Três mulheres contam a experiência de um fenómeno que é considerado crime, mas cuja lei apresentava uma falha: os perseguidos não eram protegidos dos perseguidores antes do julgamento. A resolução está para breve, no Parlamento.
“Prestável, educado, dócil, cavalheiro e interessado” são algumas características que Ana aponta ao ex-namorado antes do relacionamento. Hoje descreve o homem com quem se envolveu durante três anos como “sociopata, ditador, controlador, possessivo e obsessivo”.
Ana é o nome escolhido por esta advogada lisboeta, de 40 anos, para preservar a identidade, e entre uma e outra descrição cabe uma história pouco agradável com continuidade mesmo após o ponto final.
“Revelou-se uma pessoa totalmente diferente, escrutinava a minha vida e fazia cenas de ciúmes tremendas. Cheguei a pensar, erradamente, que esse comportamento fosse motivado pela diferença de idades ou pelo facto de estarmos separados durante temporadas, pois, por motivos profissionais, ele viajava imenso”, justifica, afirmando que começou a ser perseguida depois de ter terminado. “Como constatou que eu não voltava, iniciou uma perseguição virtual.”
A difamação era o objetivo deste homem ao fazer montagens com fotografias da antiga namorada para usar num perfil falso fazendo-se passar pela própria. “Certo dia, um amigo perguntou-me por que motivo tinha eu dois perfis no Facebook, sendo um deles ‘demasiado estranho’. Procurei e não encontrei porque estava bloqueada mas, através da conta de uma amiga que ele tinha adicionado, consegui visualizar e fiquei horrorizada. Tinha imensas fotos adulteradas, algumas com facas e sangue”, recorda Ana.
“Comecei a receber imensas mensagens ligadas a sites de pornografia. Fui inscrita nessas páginas.” Durante muito tempo, a advogada viveu aterrorizada, olhando sempre “por cima do ombro” e sentindo que “estava constantemente sujeita a chantagem e terrorismo emocionais”.
Ana foi vítima de stalking ou assédio persistente, “uma forma de violência em que uma pessoa impõe sobre outra de forma persistente um conjunto de comportamentos de assédio que são indesejados e/ou intrusivos”, define a APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.
“Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”
Em 2010, o Grupo de Investigação sobre Stalking em Portugal (GISP) da Escola de Psicologia da Universidade do Minho foi criado num contexto de investigação na área da vitimologia. “Captámos uma série de comportamentos que configuravam perseguição. Por outro lado, havia um vazio nacional: um estudo da União Europeia concluía que não existia stalking em Portugal, o que significava que não havia qualquer palavra correspondente ao fenómeno, nem dados da prevalência, nem legislação”, explica a coordenadora do GISP, Marlene Matos, que é também professora de Psicologia e de Criminologia.
A docente coordenou o primeiro e único estudo que dá um retrato português do fenómeno. Concluído em 2011, mostra que 19,5% das pessoas foram vítimas de stalking em algum momento da vida, sendo a prevalência maior nas mulheres (25%) do que nos homens (13%). Foi no grupo etário dos 16 aos 29 anos que se registou um maior número de vítimas (26,7%); 40% disseram que o stalker era uma pessoa conhecida, enquanto 24,8% não conheciam; os parceiros ou ex-parceiros representaram 31,6% dos casos e destes, 50,7% ocorreram depois da relação terminada, 20,5% durante o relacionamento. “Esta consciencialização conduziu à criminalização”, frisa Marlene Matos.
Quatro anos depois deste estudo, o stalking passou a integrar os crimes contra a liberdade pessoal. A tipificação da perseguição consta na Lei n.º 83/2015 de agosto de 2015, Artigo 154.º – A do Código Penal, que refere “quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.
Frederico Marques, jurista e coordenador de operações da APAV, esclarece que “o legislador português tipificou o crime em termos gerais, sem recurso a exemplos, e terá de ser o aplicador da lei a verificar se os critérios estão preenchidos com base em determinados elementos”.
Especifica como os principais elementos deste tipo de crime a perseguição ou assédio, incluindo estabelecer comunicação com a vítima, reiteradamente e com capacidade para causar inquietação ou medo. A tentativa é igualmente punível por lei, podendo ser aplicadas “penas acessórias de proibição de contacto com a vítima” por períodos de seis meses a três anos.
