Sophia de Mello Breyner: regresso à terra prometida

Foto: Eduardo Gageiro

Texto de Sérgio Almeida

A caminho acelerado da ruína, com a humidade a apoderar-se das paredes e um muro de tijolos a travar o acesso de visitas indesejadas, a Casa Branca pode já não fazer sequer jus ao nome que inspirou Sophia de Mello Breyner para o célebre poema inscrito no seu primeiro livro, “Poesia”, publicado em 1944.

Mas, para lá de toda a decadência que se lhe adivinha, a moradia situada mesmo em frente à Praia da Granja, em Vila Nova de Gaia, continua a ter um significado muito especial para a família de uma poetisa cujo centenário do nascimento é assinalado este ano através de um ambicioso programa comemorativo.

Agora como no seu apogeu, o “mar enorme” continua a estar a seus pés, tal como “o silêncio intacto em que dorme o milagre das coisas que eram minhas”, apesar de existirem já poucos vestígios do seu “jardim de areia e flores marinhas”,

“Estar aqui é como regressar a casa”, confidencia Maria Andresen Sousa Tavares, filha da escritora, durante uma visita realizada por ocasião de uma homenagem em Vila Nova de Gaia, da qual fazia parte um compromisso com simbolismo especial: a escolha exata do local onde deverá ser erigido um memorial de evocação da poetisa.

Mas Maria Andresen, também escritora e guardiã da obra da mãe, não veio só. A irmã Isabel, o sobrinho Pedro Sousa Tavares e a esposa, Sofia Barciela Borges, assim como os sobrinhos-netos Miguel e João acompanharam-na numa viagem com contornos mais emocionais do que físicos. Um passeio que atravessou três gerações, sob o signo da presença ausente de Sophia.

“Tinha quatro anos quando passei o primeiro verão na Granja. E ainda me lembro bem de tudo”, reforça Maria, que, por residir em Lisboa, visita o sempre familiar Norte “com menos assiduidade do que gostaria”. A prometida memória fotográfica pode denotar algum exagero, mas é tudo menos isso. A cada passo, no caminho entre a estação da Granja e a praia, a professora catedrática aposentada detém-se para partilhar uma memória ou uma confidência.

Mal atravessa o caminho de ferro, ao ver as obras de construção do que promete vir a ser (mais) um condomínio fechado, as memórias atropelam-se. “Era aqui a Assembleia!”, aponta, enfática, para a cratera gigantesca onde começam a ser erguidos os alicerces, aludindo ao clube privado onde todas as tardes e noites se encontravam os veraneantes.

Nos seus amplos salões, a que só acediam membros abastados ou famílias com passado nobre, como era o caso dos Andresen, tanto se discutia política como se jogava ténis e bridge ou se dançava até altas horas da noite.

O ambiente da Assembleia seria plasmado no conto “Praia”, no qual é descrito o quotidiano de um clube à beira-mar em que todos os membros estão demasiados absorvidos com o presente para se preocuparem com o futuro.

Não era esse o caso de Sophia, tão ligada ao seu mundo interior que muitos confundiam esse ar inacessível como uma mal dissimulada altivez. O mar era das poucas ligações ao concreto de que não abdicava. Apesar da bravura do mar, Maria Andresen lembra-se bem de como a mãe passava muito tempo na água. “Adorava tomar banho. Dizia-me muitas vezes que quando era solteira ia nadar para longe, mas curiosamente nunca a vi fora de pé.”

A “mais graciosa” estância balnear

Ao passar por uma das moradias da pacata rua que dá acesso à marginal, a irmã Isabel junta-se à conversa para partilhar outra memória. “Era nesta casa que morava o António Cálem, um dos maiores amigos da minha mãe. Sempre que a via passar, enquanto jogava ténis, saltava o muro para ir ter com ela”, recorda.

É de forma bem mais pausada que Isabel recorda o passado. Não por senti-lo menos próximo, mas porque, ao contrário dos irmãos, viveu quase toda a vida na Granja. Era ainda adolescente quando conheceu, durante as férias, o futuro marido e continuou a viver nas imediações da praia até ao presente, apesar de um breve período em que esteve na zona da Foz, no Porto, sem que se tenha conseguido adaptar. “É impossível passar por estas casas e por este mar sem me lembrar da minha juventude”, reclama, lembrando, porém, que a frequência das visitas atuais à beira-mar também se deve “a ordens médicas rigorosas” para caminhar o máximo que puder.

