214 metros quadrados de floresta. O Brasil consome 27 quilos por ano, os EUA 24, a China quatro, enquanto a média mundial são sete quilos. Há que modificar esse estado de coisas e discutir as várias técnicas de produção possíveis para continuar com o mesmo volume de produção mas com menos impacto ambiental.

E é possível?
O problema é que não resta mais tempo. Se queremos continuar a viver neste planeta é nisso que temos de pensar. Não há planeta B. Pode haver uma catástrofe se o atual comportamento ambiental persistir.