Todavia, “não estavam previstas medidas de afastamento do agressor que pudessem ser aplicadas antes de o julgamento terminar”, aponta o jurista. Ou seja, as vítimas deste crime estiveram durante três anos expostas aos criminosos, na fase anterior ao julgamento, devido a uma falha na lei denunciada pelo “Jornal de Notícias” em dezembro último, que motivou a intervenção do PCP e, depois, do BE e do PAN.
Está, assim, em curso no Parlamento uma iniciativa legislativa que vai permitir a proibição de contactos entre perseguidores e perseguidos antes do julgamento. Também se prevê o alargamento do serviço de teleassistência, que até à data existia apenas para vítimas de violência doméstica. O relatório dos projetos de lei dos três partidos já foi aprovado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, seguiu para debate em plenário e, atendendo à posição manifestada, a aprovação está garantida.
“Colocaram o meu nome a sugerir que fosse violada”
As redes sociais aumentam a vulnerabilidade das vítimas, mas Tito de Morais, fundador do projeto MiudosSegurosNa.Net, acredita que é a Internet no geral a facilitar o “doxxing” (isto é, a recolha e divulgação de dados pessoais de terceiros). Tito de Morais é procurado pontualmente por vítimas em busca de apoio, sobretudo mulheres e figuras públicas.
É muito frequente os artistas serem perseguidos e o livro “És Meu, Disse Ela”, de António Manuel Ribeiro, vocalista do UHF, retrata exaustivamente a perseguição de que foi alvo entre 2003 e 2012 por Cristina/82, uma fã que inclusive o tentou atropelar. A vivência chega ao cinema em 2020 sob a realização de Jorge Paixão da Costa, que lançou o desafio ao músico de fazer de si próprio.
O mais importante é não minimizar o que está a acontecer e, perante um perseguidor, “cessar a comunicação, reunir provas e alterar rotinas”
Margarida é o nome fictício de uma mulher de 45 anos que fechou todas as contas de redes sociais. Uma medida que surgiu na sequência de uma perseguição por motivos ideológicos, que aconteceu em 2007 e 2008. Natural do sul do País, integrou um movimento pelo sim à interrupção voluntária da gravidez (IVG), deu entrevistas em prol da causa e depois do referendo começou a receber ameaças por SMS, email e redes sociais.
“Eram da extrema-direita, militantes do PNR e dos Hammerskins. Alguns eram funcionários públicos, do SEF e professores, estavam perfeitamente identificados, com nome e fotografia.” Nunca soube por quantas pessoas era perseguida e conta episódios chocantes: “Publicaram vídeos no YouTube com fotografias minhas e da minha casa, a minha morada e entrevistas que dei. Num fórum nacionalista, colocaram o meu nome a sugerir que fosse violada”.
Atualmente é psicoterapeuta de profissão e lembra que sentia muita ansiedade e teve agorafobia. “Evitava sair de casa, o médico prescreveu antidepressivos, e só em 2014, quando saí de Portugal, é que me senti livre, sem receio de me fazerem mal”, desabafa.
Frederico Marques apresenta quatro tipos de stalkers – ressentido (rejeitado numa relação); predador sexual; busca de intimidade (cria fantasias com figuras públicas, por exemplo); e revoltado (desejo de vingança) – capazes de provocar o “clima de medo, o desespero e o pânico” que Tito de Morais nota em quem o procura a pedir ajuda.
Marlene Matos garante que as vítimas vivem angustiadas, hipervigilantes, ansiosas, e sublinha que o stalking não é apenas incomodativo, “é algo persistente que pode ser muito intrusivo e disruptivo, comprometendo as vítimas ao nível da autonomia, liberdade de movimentos, perda de privacidade e, muitas vezes, de segurança”. Defende, por isso, que o mais importante é não minimizar o que está a acontecer e, perante um perseguidor, “cessar a comunicação, reunir provas e alterar rotinas”.
Margarida mudou radicalmente de vida, desde a morada à profissão, mas mantém o número. Ainda recebe chamadas a meio da noite que não atende e, em 2015, foi novamente ameaçada. “Fiz queixa na Polícia Judiciária (PJ) em 2007, mas senti que não fui levada a sério e não ouvi mais nada das autoridades.”
Ana também fez queixa à PJ mas os inspetores explicaram que a página “era dinamizada noutro país” e que, por isso, não podiam fazer nada. “Foram ineficazes e deram pouca importância. Ainda assim, consegui que o perfil fosse desativado, mas demorou mais de um ano. O Facebook não é célere e acaba por proteger mais o criminoso que a vítima. Ultrapassei a situação, mas nada me garante que ele deixe passar um tempo e retome a perseguição.”