Maria Andresen, Isabel Andresen, os pequenos João e Miguel, Pedro Sousa Tavares e a esposa, Sofia Barciela Borges: três gerações de familiares de Sophia nas imediações da Casa Branca, na Granja. (Foto: Ivan del Val/Global Imagens)

As casas senhoriais que ladeiam a zona da praia não mudaram assim tanto desde a época em que os Andresen passavam temporadas inteiras na mais aristocrática das praias portuguesas, como a eternizou Ramalho Ortigão no último quartel do século XIX, em contraste absoluto com a dimensão mais popular e imediata da vizinha praia de Espinho.

“A mais graciosa, a mais fresca, a mais asseada das estâncias balneares de recreio do nosso país”, resumiu, com ênfase, o coautor de “O mistério da Estrada de Sintra” no folheto “Praias de Portugal”, de 1876.

Nos últimos anos, com o ressurgimento em força do imobiliário, têm sido várias as habitações recuperadas, o que veio permitir estancar a decadência em curso há décadas. Não foi o caso da incontornável Casa Branca, que, embora tenha sido comprada há uns anos por um abastado empresário como segunda habitação, aguarda ainda a mesma reabilitação que foi feita na moradia vizinha pertencente a familiares de Sophia.

“A Granja de Cima está muito estragada. A parte de baixo está um pouco melhor, mas chegaram a permitir a construção de um prédio já há muitos anos, o que nunca devia ter acontecido”, lamenta Isabel, conhecedora do rumo de uma terra à qual está ligada desde o berço.

Para todos os membros do clã, a Granja “sempre foi sinónimo de verão e da avó”, que todos adoravam. Essa ligação afetiva contribuiu para que a opção pelas férias na pequena povoação pertencente à freguesia de São Félix da Marinha tenha levado a melhor, durante incontáveis anos, sobre Moledo do Minho, “um local belíssimo mas ainda mais frio”.

“O alimento secreto” da Granja

Nas férias estivais, o tempo também parecia não ter fim. A água “muito fria”, como recorda Maria Andresen, não convidava a que nela se permanecesse por muito tempo, ainda por cima quando os banhistas eram brindados também com as tradicionais nortadas. Essas adversidades não chegavam para intimidar o grupo de amigos, composto por veraneantes mas também por moradores, que passavam a quase totalidade dos dias juntos. As amizades solidificavam-se durante o par de meses em que se encontravam e resistia até ao reencontro no ano seguinte.

Quando ir à praia ou molhar sequer os pés no mar era mesmo impossível, havia muitas outras opções de diversão, como as corridas, as partidas de ténis, as récitas, as tertúlias ou as guitarradas. “A vida social era muito intensa. Às tardes, estávamos na praia ou em jogos. À noite, havia os serões na Assembleia”, evoca Maria.

Na biografia dedicada à autora de “O rapaz de bronze”, publicada em maio pela Esfera dos Livros, Isabel Nery descreve o ambiente de “delírio fechado, como se vivessem rodeados de arame farpado”, em que viviam os chamados “granjolas”, nome (equivalente atual ao de “betinhos”) pelo qual eram depreciativamente conhecidos os moradores abastados e os veraneantes.

A terra, “cheia de cismas”, pode ter conseguido obrigar os comboios de passageiros a pararem na povoação desde 1864 em diante, como “contrapartida pela cedência de um terreno para a estação de caminhos de ferro”, mas nem por isso deixava de estar sujeita às difíceis condições de vida da época, “com falta de água, poços que secavam e hotéis que ficavam sem banhos se ninguém desse à bomba”.

Isabel Andresen (à direita) e Maria Andresen junto à Casa Branca. A moradia onde passaram férias durante mais de uma década inspirou a mãe, Sophia de Mello Breyner, na escrita de vários poemas. (Foto: Ivan del Val/Global Imagens)

Indiferente a esses problemas, Sophia de Mello Breyner confessava, aos 25 anos, numa carta dirigida a Miguel Torga, que “a Granja é o sítio do mundo de que eu mais gosto. Há aqui qualquer alimento secreto”.

Parte desse fascínio não era alheio ao facto de ter sido nessa estância de veraneio que conheceu Francisco Sousa Tavares, com quem esteve casada durante quatro décadas. A Xixa e o Tareco, como eram carinhosamente tratados por todos, tornaram-se inseparáveis. Além das conversas que mantinham durante horas, na praia e fora dela, eram presença assídua no amplo salão de dança da Assembleia, onde Sophia, leve e graciosa, impressionava sem dificuldade.

Consumado o enlace, o jovem casal decidiu, por razões económicas mas também afetivas, passar a lua de mel ali mesmo na Granja, na casa de um familiar próximo.

Berço da poesia

O local onde Sophia “passava apaixonadamente o verão” era definido pela própria como uma “terra prometida” à qual lhe ligavam vínculos muito fortes. O mar, na sua versão mais indómita, era a razão maior desse chamamento interior que viria a ganhar corpo na escrita.

A Granja está, por isso, presente na sua obra, de que são exemplos mais evidentes o já falado conto “A praia” ou o poema “Casa Branca”, que, como afirmou o seu amigo António Cálem, em 1970, devia ser gravado “em letras de oiro” nas paredes daquela moradia.

Cadernos recentes encontrados por Maria Andresen – dos quais fazem parte inéditos, como o que o “Jornal de Notícias” publicou no passado mês de junho – mostram que a Granja foi a sua primeira inspiração poética. “A minha memória mais antiga é de um quarto em frente ao mar, dentro do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e vermelha”, afirmou a autora em 1964, no discurso de agradecimento durante a cerimónia de entrega do Grande Prémio de Poesia pela obra “Livro sexto”.

Mas a pequena povoação nortenha foi também o local onde começou a escrever poemas, ainda mal tinha chegado à adolescência. A escrita, compulsiva, tanto podia acontecer na própria casa de férias como nos cafés das redondezas. “A Barraquinha” era um desses espaços, no qual Sophia permanecia horas sem fim, “virada para o mar e remetida ao silêncio, mas sempre a escrever”, como relembrou em entrevistas Maria José Santos, filha da concessionária de então.

A descoberta do Algarve, logo no início dos anos 60 do século passado, veio mudar tudo, tornando as idas à Granja cada vez mais raras, apesar das ligações familiares. “A água era muito mais quente e não fazia tanto frio”, justifica Isabel, que equipara o impacto da região algarvia na sua mãe à influência da Grécia.

Muito distante ainda da massificação turística que se iniciaria nos anos seguintes, o Algarve era uma região quase inexplorada que gozava de fraca reputação devido à ausência de comodidades. Ao fim de alguns anos a passarem férias na zona de Lagos, Sophia e a família adquiriram uma casa (conhecida como a Casa da Meia Praia, colocada à venda recentemente por 1,4 milhões de euros) que veio colocar um ponto final na incerteza existente todos os verões acerca de qual seria o destino das férias nesse ano.

No início, Sophia sentiu a mudança, confessando “a falta de cheiro a maresia, a iodo”, mas “os dias quentes” e “a cidade meticulosamente limpa, feita de gente honesta” que era Lagos, tudo mudou. “Ao contrário do que acontecia na Granja, havia convívio com intelectuais nessas temporadas no verão. O Cutileiro morava lá perto. Muitos escritores passavam por lá”, lembra Maria Andresen.

Presença eterna

A devoção de Sophia pela escrita e pelo mar estendeu-se aos descendentes. Jornalista como o pai, Miguel Sousa Tavares, Pedro reconhece que a forma como a avó via o Mundo “influenciou todos os que a rodeavam”. “A sua maneira de ser, a proximidade à natureza, vem claramente dela e tem passado de geração em geração.”

Aos dois filhos (Miguel, de 11 anos, e João, de nove) resultantes do casamento com a jornalista Sofia Barciela Borges, tenta “incutir os mesmos valores” defendidos pela avó.

Tão presente em Sophia, a ligação ao mar tem passado de geração em geração, garante Pedro Sousa Tavares, neto da poetisa, que visitou a Granja com a família (na imagem, com o filho Miguel, de 11 anos). (Foto: Ivan del Val/Global Imagens)

O esforço nem precisa de ser muito acentuado, porque o orgulho já é evidente. Leitor atento dos livros infantis, embora sem se aventurar pelos poemas, o pequeno Miguel não dispensa ouvir também as histórias frequentes sobre a bisavó, muitas delas relacionadas com as férias no norte. “Sei que muitos dos seus poemas foram escritos na Granja”, diz-nos, enquanto vai recolhendo pequenas pedras de uma praia que “é muito diferente” das que costuma frequentar, mais a sul”. Os colegas já sabem da sua “ligação especial”, mas Miguel prefere não fazer gáudio dessa prerrogativa. “É normal”, diz, de modo acanhado, sem esclarecer também se está disposto a prolongar uma herança literária que já vai em três gerações.

Além da bisavó e do avô, também o pai escreve. Há sete anos, Pedro Sousa Tavares foi desafiado a concluir um conto iniciado pela avó, “Os ciganos”. A hesitação inicial que sentiu, por ter que concluir um texto iniciado por “alguém que é inimitável”, deu lugar à certeza quando se apercebeu de que o trabalho em causa poderia aprofundar ainda mais uma ligação com a avó que sempre primou pela proximidade. “Quis escrever à minha maneira, mas seguindo um diálogo interior. Revisitei-a mentalmente à medida que ia escrevendo. A tal ponto que acaba por haver em vários excertos características dela nas personagens que desenvolvi.”

Memorial à beira-mar

A curta caminhada iniciada na estação de comboios termina quando o pequeno grupo avista a Casa Branca. O aspeto desolador não impressiona Maria nem Isabel, que ainda conservam na memória as imagens da habitação. “A casa estava mesmo em frente ao mar. Não havia o passadiço nem as rochas que hoje existem para travar as investidas marítimas. Saíamos diretamente para as dunas”, afiança Maria, saudosa do “jardim nas dunas”. No grupo encontra-se Alberto Serra, jornalista e amigo da família, que coordenou uma homenagem a Sophia, promovida pela autarquia, da qual fez parte um recital de poesia. “Não são precisos grandes pretextos para homenagearmos Sophia, tão imensa é a sua obra, mas, no caso de Gaia, e da Granja, é quase uma obrigação”, reitera o também poeta.

A celebração do centenário de nascimento não se ficou por esse momento. Até final de setembro, está patente ao público no Arquivo Municipal a exposição documental “Um Porto a Sophia”. Dezenas de fotografias que atestam a fortíssima ligação familiar dos Andresen ao concelho e não apenas à “inquietude, secretamente viva” da Praia da Granja. Será, todavia, nesse local que irá ser colocada, no próximo mês de novembro, uma placa que “eternize a importância que a Granja teve na vida e obra de Sophia de Mello Breyner”, sublinha a vereadora da Cultura, Paula Carvalhal.

Em ameno diálogo que se desenrola a poucos metros da casa, filhas e neto convergem na opinião: o melhor sítio para a colocação da lápide ou escultura – de longe a opção preferida pela família – é mesmo de frente para o adorado mar. “É importante que as pessoas saibam que este local fez parte da sua vida e da formação como autora”, reforça Pedro Sousa Tavares, para quem a avó “foi uma pessoa com muitas geografias e ligações”.

Mesmo sem ter chegado a passar férias na Casa Branca, o jornalista conhece bem a Granja e os seus encantos. Entre os três e os 13 anos, os verões eram tempo de rumar a norte, para casa da tia e madrinha Isabel. À sua espera estavam amizades “que iam passando de ano para ano e formavam um grupinho muito forte”.

Que o memorial, assuma a forma que assumir, sirva também como local de encontro é o desejo dos descendentes de Sophia de Mello Breyner Andresen. Para que quem por lá passe possa escutar nas “ondas tombando ininterruptamente” um eco da voz poética da autora e, quem sabe, “encontrar a própria liberdade” num “puro espaço de lúcida unidade”.